EXPRESSO: País

01-03-2002
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A hora e a vez dos sampaístas Quinze anos depois da sua adesão ao PS, os deserdados do MES empreendem finalmente a tomada do poder no partido. A capacidade de agrupar a família socialista é o primeiro desafio do novo líder. Mas o futuro político de Ferro Rodrigues depende sobretudo do resultado das eleições de Março e da possibilidade de unir e liderar a esquerda António Pedro Ferreira Ferro Rodrigues, no anúncio formal da candidatura à sucessão de António Guterres na liderança do PS NINGUÉM parecia reparar no homem de ombros caídos e andar pastoso que descia, desamparado, a escadaria da sede do Rato na noite de 21 de Dezembro. Ferro Rodrigues acabara de anunciar a candidatura à liderança do partido e as vozes falavam disso. Os mais nervosos reclamavam ainda a atenção dos que paravam no mesmo degrau. Mas a ele ninguém ligava. Ainda disse qualquer coisa imperceptível antes de chegar ao largo. E partiu. Sem corte nem emoção. Acabava assim, sem louvor nem contrição, o reinado do primeiro-ministro a quem os portugueses confiaram duas vezes o seu destino. Apagaram-se as luzes. O guterrismo morreu de repente. NINGUÉM parecia reparar no homem de ombros caídos e andar pastoso que descia, desamparado, a escadaria da sede do Rato na noite de 21 de Dezembro. Ferro Rodrigues acabara de anunciar a candidatura à liderança do partido e as vozes falavam disso. Os mais nervosos reclamavam ainda a atenção dos que paravam no mesmo degrau. Mas a ele ninguém ligava. Ainda disse qualquer coisa imperceptível antes de chegar ao largo. E partiu. Sem corte nem emoção. Acabava assim, sem louvor nem contrição, o reinado do primeiro-ministro a quem os portugueses confiaram duas vezes o seu destino. Apagaram-se as luzes. O guterrismo morreu de repente. O ritual de iniciação de Ferro Rodrigues, em que Guterres só deu nas vistas por ter chegado atrasado, é o início da conquista do poder pelos sampaístas. O sonho é antigo e a ambição grande. Sampaio quer marcar a sua apagada magistratura de influência com a suprema vitória de federar a esquerda, tornar-se o pólo aglutinador d'«aqueles que pensam». E os que se revêem nas suas preocupações ideológicas querem assumir-se, de uma vez por todas, como continuadores da herança ideológica dos pais fundadores do século XIX. A certeza de que já ganharam o controlo do aparelho partidário, seja qual for o resultado das eleições de Março, é a força que os anima. Jogada de alto risco Rui Duarte Silva A delegação socialista recebida por Jorge Sampaio para se pronunciar sobre a data das próximas eleições legislativas (com Vitalino Canas, Paulo Pedroso e Francisco Assis) Ferro está a dirigir as operações com muito cuidado e algum receio. Se não conseguir envolver as outras tendências socialistas na operação eleitoral, a situação pode complicar-se. As listas eleitorais são o terreno essencial das cedências. A jogada é de alto risco. Mas, se a coisa correr mal, atenua o impacto. Ferro está a dirigir as operações com muito cuidado e algum receio. Se não conseguir envolver as outras tendências socialistas na operação eleitoral, a situação pode complicar-se. As listas eleitorais são o terreno essencial das cedências. A jogada é de alto risco. Mas, se a coisa correr mal, atenua o impacto. A cooptação de António José Seguro para coordenar as operações no terreno é a primeira cedência aos órfãos do guterrismo. Foi ele quem liderou a campanha vencedora de Guterres. É ele que faz as «pontes» com as federações; quem melhor se entende com os coelhistas, quem mais eficazmente contentará o soarismo, tirando partido da proximidade lavrada em Bruxelas com Mário Soares. A junção de António Costa e Paulo Pedroso é, no entanto, pouco pacífica. Mais por razões pessoais do que por questões de princípio, os sampaístas estão divididos. Se Ferro falhar, a guerra fratricida rebenta. Costa ainda não desistiu de pensar na liderança... A «troika» vigia-se mutuamente: Pedroso marca Costa, para defender Ferro; Seguro fá-lo também, para avançar se ele avançar; Costa controla os dois, até ver o que dá. As outras figuras institucionais do sampaísmo - João Cravinho, Vera Jardim, Alberto Martins - actuam nos bastidores. A sua missão é não permitir desvirtuar a proposta sampaísta, procurando demover os mais persistentes de carrear emendas inconvenientes. Soaristas atentos O aparelho socialista é o alvo de todas as cobiças. Exorbitando as funções de porta-voz, conforme adiante se verá, Paulo Pedroso, o «génio» do grupo - que já organizou a máquina sampaísta - irá tentar insinuar-se onde Seguro se insinuar. Os soaristas, que formam o segundo grupo mais bem organizado, apostam forte em duas frentes: lançar definitivamente João Soares como figura nacional do partido, fazendo esquecer Lisboa; e colocar peças no complicado xadrez da direcção política de Ferro e das listas de candidatos a deputados. Além dos dois patronos da tendência, jogam aqui um papel de destaque Acácio Barreiros, Sérgio Sousa Pinto («reciclado» em Bruxelas) e sobretudo Rui Cunha, que vai herdar, até à posse do novo Executivo, as competências ministeriais de Ferro, de quem é secretário de Estado adjunto. Serão apoiados na retaguarda pelos mais hábeis dos «históricos» (Alegre e Campos, sobretudo - secundados por Vítor Ramalho, Helena Roseta e, eventualmente, Fernando Gomes). Pensar no Congresso Cépticos em relação às eleições, os socialistas estão a pensar já no Congresso partidário que se seguirá às legislativas. Ali poderá vir a surgir um novo líder, se o PS for derrotado. E ali ocorrerá uma nova rearrumação das famílias, seja qual for o resultado. Os órfãos do guterrismo (Sócrates, Vara, Edite, Galamba) aderiram sem entusiasmo à «mudança na continuidade» protagonizada por Ferro, parecendo acreditar mais na derrota do que no sucesso do sucessor. Se isso acontecer, reagrupar-se-ão em torno de Jorge Coelho, António José Seguro ou António Vitorino - esperando para ver qual deles tem mais hipóteses. Coelho, que cumpre o período de nojo com que se autopenalizou, disponibilizou-se para apoiar Ferro em «funções não executivas», avisando já que não está de todo a pensar abandonar a vida política. Vitorino é um «D. Sebastião» sem exército, a quem muitos não perdoam a falta de coragem para assumir agora o risco. Mas já fez saber a alguns amigos que a sua missão em Bruxelas estará cumprida a 31 de Dezembro... E António José Seguro, com o poder que Ferro lhe colocou nas mãos, fará com que muita gente lhe fique grata. E pronta a retribuir. Pior sorte têm os «gamistas» que, depois da saída em falso de Jaime Gama, parecem condenados a passar definitivamente à história. A voz de Carrilho Quem pode vir a ser muito útil a Ferro Rodrigues é Manuel Maria Carrilho. A confirmar-se a sua candidatura, o filósofo poderá surgir na Convenção de 26 de Janeiro (uma semana depois da entronização do líder) como a voz dos críticos de Guterres, «autorizado» a dizer tudo o que Ferro Rodrigues não pode dizer. A sua inclusão na lista de deputados ou num órgão dirigente dará voz à oposição interna mais desabrida, soterrando de vez o fantasma do guterrismo. Só a coragem de uma ruptura com o presente, acompanhada de inevitável renovação dos quadros dirigentes, parece poder acalentar algumas esperanças de vitória à direcção liderada por Ferro Rodrigues. Os sampaístas têm a seu favor, interna e externamente, a vantagem de não estarem directamente conotados com a derrota autárquica, da qual tiveram o cuidado se resguardar, sem candidatos perdedores nem agitadores de campanha. Mas a aliança com os comunistas - que os soaristas também defendem - pode revelar-se-lhes fatal. A purga em curso no PCP, desencadeada pelas declarações de João Amaral ao EXPRESSO, não augura nada de bom.

ORLANDO RAIMUNDO

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A hora e a vez dos sampaístas Quinze anos depois da sua adesão ao PS, os deserdados do MES empreendem finalmente a tomada do poder no partido. A capacidade de agrupar a família socialista é o primeiro desafio do novo líder. Mas o futuro político de Ferro Rodrigues depende sobretudo do resultado das eleições de Março e da possibilidade de unir e liderar a esquerda António Pedro Ferreira Ferro Rodrigues, no anúncio formal da candidatura à sucessão de António Guterres na liderança do PS NINGUÉM parecia reparar no homem de ombros caídos e andar pastoso que descia, desamparado, a escadaria da sede do Rato na noite de 21 de Dezembro. Ferro Rodrigues acabara de anunciar a candidatura à liderança do partido e as vozes falavam disso. Os mais nervosos reclamavam ainda a atenção dos que paravam no mesmo degrau. Mas a ele ninguém ligava. Ainda disse qualquer coisa imperceptível antes de chegar ao largo. E partiu. Sem corte nem emoção. Acabava assim, sem louvor nem contrição, o reinado do primeiro-ministro a quem os portugueses confiaram duas vezes o seu destino. Apagaram-se as luzes. O guterrismo morreu de repente. NINGUÉM parecia reparar no homem de ombros caídos e andar pastoso que descia, desamparado, a escadaria da sede do Rato na noite de 21 de Dezembro. Ferro Rodrigues acabara de anunciar a candidatura à liderança do partido e as vozes falavam disso. Os mais nervosos reclamavam ainda a atenção dos que paravam no mesmo degrau. Mas a ele ninguém ligava. Ainda disse qualquer coisa imperceptível antes de chegar ao largo. E partiu. Sem corte nem emoção. Acabava assim, sem louvor nem contrição, o reinado do primeiro-ministro a quem os portugueses confiaram duas vezes o seu destino. Apagaram-se as luzes. O guterrismo morreu de repente. O ritual de iniciação de Ferro Rodrigues, em que Guterres só deu nas vistas por ter chegado atrasado, é o início da conquista do poder pelos sampaístas. O sonho é antigo e a ambição grande. Sampaio quer marcar a sua apagada magistratura de influência com a suprema vitória de federar a esquerda, tornar-se o pólo aglutinador d'«aqueles que pensam». E os que se revêem nas suas preocupações ideológicas querem assumir-se, de uma vez por todas, como continuadores da herança ideológica dos pais fundadores do século XIX. A certeza de que já ganharam o controlo do aparelho partidário, seja qual for o resultado das eleições de Março, é a força que os anima. Jogada de alto risco Rui Duarte Silva A delegação socialista recebida por Jorge Sampaio para se pronunciar sobre a data das próximas eleições legislativas (com Vitalino Canas, Paulo Pedroso e Francisco Assis) Ferro está a dirigir as operações com muito cuidado e algum receio. Se não conseguir envolver as outras tendências socialistas na operação eleitoral, a situação pode complicar-se. As listas eleitorais são o terreno essencial das cedências. A jogada é de alto risco. Mas, se a coisa correr mal, atenua o impacto. Ferro está a dirigir as operações com muito cuidado e algum receio. Se não conseguir envolver as outras tendências socialistas na operação eleitoral, a situação pode complicar-se. As listas eleitorais são o terreno essencial das cedências. A jogada é de alto risco. Mas, se a coisa correr mal, atenua o impacto. A cooptação de António José Seguro para coordenar as operações no terreno é a primeira cedência aos órfãos do guterrismo. Foi ele quem liderou a campanha vencedora de Guterres. É ele que faz as «pontes» com as federações; quem melhor se entende com os coelhistas, quem mais eficazmente contentará o soarismo, tirando partido da proximidade lavrada em Bruxelas com Mário Soares. A junção de António Costa e Paulo Pedroso é, no entanto, pouco pacífica. Mais por razões pessoais do que por questões de princípio, os sampaístas estão divididos. Se Ferro falhar, a guerra fratricida rebenta. Costa ainda não desistiu de pensar na liderança... A «troika» vigia-se mutuamente: Pedroso marca Costa, para defender Ferro; Seguro fá-lo também, para avançar se ele avançar; Costa controla os dois, até ver o que dá. As outras figuras institucionais do sampaísmo - João Cravinho, Vera Jardim, Alberto Martins - actuam nos bastidores. A sua missão é não permitir desvirtuar a proposta sampaísta, procurando demover os mais persistentes de carrear emendas inconvenientes. Soaristas atentos O aparelho socialista é o alvo de todas as cobiças. Exorbitando as funções de porta-voz, conforme adiante se verá, Paulo Pedroso, o «génio» do grupo - que já organizou a máquina sampaísta - irá tentar insinuar-se onde Seguro se insinuar. Os soaristas, que formam o segundo grupo mais bem organizado, apostam forte em duas frentes: lançar definitivamente João Soares como figura nacional do partido, fazendo esquecer Lisboa; e colocar peças no complicado xadrez da direcção política de Ferro e das listas de candidatos a deputados. Além dos dois patronos da tendência, jogam aqui um papel de destaque Acácio Barreiros, Sérgio Sousa Pinto («reciclado» em Bruxelas) e sobretudo Rui Cunha, que vai herdar, até à posse do novo Executivo, as competências ministeriais de Ferro, de quem é secretário de Estado adjunto. Serão apoiados na retaguarda pelos mais hábeis dos «históricos» (Alegre e Campos, sobretudo - secundados por Vítor Ramalho, Helena Roseta e, eventualmente, Fernando Gomes). Pensar no Congresso Cépticos em relação às eleições, os socialistas estão a pensar já no Congresso partidário que se seguirá às legislativas. Ali poderá vir a surgir um novo líder, se o PS for derrotado. E ali ocorrerá uma nova rearrumação das famílias, seja qual for o resultado. Os órfãos do guterrismo (Sócrates, Vara, Edite, Galamba) aderiram sem entusiasmo à «mudança na continuidade» protagonizada por Ferro, parecendo acreditar mais na derrota do que no sucesso do sucessor. Se isso acontecer, reagrupar-se-ão em torno de Jorge Coelho, António José Seguro ou António Vitorino - esperando para ver qual deles tem mais hipóteses. Coelho, que cumpre o período de nojo com que se autopenalizou, disponibilizou-se para apoiar Ferro em «funções não executivas», avisando já que não está de todo a pensar abandonar a vida política. Vitorino é um «D. Sebastião» sem exército, a quem muitos não perdoam a falta de coragem para assumir agora o risco. Mas já fez saber a alguns amigos que a sua missão em Bruxelas estará cumprida a 31 de Dezembro... E António José Seguro, com o poder que Ferro lhe colocou nas mãos, fará com que muita gente lhe fique grata. E pronta a retribuir. Pior sorte têm os «gamistas» que, depois da saída em falso de Jaime Gama, parecem condenados a passar definitivamente à história. A voz de Carrilho Quem pode vir a ser muito útil a Ferro Rodrigues é Manuel Maria Carrilho. A confirmar-se a sua candidatura, o filósofo poderá surgir na Convenção de 26 de Janeiro (uma semana depois da entronização do líder) como a voz dos críticos de Guterres, «autorizado» a dizer tudo o que Ferro Rodrigues não pode dizer. A sua inclusão na lista de deputados ou num órgão dirigente dará voz à oposição interna mais desabrida, soterrando de vez o fantasma do guterrismo. Só a coragem de uma ruptura com o presente, acompanhada de inevitável renovação dos quadros dirigentes, parece poder acalentar algumas esperanças de vitória à direcção liderada por Ferro Rodrigues. Os sampaístas têm a seu favor, interna e externamente, a vantagem de não estarem directamente conotados com a derrota autárquica, da qual tiveram o cuidado se resguardar, sem candidatos perdedores nem agitadores de campanha. Mas a aliança com os comunistas - que os soaristas também defendem - pode revelar-se-lhes fatal. A purga em curso no PCP, desencadeada pelas declarações de João Amaral ao EXPRESSO, não augura nada de bom.

ORLANDO RAIMUNDO

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