EXPRESSO: Opinião

22-03-2002
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Estilo

Maria João Avillez

«O autarca suspendeu o mandato no município e reassumiu ou vai reassumir o de parlamentar, alegando a necessidade de fazer mais uns requerimentos ao Governo em prol da região. Como não há governo e o Parlamento não funciona e está a horas de ser extinto, estranha-se o gesto. Mas fica-se com o exemplo. E com muita pena.»

Sábado, 19

«NÃO podemos continuar na política do bota abaixo permanente», suspirou um acabrunhado Jorge Sampaio. Mas mesmo que o exercício da memória incomode os socialistas agora que o PS vai partir para outra como se nada fosse — ou, melhor, como se nada tivesse sido — convém lembrar que foi Bruxelas que patrocinou o bota abaixo, com severas críticas aos escombros da governação Guterres. É o que se chama engolir o fel até ao fim. Mas não só a Europa faz bota abaixo. São também antigos — e actuais — ministros que contestam na praça pública os métodos e as metas do ainda chefe, dantes tão amado e agora exclusivamente devolvido a si próprio e envolto em espesso manto de silêncio, mas nunca se ouviu tão audível silêncio; são militantes que por secções e federações fora atiram para o ar com azedas e ressentidas críticas aos anos socialistas (a tal ponto que o PS se viu obrigado a pôr onerosos cartazes nas ruas do país, publicitando 65 irrisórias medidas de governação!). E é o próprio Ferro Rodrigues quem assassina com mão fria o estéril «diálogo» enquanto lamenta (?) que o Estado esteja com a autoridade «enfraquecida». Ou seja, o bota abaixo está entregue ao... PS. Não é preciso a oposição maçar-se com isso. O que ela tem pela frente é bastante mais importante.

Domingo, 20

NÃO TENHO a certeza de que o Congresso Popular tenha servido para alguma coisa e caíram-me mal alguns «incidentes processuais». Pedem-nos que acreditemos neles. Mas se ficou no ar algum «benefício da dúvida», ele tem prazo de duração: 56 dias. Ou seja, a distância que vai de hoje até ao dia das eleições.

Segunda, 21

TRATAVA-SE, disseram eles, de «estilo», e mesmo que seja difícil dizer o que isto seja, tratou-se de estilo. Num segundo andar da Rua das Flores, envolto pelo perfume de Eça — diz-se que os enfeites de estuque destes tectos viram correr o sangue d’A Tragédia da Rua das Flores — o ar estava pintado de preto e prata, havia mulheres muito bonitas e pairava um brilhozinho de festa. A plateia, diversíssima, acorreu à chamada de Carlos Piçarra (Lux), subiu ao ateliê do costureiro Manuel Alves, hospedeiro amável deste encontro, e por entre velas, champanhe e iguarias raras discorreu civilizadamente sobre a agenda dos dias. Actores, jornalistas, políticos, empresários, artistas, «designers» trocaram estados de alma e de caminho, exibiram fé ou esgrimiram a descrença quanto ao impreciso momento que vivemos. Não se mudou o mundo nem se salvou a pátria mas são também noites como esta que pintam a aguarela do tempo que passa.

Terça, 22

FEITICEIRA Bethânia. Para mim ela é obrigatória. Há um bom par de anos conhecemo-nos no Rio, onde muito conversámos, revimo-nos em Lisboa há tempos, reencontrámo-nos hoje. Ninguém canta assim. O Coliseu estava suspenso A música dos poetas — e quem atende aos poetas como Bethânia? E quem nos diz os nossos poetas como Bethânia? — foi feita para a música desta voz, timbre velado que balança ora sussurro ora rugido, ora ciciado murmúrio, ora tempestade irada sobre as águas da poesia. Maria Bethânia no seu momento maior, usando a voz como nunca. Mas ninguém canta assim.

Quarta, 23

ÀS VEZES acho que nascemos com defeito de fabrico. Ou então que não valemos a pena. O presidente da Câmara das Caldas (PSD), reeleito pela enésima vez, achou-se no direito de assumir o seu lugar de deputado por 45 dias. (É de resto conhecido este «desvio» cultural e cívico que leva os portugueses a permanentemente reivindicarem direitos sem nunca lhes ocorrer qualquer espécie de dever). O autarca suspendeu o mandato no município e reassumiu ou vai reassumir o de parlamentar, alegando a necessidade de fazer mais uns requerimentos ao Governo em prol da região. Como não há governo e o Parlamento não funciona e está a horas de ser extinto, estranha-se o gesto. Mas fica-se com o exemplo. E com muita pena.

Quinta, 24

ESTAVAM lá Manuel Lucena, Bénard da Costa, Fernando Lopes, Almeida Faria, Medeiros Ferreira, Salgado Matos, Miguel Lobo Antunes. Não por acaso, mas por causa de Jorge Silva Melo, criatura genialmente criativa. O seu último filme, António, um rapaz de Lisboa, é um olhar enternecido, compadecido, sobre uma fatia de gente suburbana estampada sobre uma Lisboa suburbana. Sem deslizes nem falsas notas, é filmado com urgência, com fome, com electricidade, com pressa. Como um vertiginoso carrossel irremediavelmente condenado a girar. Uma história sem passado nem futuro, feita apenas do apelo do instante. Do instante deste filme. Pode ser que o Jorge me queira explicar tudo isto e o resto, no domingo, à mesa da SIC Notícias.

E-mail: mjoaoavillez@hotmail.com

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Maria João Avillez

«O autarca suspendeu o mandato no município e reassumiu ou vai reassumir o de parlamentar, alegando a necessidade de fazer mais uns requerimentos ao Governo em prol da região. Como não há governo e o Parlamento não funciona e está a horas de ser extinto, estranha-se o gesto. Mas fica-se com o exemplo. E com muita pena.»

Sábado, 19

«NÃO podemos continuar na política do bota abaixo permanente», suspirou um acabrunhado Jorge Sampaio. Mas mesmo que o exercício da memória incomode os socialistas agora que o PS vai partir para outra como se nada fosse — ou, melhor, como se nada tivesse sido — convém lembrar que foi Bruxelas que patrocinou o bota abaixo, com severas críticas aos escombros da governação Guterres. É o que se chama engolir o fel até ao fim. Mas não só a Europa faz bota abaixo. São também antigos — e actuais — ministros que contestam na praça pública os métodos e as metas do ainda chefe, dantes tão amado e agora exclusivamente devolvido a si próprio e envolto em espesso manto de silêncio, mas nunca se ouviu tão audível silêncio; são militantes que por secções e federações fora atiram para o ar com azedas e ressentidas críticas aos anos socialistas (a tal ponto que o PS se viu obrigado a pôr onerosos cartazes nas ruas do país, publicitando 65 irrisórias medidas de governação!). E é o próprio Ferro Rodrigues quem assassina com mão fria o estéril «diálogo» enquanto lamenta (?) que o Estado esteja com a autoridade «enfraquecida». Ou seja, o bota abaixo está entregue ao... PS. Não é preciso a oposição maçar-se com isso. O que ela tem pela frente é bastante mais importante.

Domingo, 20

NÃO TENHO a certeza de que o Congresso Popular tenha servido para alguma coisa e caíram-me mal alguns «incidentes processuais». Pedem-nos que acreditemos neles. Mas se ficou no ar algum «benefício da dúvida», ele tem prazo de duração: 56 dias. Ou seja, a distância que vai de hoje até ao dia das eleições.

Segunda, 21

TRATAVA-SE, disseram eles, de «estilo», e mesmo que seja difícil dizer o que isto seja, tratou-se de estilo. Num segundo andar da Rua das Flores, envolto pelo perfume de Eça — diz-se que os enfeites de estuque destes tectos viram correr o sangue d’A Tragédia da Rua das Flores — o ar estava pintado de preto e prata, havia mulheres muito bonitas e pairava um brilhozinho de festa. A plateia, diversíssima, acorreu à chamada de Carlos Piçarra (Lux), subiu ao ateliê do costureiro Manuel Alves, hospedeiro amável deste encontro, e por entre velas, champanhe e iguarias raras discorreu civilizadamente sobre a agenda dos dias. Actores, jornalistas, políticos, empresários, artistas, «designers» trocaram estados de alma e de caminho, exibiram fé ou esgrimiram a descrença quanto ao impreciso momento que vivemos. Não se mudou o mundo nem se salvou a pátria mas são também noites como esta que pintam a aguarela do tempo que passa.

Terça, 22

FEITICEIRA Bethânia. Para mim ela é obrigatória. Há um bom par de anos conhecemo-nos no Rio, onde muito conversámos, revimo-nos em Lisboa há tempos, reencontrámo-nos hoje. Ninguém canta assim. O Coliseu estava suspenso A música dos poetas — e quem atende aos poetas como Bethânia? E quem nos diz os nossos poetas como Bethânia? — foi feita para a música desta voz, timbre velado que balança ora sussurro ora rugido, ora ciciado murmúrio, ora tempestade irada sobre as águas da poesia. Maria Bethânia no seu momento maior, usando a voz como nunca. Mas ninguém canta assim.

Quarta, 23

ÀS VEZES acho que nascemos com defeito de fabrico. Ou então que não valemos a pena. O presidente da Câmara das Caldas (PSD), reeleito pela enésima vez, achou-se no direito de assumir o seu lugar de deputado por 45 dias. (É de resto conhecido este «desvio» cultural e cívico que leva os portugueses a permanentemente reivindicarem direitos sem nunca lhes ocorrer qualquer espécie de dever). O autarca suspendeu o mandato no município e reassumiu ou vai reassumir o de parlamentar, alegando a necessidade de fazer mais uns requerimentos ao Governo em prol da região. Como não há governo e o Parlamento não funciona e está a horas de ser extinto, estranha-se o gesto. Mas fica-se com o exemplo. E com muita pena.

Quinta, 24

ESTAVAM lá Manuel Lucena, Bénard da Costa, Fernando Lopes, Almeida Faria, Medeiros Ferreira, Salgado Matos, Miguel Lobo Antunes. Não por acaso, mas por causa de Jorge Silva Melo, criatura genialmente criativa. O seu último filme, António, um rapaz de Lisboa, é um olhar enternecido, compadecido, sobre uma fatia de gente suburbana estampada sobre uma Lisboa suburbana. Sem deslizes nem falsas notas, é filmado com urgência, com fome, com electricidade, com pressa. Como um vertiginoso carrossel irremediavelmente condenado a girar. Uma história sem passado nem futuro, feita apenas do apelo do instante. Do instante deste filme. Pode ser que o Jorge me queira explicar tudo isto e o resto, no domingo, à mesa da SIC Notícias.

E-mail: mjoaoavillez@hotmail.com

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