Os combatentes da rua

24-04-2001
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Da esquerda para a direita: Feliciano Duarte, que substituiu Júlio Sebastião após a morte deste, Mila Simões de Abreu e Mário e Jaime Pinto

A DETENÇÃO de Jaime Pinto e a fuga do seu irmão Mário, suspeitos de envolvimento numa rede internacional de tráfico de droga, marcam o fim de um ciclo de líderes populares que, nos anos finais do cavaquismo, saíram do anonimato e enfrentaram na rua o poder, fora das entidades tradicionais, como sindicatos ou associações. Este género de protagonismo não tem paralelo actualmente, na «era Guterres», em que as lideranças são muito mais de gabinete, facto que os cientistas sociais interpretam como sinal da «apatia» que se vive hoje na sociedade portuguesa. O sociólogo Manuel Villaverde Cabral considera «natural» que os «líderes desapareçam», na medida em que os «movimentos que protagonizaram foram tanto mais espontâneos como efémeros». Embora por motivos diferentes, as quatro figuras que se destacaram nos principais e mais mediáticos movimentos cívicos dos anos 90 - Júlio Sebastião, com os agricultores,desde o início da década, e a luta contra as portagens do Oeste, em 96/97; os irmãos Pinto, no bloqueio da Ponte 25 de Abril em 94; e Mila Simões de Abreu, a arqueóloga das gravuras de Foz Côa - estão todas impedidas de desempenhar de novo qualquer outro papel de protagonismo semelhante ao que tiveram no passado. Era uma vez no Oeste

Em Dezembro de 1997, o EXPRESSO reuniu os líderes dos movimentos populares mais emblemáticos dos anos anteriores

Júlio Sebastião, o agricultor do Bombarral que ficou conhecido como «Che Guevara do Oeste», desde que liderou milhares de agricultores que cortaram várias estradas da região Oeste, reivindicando melhores condições para aquela classe, teve um fim trágico. A 19 de Outubro de 1997, fez esta semana três anos, caiu numa máquina moedora de rações e foi literalmente triturado. Nessa altura, Sebastião era também a principal figura da comissão antiportagens do Oeste, um movimento que reunia autarcas, empresários, agricultores e comerciantes que exigiam a abolição do pagamento de portagens no troço que ligava o Bombarral a Torres Vedras da auto-estrada do Oeste. As formas pouco institucionais de luta utilizadas chegaram ao ponto de elaborarem um plano inédito para cercar Lisboa e fechar todas as entradas da capital. Chamava-se «operação Nanito», o diminutivo do nome de um dos membros do núcleo duro da comissão, Feliciano Barreiras Duarte, actualmente deputado do PSD e líder da distrital de Leiria. Após a morte de Júlio Sebastião foi Feliciano quem assumiu o seu lugar. Hoje, o dirigente social-democrata é o braço direito do candidato presidencial Ferreira Amaral, a quem os irmãos Pinto já manifestaram o seu apoio. Contra a barragem A arqueóloga Mila Simões de Abreu foi quem levou para os jornais, em 1994, a descoberta da arte rupestre do Côa, actualmente classificada como património mundial, criando um movimento sem precedentes no nosso país em defesa de um património histórico, contra a construção de uma barragem que o submergiria. Greves de fome, cortes de estradas e a imprensa nacional e internacional foram determinantes para a sua «guerra». Mas a sua personalidade intempestiva e a forma, por vezes ofensiva, como criticava alguns colegas de profissão fez nascer ódios e inimizades em seu redor. No início deste ano foi condenada a cinco meses de prisão e a pagar dois mil contos de indemnização a Nelson Rebanda, o arqueólogo descobridor das rochas gravadas, que a processou por difamação por esta ter criticado a sua atitude na divulgação do achado. Mila Simões de Abreu recorreu da sentença e aguarda agora o resultado. A suspeita que recai sobre os irmãos Pinto foi a derradeira pedrada nas figuras que marcaram um estilo de liderança, personalizado. Encontro histórico no Terreiro do Paço Apesar de as causas que defenderam terem sido ganhas totalmente, no caso das portagens do Oeste e do agora parque arqueológico do Côa, ou parcialmente, no caso das portagens da Ponte 25 de Abril, que não chegaram a ser eliminadas mas apenas o seu aumento adiado, há três anos, numa reunião que o EXPRESSO promoveu entre eles, manifestavam alguma desilusão com a sua vida pós-liderança. Achavam ainda que tinham pago uma factura bastante elevada, a nível pessoal e profissional, pelo protagonismo que assumiram. «O Ministério da Cultura não me deu licença de trabalho», queixava-se Mila Simões de Abreu. Novamente uma cidadã anónima, a arqueóloga está na Universidade de Vila Real, como assistente convidada, a leccionar a cadeira de Geologia do Quaternário. Hoje lamenta o seu «exílio» profissional mas garante que «faria tudo de novo». «A nossa vitória é a prova da força que pode ter um movimento cívico», conclui. Arrependimento também não havia, nem na altura desse encontro nem agora, por parte de Feliciano Duarte. Em 1997, embora se queixasse da perda de «dois anos de vida profissional como advogado», reconhecia que tinha valido a pena. Presentemente, mantém a reflexão que fizera três anos antes. Sem dívidas nem falta de trabalho No encontro realizado no Terreiro do Paço, Jaime e Mário Pinto tinham dúvidas sobre as actuais capacidades dos portugueses para se mobilizarem. «Não acredito que seja possível levar os portugueses a tomar uma atitude mais radical em defesa dos próprios interesses», asseverava então Jaime Pinto. Por outro lado, ao contrario de Mila Simões de Abreu e de Feliciano Duarte, não se queixavam de qualquer prejuízo profissional. Antes pelo contrário. «Só fomos prejudicados durante a preparação do bloqueio porque não tínhamos tempo para fazer fretes, mas depois abriram-se muitas portas», afirmava Jaime. «Não somos ricos», dizia «mas não temos dívidas, nem nos falta trabalho». VALENTINA MARCELINO Não há líderes como dantes

Francisco e Isabel Cunha

FREDERICO, Ruben e Joana perderam a vida em acidentes. Ao contrário do que sucede, quase sempre, em Portugal, os pais não calaram a revolta e exigiram explicações ao Estado e a poderes públicos. Por causa dos momentos trágicos que marcaram as suas famílias e da acção cívica que travaram desde então, passaram de cidadãos anónimos a pessoas conhecidas da opinião pública. Ao contrário do palco preferido pelos líderes populares, os pais de Frederico, Ruben e Joana optaram por vias mais institucionais. «Não há lideranças de rua porque a sociedade se distanciou do espaço de intervenção pública», diz o sociólogo Manuel Villaverde Cabral.

Alfredo e Ana Paula Duarte

Em Julho de 1993, Cristina Caldas e Frederico Duarte, ambos com 9 anos, perdem a vida no Aquaparque, em Lisboa. Um ano depois, Alfredo e Ana Paula Duarte, pais de Frederico, processam os responsáveis pelo parque, o Estado por omissão de legislação e exigem uma indemnização de 302 mil contos. A primeira vitória foi conseguida em Março de 1997, com a publicação de legislação específica para os parques aquáticos. O julgamento inicia-se em Abril de 1999, é suspenso, prescreve em Dezembro e reabre em Março deste ano. A 12 de Outubro, o Estado foi condenado, de forma inédita, a pagar 120 mil contos.

Manuel João Ramos

Em Junho de 1997, um acidente em Lisboa colocava a Câmara da capital na posição de réu. Ruben Cunha, 13 anos, morre electrocutado ao carregar no botão de um semáforo no Campo Grande. Um mês depois, os pais, Francisco e Isabel Cunha, entregam uma queixa-crime na Procuradoria Geral da República contra a autarquia e a Eyffa-Tesis, responsável pela manutenção. O sucedido serviria para que, em Agosto desse ano, a Câmara substituísse os botões de 24 semáforos na capital. Já no fim de 1997, João Soares acordou pagar uma indemnização de 30 mil contos. Nascia então a Fundação de Apoio à Vítima Ruben Cunha e, mais tarde, um livro com toda a história. Em Março deste ano o processo seria arquivado e reaberto três meses depois. O julgamento foi marcado para Abril de 2001. Os pais exigem 45 mil contos à autarquia. Joana tinha seis meses quando morreu, em Agosto de 1998. Viajava de carro com os pais no IP5, a «estrada da morte». O pai, Manuel João Ramos, exigiu que se apurassem responsabilidades e que os troços mais perigosos daquela estrada fossem encerrados. Tal nunca aconteceu mas, a 13 de Outubro, o governo declara a «tolerância zero» no IP5 - que haveria de estender-se a outras vias. Fundada em Novembro de 1999, a Associação dos Cidadãos Automobilizados, liderada por Manuel João Ramos, continua a luta contra a falta de segurança na estradas portuguesas. VERA LÚCIA ARREIGOSO

Frete fatal

O despiste dos camionistas heróis

Os combatentes da rua

Da esquerda para a direita: Feliciano Duarte, que substituiu Júlio Sebastião após a morte deste, Mila Simões de Abreu e Mário e Jaime Pinto

A DETENÇÃO de Jaime Pinto e a fuga do seu irmão Mário, suspeitos de envolvimento numa rede internacional de tráfico de droga, marcam o fim de um ciclo de líderes populares que, nos anos finais do cavaquismo, saíram do anonimato e enfrentaram na rua o poder, fora das entidades tradicionais, como sindicatos ou associações. Este género de protagonismo não tem paralelo actualmente, na «era Guterres», em que as lideranças são muito mais de gabinete, facto que os cientistas sociais interpretam como sinal da «apatia» que se vive hoje na sociedade portuguesa. O sociólogo Manuel Villaverde Cabral considera «natural» que os «líderes desapareçam», na medida em que os «movimentos que protagonizaram foram tanto mais espontâneos como efémeros». Embora por motivos diferentes, as quatro figuras que se destacaram nos principais e mais mediáticos movimentos cívicos dos anos 90 - Júlio Sebastião, com os agricultores,desde o início da década, e a luta contra as portagens do Oeste, em 96/97; os irmãos Pinto, no bloqueio da Ponte 25 de Abril em 94; e Mila Simões de Abreu, a arqueóloga das gravuras de Foz Côa - estão todas impedidas de desempenhar de novo qualquer outro papel de protagonismo semelhante ao que tiveram no passado. Era uma vez no Oeste

Em Dezembro de 1997, o EXPRESSO reuniu os líderes dos movimentos populares mais emblemáticos dos anos anteriores

Júlio Sebastião, o agricultor do Bombarral que ficou conhecido como «Che Guevara do Oeste», desde que liderou milhares de agricultores que cortaram várias estradas da região Oeste, reivindicando melhores condições para aquela classe, teve um fim trágico. A 19 de Outubro de 1997, fez esta semana três anos, caiu numa máquina moedora de rações e foi literalmente triturado. Nessa altura, Sebastião era também a principal figura da comissão antiportagens do Oeste, um movimento que reunia autarcas, empresários, agricultores e comerciantes que exigiam a abolição do pagamento de portagens no troço que ligava o Bombarral a Torres Vedras da auto-estrada do Oeste. As formas pouco institucionais de luta utilizadas chegaram ao ponto de elaborarem um plano inédito para cercar Lisboa e fechar todas as entradas da capital. Chamava-se «operação Nanito», o diminutivo do nome de um dos membros do núcleo duro da comissão, Feliciano Barreiras Duarte, actualmente deputado do PSD e líder da distrital de Leiria. Após a morte de Júlio Sebastião foi Feliciano quem assumiu o seu lugar. Hoje, o dirigente social-democrata é o braço direito do candidato presidencial Ferreira Amaral, a quem os irmãos Pinto já manifestaram o seu apoio. Contra a barragem A arqueóloga Mila Simões de Abreu foi quem levou para os jornais, em 1994, a descoberta da arte rupestre do Côa, actualmente classificada como património mundial, criando um movimento sem precedentes no nosso país em defesa de um património histórico, contra a construção de uma barragem que o submergiria. Greves de fome, cortes de estradas e a imprensa nacional e internacional foram determinantes para a sua «guerra». Mas a sua personalidade intempestiva e a forma, por vezes ofensiva, como criticava alguns colegas de profissão fez nascer ódios e inimizades em seu redor. No início deste ano foi condenada a cinco meses de prisão e a pagar dois mil contos de indemnização a Nelson Rebanda, o arqueólogo descobridor das rochas gravadas, que a processou por difamação por esta ter criticado a sua atitude na divulgação do achado. Mila Simões de Abreu recorreu da sentença e aguarda agora o resultado. A suspeita que recai sobre os irmãos Pinto foi a derradeira pedrada nas figuras que marcaram um estilo de liderança, personalizado. Encontro histórico no Terreiro do Paço Apesar de as causas que defenderam terem sido ganhas totalmente, no caso das portagens do Oeste e do agora parque arqueológico do Côa, ou parcialmente, no caso das portagens da Ponte 25 de Abril, que não chegaram a ser eliminadas mas apenas o seu aumento adiado, há três anos, numa reunião que o EXPRESSO promoveu entre eles, manifestavam alguma desilusão com a sua vida pós-liderança. Achavam ainda que tinham pago uma factura bastante elevada, a nível pessoal e profissional, pelo protagonismo que assumiram. «O Ministério da Cultura não me deu licença de trabalho», queixava-se Mila Simões de Abreu. Novamente uma cidadã anónima, a arqueóloga está na Universidade de Vila Real, como assistente convidada, a leccionar a cadeira de Geologia do Quaternário. Hoje lamenta o seu «exílio» profissional mas garante que «faria tudo de novo». «A nossa vitória é a prova da força que pode ter um movimento cívico», conclui. Arrependimento também não havia, nem na altura desse encontro nem agora, por parte de Feliciano Duarte. Em 1997, embora se queixasse da perda de «dois anos de vida profissional como advogado», reconhecia que tinha valido a pena. Presentemente, mantém a reflexão que fizera três anos antes. Sem dívidas nem falta de trabalho No encontro realizado no Terreiro do Paço, Jaime e Mário Pinto tinham dúvidas sobre as actuais capacidades dos portugueses para se mobilizarem. «Não acredito que seja possível levar os portugueses a tomar uma atitude mais radical em defesa dos próprios interesses», asseverava então Jaime Pinto. Por outro lado, ao contrario de Mila Simões de Abreu e de Feliciano Duarte, não se queixavam de qualquer prejuízo profissional. Antes pelo contrário. «Só fomos prejudicados durante a preparação do bloqueio porque não tínhamos tempo para fazer fretes, mas depois abriram-se muitas portas», afirmava Jaime. «Não somos ricos», dizia «mas não temos dívidas, nem nos falta trabalho». VALENTINA MARCELINO Não há líderes como dantes

Francisco e Isabel Cunha

FREDERICO, Ruben e Joana perderam a vida em acidentes. Ao contrário do que sucede, quase sempre, em Portugal, os pais não calaram a revolta e exigiram explicações ao Estado e a poderes públicos. Por causa dos momentos trágicos que marcaram as suas famílias e da acção cívica que travaram desde então, passaram de cidadãos anónimos a pessoas conhecidas da opinião pública. Ao contrário do palco preferido pelos líderes populares, os pais de Frederico, Ruben e Joana optaram por vias mais institucionais. «Não há lideranças de rua porque a sociedade se distanciou do espaço de intervenção pública», diz o sociólogo Manuel Villaverde Cabral.

Alfredo e Ana Paula Duarte

Em Julho de 1993, Cristina Caldas e Frederico Duarte, ambos com 9 anos, perdem a vida no Aquaparque, em Lisboa. Um ano depois, Alfredo e Ana Paula Duarte, pais de Frederico, processam os responsáveis pelo parque, o Estado por omissão de legislação e exigem uma indemnização de 302 mil contos. A primeira vitória foi conseguida em Março de 1997, com a publicação de legislação específica para os parques aquáticos. O julgamento inicia-se em Abril de 1999, é suspenso, prescreve em Dezembro e reabre em Março deste ano. A 12 de Outubro, o Estado foi condenado, de forma inédita, a pagar 120 mil contos.

Manuel João Ramos

Em Junho de 1997, um acidente em Lisboa colocava a Câmara da capital na posição de réu. Ruben Cunha, 13 anos, morre electrocutado ao carregar no botão de um semáforo no Campo Grande. Um mês depois, os pais, Francisco e Isabel Cunha, entregam uma queixa-crime na Procuradoria Geral da República contra a autarquia e a Eyffa-Tesis, responsável pela manutenção. O sucedido serviria para que, em Agosto desse ano, a Câmara substituísse os botões de 24 semáforos na capital. Já no fim de 1997, João Soares acordou pagar uma indemnização de 30 mil contos. Nascia então a Fundação de Apoio à Vítima Ruben Cunha e, mais tarde, um livro com toda a história. Em Março deste ano o processo seria arquivado e reaberto três meses depois. O julgamento foi marcado para Abril de 2001. Os pais exigem 45 mil contos à autarquia. Joana tinha seis meses quando morreu, em Agosto de 1998. Viajava de carro com os pais no IP5, a «estrada da morte». O pai, Manuel João Ramos, exigiu que se apurassem responsabilidades e que os troços mais perigosos daquela estrada fossem encerrados. Tal nunca aconteceu mas, a 13 de Outubro, o governo declara a «tolerância zero» no IP5 - que haveria de estender-se a outras vias. Fundada em Novembro de 1999, a Associação dos Cidadãos Automobilizados, liderada por Manuel João Ramos, continua a luta contra a falta de segurança na estradas portuguesas. VERA LÚCIA ARREIGOSO

Frete fatal

O despiste dos camionistas heróis

Os combatentes da rua

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