Inquérito

17-09-2001
marcar artigo

Inquérito

Segunda-feira, 17 de Setembro de 2001

1. O que mudou no mundo?

2. Como devem e podem os Estados Unidos e os seus aliados responder a esta situação?

A ilusão de uma "paz perpétua" foi enterrada nos escombros do WTC

Vasco Rato, professor universitário

Vivemos tempos confusos. Olhando para além da poeira e da perplexidade, Carlos Gaspar, em artigo publicado no Independente de sexta-feira, decifrou o novo "espírito dos tempos". Sintetizou a nova realidade nos seguintes termos: "Kant partiu de férias. Schmitt foi autorizado a regressar". Por outras palavras, e para que possamos melhor compreender o futuro próximo, convém recordar que a tragédia do dia 11 de Setembro ocorreu num contexto político específico. Durante os últimos dez anos, a política externa dos Estados Unidos e da Europa foi formulada a partir da ilusão de que era possível construir uma "paz democrática universal" kantiana. Para assegurar esse fim, bastava promover a criação de economias de mercado e instituições democráticas. Mais tarde ou mais cedo, era-nos dito, até o mais despótico regime seria transformado em democracia "pacífica". Acreditava-se, pois, que caminhávamos inexoravelmente para o racionalismo, o progresso, a democracia e a paz universais.

Mas nem todos partilhavam desta ilusão. Os adeptos da "escola realista" nas relações internacionais - entre os quais me insiro - sempre insistiram que o mundo pós-guerra fria era caracterizado pelo caos e pela desordem. Antes de terça-feira, esta perspectiva era geralmente ignorada, qualificada como "cínica" ou "excessivamente pessimista". Pior. Os nossos idealistas dedicaram-se a discutir a "nova ordem internacional", a "cultura de paz" e a "resolução pacífica" de todos os conflitos, mesmo nos casos em que nenhuma das partes estava disposta a fazer a paz. Esta ilusão de uma "paz perpétua" também foi enterrada nos escombros do World Trade Center e do Pentágono.

Carl Schmitt regressou, mas nem todos deram por isso. Assustou-me a forma descontrolada, histérica e imprudente como os políticos americanos e europeus geriram os dois primeiros dias da crise. Desgostou-me ver alguns sectores da opinião pública portuguesa tentar justificar a matança, dizendo que os EUA estavam a ser "castigados pela sua arrogância". Preocupou-me que as pessoas que reconhecem a indispensabilidade da NATO como garante da segurança europeia estivessem dispostas, sem qualquer hesitação, a lançar numa "guerra santa" contra o "fundamentalismo islâmico". Alarmou-me que outros tivessem confundido a barbárie com um caso de polícia, exigindo a abertura de um "processo", o "apurar de culpas" e, pasme-se, um castigo de acordo com as "normas do direito". Espantou-me ouvir dizer que "se Israel não existisse" também não existiria terrorismo fundamentalista. Imagino que, em breve, estas mesmas almas sensíveis ao "sofrimento palestiniano" irão tentar sacrificar Israel, alvo permanente do terrorismo e única sociedade aberta no Médio Oriente, à barbárie. A confusão, portanto, reina em muitas mentes.

Mas fiquei especialmente estupefacto com as posições assumidas pelas "pombas" lusas que se opuseram à intervenção da NATO no Kosovo, onde, em defesa dos mesmos valores civilizacionais que agora foram atingidos, se agiu para travar o genocídio e para estabelecer a estabilidade - relativa, é certo - no continente europeu. De exponentes da "paz a qualquer preço", estes ex-apaziguadores passaram a reivindicar a "retaliação inequívoca", "castigos exemplares" e uma "guerra sem quartel". Passaram, simplesmente, a exigir sangue. Muito sangue. Também as opiniões públicas dos países democráticos, até agora tão pacifistas e compreensíveis, reclamam o "extermínio" dos terroristas fundamentalistas, o que, para todos os efeitos, significa todos os muçulmanos. Embriagados pela emoção, abandonaram a razão, e ignoram a dimensão política e geoestratégica da crise.

Esmagada pela violência, e a espiral de retórica sanguinária que se seguiu, a NATO invocou o Artigo 5º do Tratado de Washington. Já tive ocasião de dizer - e repito - que se tratou de um erro colossal, de um sinal político perigoso para o resto do mundo, particularmente para os países muçulmanos. E não basta afirmar que os "povos muçulmanos" saberão "distinguir" entre um ataque ao Afeganistão e um ataque ao "islamismo". Não o farão, e a expectativa de que será possível fixar tal distinção demonstra a falta de senso dos dirigentes políticos ocidentais. Uma retaliação dos EUA, apoiada pela NATO, é indispensável para dissuadir outros terroristas. Porém, recorrer ao Artigo 5º, o último recurso da Aliança Atlântica, é desnecessário na medida em que se trata de uma declaração de "guerra total" facilmente interpretado como uma declaração de "guerra civilizacional".

Portugal está em estado de guerra, mas, mesmo antes dos bombardeamentos, os europeus - com António Guterres à cabeça - já começaram a ter dúvidas, já começaram a vacilar. Bem pode Guterres dizer que não estamos a "preparar a guerra", mas a verdade é que se não estivéssemos a preparar uma resposta militar porquê recorrer ao Artigo 5º? A decisão de invocar o Artigo 5º foi um disparate, uma precipitação. Revelou a insensatez dos decisores no momento em que era necessário agir friamente. Mas, tomada a decisão, deixou de existir margem para vacilar. Portugal participará, directa ou indirectamente, na investida militar que se aproxima e, se se recusar a fazê-lo, quebra a solidariedade no interior da NATO, o que poderá levar à sua expulsão da aliança. Por isso mesmo, a discussão em volta do Artigo 5º pertence à História.

Agora, cabe aos políticos portugueses explicar o significado desta semana alucinante e as suas consequências para o nosso país. Mas terão de o fazer com frontalidade, explicitando o que está verdadeiramente em causa para Portugal. Ao contrário do que se verificou no Kosovo, desta vez não poderemos estar com "um pé de dentro e um pé de fora", como o primeiro-ministro parece estar tentado a fazer. A oposição de esquerda, previsivelmente, hesita quando o tempo não permite hesitações. Quanto à oposição de direita, era útil que tivesse alguma calma, que demonstrasse alguma responsabilidade e contenção, que reflectisse antes de exigir uma guerra civilizacional. É que, desta vez, quem cometer erros políticos será responsabilizado. Schmitt também regressou a Portugal.

"A reconstrução do edifício do direito internacional impor-se-á"

José Medeiros Ferreira

Ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e actual deputado do PS na comissão parlamentar de Defesa

1- O que poderá mudar no mundo dependerá na área geográfica e das questões que possam ficar sob a alçada das consequências de um acto deste género. Explicando melhor: desde logo uma maior ligação entre os EUA e o resto do mundo na medida em que o cidadão americano se sentirá agora mais seguro através de uma política de alianças dos EUA que tenham um apoio mais generalizado. Prevejo um maior enlace entre os EUA e as ONU, uma maior participação dos EUA nos organismos internacionais de desenvolvimento e uma maior capacidade de captaçção de simpatias entre os demais povos. Terá também consequências certamente na concepção da segurança colectiva, quer a nível das ONU quer a nível dos EUA e das suas principais alianças, entre as quais a NATO. Não ficaria surprendido se se procedesse a prazo à retoma das soluções políticas no Médio Oriente e no Golfo Pérsico. É concebível ainda uma reorganização do poder político federal nos EUA, com um papel mais activo do Congresso.

2 - Em primeiro lugar percebendo que não há acções unilaterais que possam prescindir de um consenso das próprias populações através da vivificação do poder político democrático. A maior vitória dos adversários dos regimes democráticos seria estes abandonarem as suas características de defesa das liberdades individuais e dos direitos humanos para se lançarem na selva da lei do mais forte. A reconstrução do edifício do direito internacional impor-se-á com a tipificação mais pormenorizada do que possam ser agressões e o direito de fazer face a essas agressões por parte dos Estados ofendidos. Nesta guerra declarada falta acertar com, e no, inimigo. É fundamental que os EUA e os seus aliados não falhem o alvo nem se deixem desviar dos princípios da segurança colectiva mundial.

Miguel Vale de Almeida, antropólogo e membro do Bloco de Esquerda

"A oportunidade trágica para criar uma nova segurança colectiva

Passados poucos dias desde o atentado, o que assusta é que pouco parece ter mudado. Se o mundo anterior à queda do Muro de Berlim era assustador e injusto, não o tem sido menos desde então. Não foram dados passos significativos no desenvolvimento dos países mais pobres; não foram dados passos significativos na resolução do conflito israelo-palestiniano; não foram dados passos significativos no apoio ao desenvolvimento de um Islão moderno e humanista. E perante a barbaridade do dia 11 de Setembro, assistimos a duas reacções igualmente fundadas num pensamento débil e igualmente insustentáveis no plano ético e político: a dos que alinham, sem pensar duas vezes, na recém-declarada "America''s New War" (que não pretende ser mera metáfora...); e a dos que dizem (ou pensam, sem dizerem) que a América teve o que merecia. A guerra não resolverá nada, sobretudo quando o inimigo não é identificável de forma clara e porque haverá sempre um novo candidato ao exercício do terrorismo; e a simpatia com o presente atentado é suicidária porque o fanatismo terrorista não considera ninguém seu amigo e não poupará ninguém quando atacar de novo.

2 - Os culpados devem ser presos e julgados, assim como podem e devem ser impostas sanções aos países que albergam e promovem grupos terroristas. Mas, sobretudo, esta é a oportunidade (a oportunidade trágica...) para criar uma nova segurança colectiva, cujo fundamento óbvio deverá ser a justiça global nos planos económico, político e cultural. A perseguição e julgamento dos terroristas contribuirá para uma nova ordem mundial se, ao mesmo tempo,

forem dados passos decisivos para a resolução das causas remotas deste caos: desde logo, a resolução do problema palestiniano. Tudo o resto - "America''s new war" - poderá satisfazer apenas um compreensível desejo de vingança. Poderá, quando muito, apaziguar os nossos medos por alguns meses. Mas não só não resolverá nada, como não parará o terror a que milhões de pessoas no mundo não-ocidental têm sido sujeitas. Se sempre foi verdade que a escalada de violência só gera mais violência, imagine-se o que nos espera quando uma das partes é o terrorismo que desvia aviões com armas brancas. O que não

devemos nem podemos deixar acontecer é que o 11 de Setembro seja a desculpa ideal para o governo dos EUA garantir militarmente o que tem vindo a (des)fazer na política e na economia globais.

Inquérito

Segunda-feira, 17 de Setembro de 2001

1. O que mudou no mundo?

2. Como devem e podem os Estados Unidos e os seus aliados responder a esta situação?

A ilusão de uma "paz perpétua" foi enterrada nos escombros do WTC

Vasco Rato, professor universitário

Vivemos tempos confusos. Olhando para além da poeira e da perplexidade, Carlos Gaspar, em artigo publicado no Independente de sexta-feira, decifrou o novo "espírito dos tempos". Sintetizou a nova realidade nos seguintes termos: "Kant partiu de férias. Schmitt foi autorizado a regressar". Por outras palavras, e para que possamos melhor compreender o futuro próximo, convém recordar que a tragédia do dia 11 de Setembro ocorreu num contexto político específico. Durante os últimos dez anos, a política externa dos Estados Unidos e da Europa foi formulada a partir da ilusão de que era possível construir uma "paz democrática universal" kantiana. Para assegurar esse fim, bastava promover a criação de economias de mercado e instituições democráticas. Mais tarde ou mais cedo, era-nos dito, até o mais despótico regime seria transformado em democracia "pacífica". Acreditava-se, pois, que caminhávamos inexoravelmente para o racionalismo, o progresso, a democracia e a paz universais.

Mas nem todos partilhavam desta ilusão. Os adeptos da "escola realista" nas relações internacionais - entre os quais me insiro - sempre insistiram que o mundo pós-guerra fria era caracterizado pelo caos e pela desordem. Antes de terça-feira, esta perspectiva era geralmente ignorada, qualificada como "cínica" ou "excessivamente pessimista". Pior. Os nossos idealistas dedicaram-se a discutir a "nova ordem internacional", a "cultura de paz" e a "resolução pacífica" de todos os conflitos, mesmo nos casos em que nenhuma das partes estava disposta a fazer a paz. Esta ilusão de uma "paz perpétua" também foi enterrada nos escombros do World Trade Center e do Pentágono.

Carl Schmitt regressou, mas nem todos deram por isso. Assustou-me a forma descontrolada, histérica e imprudente como os políticos americanos e europeus geriram os dois primeiros dias da crise. Desgostou-me ver alguns sectores da opinião pública portuguesa tentar justificar a matança, dizendo que os EUA estavam a ser "castigados pela sua arrogância". Preocupou-me que as pessoas que reconhecem a indispensabilidade da NATO como garante da segurança europeia estivessem dispostas, sem qualquer hesitação, a lançar numa "guerra santa" contra o "fundamentalismo islâmico". Alarmou-me que outros tivessem confundido a barbárie com um caso de polícia, exigindo a abertura de um "processo", o "apurar de culpas" e, pasme-se, um castigo de acordo com as "normas do direito". Espantou-me ouvir dizer que "se Israel não existisse" também não existiria terrorismo fundamentalista. Imagino que, em breve, estas mesmas almas sensíveis ao "sofrimento palestiniano" irão tentar sacrificar Israel, alvo permanente do terrorismo e única sociedade aberta no Médio Oriente, à barbárie. A confusão, portanto, reina em muitas mentes.

Mas fiquei especialmente estupefacto com as posições assumidas pelas "pombas" lusas que se opuseram à intervenção da NATO no Kosovo, onde, em defesa dos mesmos valores civilizacionais que agora foram atingidos, se agiu para travar o genocídio e para estabelecer a estabilidade - relativa, é certo - no continente europeu. De exponentes da "paz a qualquer preço", estes ex-apaziguadores passaram a reivindicar a "retaliação inequívoca", "castigos exemplares" e uma "guerra sem quartel". Passaram, simplesmente, a exigir sangue. Muito sangue. Também as opiniões públicas dos países democráticos, até agora tão pacifistas e compreensíveis, reclamam o "extermínio" dos terroristas fundamentalistas, o que, para todos os efeitos, significa todos os muçulmanos. Embriagados pela emoção, abandonaram a razão, e ignoram a dimensão política e geoestratégica da crise.

Esmagada pela violência, e a espiral de retórica sanguinária que se seguiu, a NATO invocou o Artigo 5º do Tratado de Washington. Já tive ocasião de dizer - e repito - que se tratou de um erro colossal, de um sinal político perigoso para o resto do mundo, particularmente para os países muçulmanos. E não basta afirmar que os "povos muçulmanos" saberão "distinguir" entre um ataque ao Afeganistão e um ataque ao "islamismo". Não o farão, e a expectativa de que será possível fixar tal distinção demonstra a falta de senso dos dirigentes políticos ocidentais. Uma retaliação dos EUA, apoiada pela NATO, é indispensável para dissuadir outros terroristas. Porém, recorrer ao Artigo 5º, o último recurso da Aliança Atlântica, é desnecessário na medida em que se trata de uma declaração de "guerra total" facilmente interpretado como uma declaração de "guerra civilizacional".

Portugal está em estado de guerra, mas, mesmo antes dos bombardeamentos, os europeus - com António Guterres à cabeça - já começaram a ter dúvidas, já começaram a vacilar. Bem pode Guterres dizer que não estamos a "preparar a guerra", mas a verdade é que se não estivéssemos a preparar uma resposta militar porquê recorrer ao Artigo 5º? A decisão de invocar o Artigo 5º foi um disparate, uma precipitação. Revelou a insensatez dos decisores no momento em que era necessário agir friamente. Mas, tomada a decisão, deixou de existir margem para vacilar. Portugal participará, directa ou indirectamente, na investida militar que se aproxima e, se se recusar a fazê-lo, quebra a solidariedade no interior da NATO, o que poderá levar à sua expulsão da aliança. Por isso mesmo, a discussão em volta do Artigo 5º pertence à História.

Agora, cabe aos políticos portugueses explicar o significado desta semana alucinante e as suas consequências para o nosso país. Mas terão de o fazer com frontalidade, explicitando o que está verdadeiramente em causa para Portugal. Ao contrário do que se verificou no Kosovo, desta vez não poderemos estar com "um pé de dentro e um pé de fora", como o primeiro-ministro parece estar tentado a fazer. A oposição de esquerda, previsivelmente, hesita quando o tempo não permite hesitações. Quanto à oposição de direita, era útil que tivesse alguma calma, que demonstrasse alguma responsabilidade e contenção, que reflectisse antes de exigir uma guerra civilizacional. É que, desta vez, quem cometer erros políticos será responsabilizado. Schmitt também regressou a Portugal.

"A reconstrução do edifício do direito internacional impor-se-á"

José Medeiros Ferreira

Ex-ministro dos Negócios Estrangeiros e actual deputado do PS na comissão parlamentar de Defesa

1- O que poderá mudar no mundo dependerá na área geográfica e das questões que possam ficar sob a alçada das consequências de um acto deste género. Explicando melhor: desde logo uma maior ligação entre os EUA e o resto do mundo na medida em que o cidadão americano se sentirá agora mais seguro através de uma política de alianças dos EUA que tenham um apoio mais generalizado. Prevejo um maior enlace entre os EUA e as ONU, uma maior participação dos EUA nos organismos internacionais de desenvolvimento e uma maior capacidade de captaçção de simpatias entre os demais povos. Terá também consequências certamente na concepção da segurança colectiva, quer a nível das ONU quer a nível dos EUA e das suas principais alianças, entre as quais a NATO. Não ficaria surprendido se se procedesse a prazo à retoma das soluções políticas no Médio Oriente e no Golfo Pérsico. É concebível ainda uma reorganização do poder político federal nos EUA, com um papel mais activo do Congresso.

2 - Em primeiro lugar percebendo que não há acções unilaterais que possam prescindir de um consenso das próprias populações através da vivificação do poder político democrático. A maior vitória dos adversários dos regimes democráticos seria estes abandonarem as suas características de defesa das liberdades individuais e dos direitos humanos para se lançarem na selva da lei do mais forte. A reconstrução do edifício do direito internacional impor-se-á com a tipificação mais pormenorizada do que possam ser agressões e o direito de fazer face a essas agressões por parte dos Estados ofendidos. Nesta guerra declarada falta acertar com, e no, inimigo. É fundamental que os EUA e os seus aliados não falhem o alvo nem se deixem desviar dos princípios da segurança colectiva mundial.

Miguel Vale de Almeida, antropólogo e membro do Bloco de Esquerda

"A oportunidade trágica para criar uma nova segurança colectiva

Passados poucos dias desde o atentado, o que assusta é que pouco parece ter mudado. Se o mundo anterior à queda do Muro de Berlim era assustador e injusto, não o tem sido menos desde então. Não foram dados passos significativos no desenvolvimento dos países mais pobres; não foram dados passos significativos na resolução do conflito israelo-palestiniano; não foram dados passos significativos no apoio ao desenvolvimento de um Islão moderno e humanista. E perante a barbaridade do dia 11 de Setembro, assistimos a duas reacções igualmente fundadas num pensamento débil e igualmente insustentáveis no plano ético e político: a dos que alinham, sem pensar duas vezes, na recém-declarada "America''s New War" (que não pretende ser mera metáfora...); e a dos que dizem (ou pensam, sem dizerem) que a América teve o que merecia. A guerra não resolverá nada, sobretudo quando o inimigo não é identificável de forma clara e porque haverá sempre um novo candidato ao exercício do terrorismo; e a simpatia com o presente atentado é suicidária porque o fanatismo terrorista não considera ninguém seu amigo e não poupará ninguém quando atacar de novo.

2 - Os culpados devem ser presos e julgados, assim como podem e devem ser impostas sanções aos países que albergam e promovem grupos terroristas. Mas, sobretudo, esta é a oportunidade (a oportunidade trágica...) para criar uma nova segurança colectiva, cujo fundamento óbvio deverá ser a justiça global nos planos económico, político e cultural. A perseguição e julgamento dos terroristas contribuirá para uma nova ordem mundial se, ao mesmo tempo,

forem dados passos decisivos para a resolução das causas remotas deste caos: desde logo, a resolução do problema palestiniano. Tudo o resto - "America''s new war" - poderá satisfazer apenas um compreensível desejo de vingança. Poderá, quando muito, apaziguar os nossos medos por alguns meses. Mas não só não resolverá nada, como não parará o terror a que milhões de pessoas no mundo não-ocidental têm sido sujeitas. Se sempre foi verdade que a escalada de violência só gera mais violência, imagine-se o que nos espera quando uma das partes é o terrorismo que desvia aviões com armas brancas. O que não

devemos nem podemos deixar acontecer é que o 11 de Setembro seja a desculpa ideal para o governo dos EUA garantir militarmente o que tem vindo a (des)fazer na política e na economia globais.

marcar artigo