EXPRESSO: Cartaz

02-11-2001
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Portugal em transe

Um excelente estudo sobre o 25 de Abril e a construção da democracia portuguesa

António Costa Pinto

ANA BAIÃO José Medeiros Ferreira

ANA BAIÃO José Medeiros Ferreira

Com, o historiador e político José Medeiros Ferreira adaptou para um público de língua espanhola a sua síntese sobre o 25 de Abril de 1974 e a transição democrática, último volume dadirigida por José Mattoso para o Círculo de Leitores, no início dos anos 90. Uma edição de grande utilidade, pois, se já vão existindo alguns livros de historiadores portugueses traduzidos para francês e inglês, são curiosamente escassas as edições em castelhano.

Citando de cor, lembro-me apenas dos livros de Miriam Halpern Pereira, J. S. da Silva Dias, António Manuel Hespanha e, mais recentemente, de uma obra colectiva coordenada pelo autor destas linhas. Ora, como sabemos, se alguns leitores portugueses se arriscam a ler em castelhano, o contrário não acontece, pelo que a vizinhança, neste caso, pode ser ilusóriaHistoriador das relações internacionais portuguesas, José Medeiros Ferreira foi pioneiro no estudo da transição portuguesa, com o seu ensaio histórico sobre o 25 de Abril, mas foi com este livro que realizou a primeira síntese sobre os primeiros anos da democracia portuguesa. Trata-se de uma história com uma carga descritiva forte, destinada ao grande público, e escrita num período em que pouca investigação existia sobre a transição portuguesa e os seus actores. Apesar deste objectivo de síntese, esta versão espanhola de Portugal em Transe não deixa de apontar hipóteses de interpretação, que se foram tornando caras ao autor, algumas desenvolvidas noutros estudos, bem como de discutir teses de outros estudiosos dos anos iniciais da democracia portuguesa.

Nos anos 80, para além de alguns politólogos estrangeiros, poucas obras foram dedicadas à transição, e algumas destas, como refere o autor na sua introdução, preferiram «analisar o predomínio das continuidades entre o regime salazarista e corporativo e o Estado democrático» (pág. 8). Não foi esta, declaradamente, a opção de José Medeiros Ferreira.

O autor intitula o seu primeiro capítulo «Do golpe de Estado à Revolução», vocábulo entretanto quase desaparecido na literatura sobre o tema, que normalmente privilegia a fase de consolidação democrática a partir de 1976, evitando este estranho «'parêntesis', para alguns pouco civilizado», da história contemporânea portuguesa. Esta evolução é normal por parte de algumas disciplinas que nunca conheceram particulares instrumentos de análise para o estudo de crises de mudança de regime do tipo da portuguesa, particularmente quando o marxismo desapareceu do campo intelectual. Competirá assim aos historiadores tentar analisar com instrumentos mais amplos aquele curto e curioso PREC, apanhado na encruzilhada de uma crise do Estado, militares dominando a cena, fortes movimentos sociais, descolonização, nacionalizações e tudo o resto, ainda que rapidamente seguido por um regresso à estrada da consolidação da democracia.

Os primeiros capítulos, que abordam justamente o período de 1974-75, têm como fio condutor a presença militar e o conflito em torno da descolonização que preside à institucionalização do MFA. Encontram-se aqui alguns temas que o autor desenvolverá noutros trabalhos sobre a instituição militar e a sua estratégia de intervenção política, concluindo que «uma das características do processo revolucionário português foi a capacidade estratégica da instituição militar em organizar com os partidos políticos o restabelecimento de um regime democrático pluralista» (pág. 338).

Um dos capítulos mais interessantes da obra é o terceiro, sobre «a descolonização e as suas consequências». É aqui que Medeiros Ferreira imbrica as crises na metrópole, a institucionalização do MFA e as tensões com Spínola a propósito da descolonização. Contrariando a tese segundo a qual Angola e a sua descolonização foi um factor central das peripécias políticas metropolitanas conducentes ao 25 de Novembro, o autor salienta a importância de outros factores a partir de inícios de 1975, sublinhando com ironia que «nunca a metrópole foi tão egocêntrica, como durante o processo de descolonização» (pág. 109), onde esta «dispensou», de um só golpe de rins, a «periferia» colonial. Outra dimensão particularmente bem estruturada ao longo da obra é a internacional. Medeiros Ferreira vai sempre acompanhando a cena internacional e tomando posição perante algumas incógnitas da época, nomeadamente sobre a posição da União Soviética perante a transição portuguesa e a descolonização.

A obra reflecte evidentemente a historiografia sobre a transição portuguesa e é claramente mais forte na dimensão política do que na social e económica. No seu conjunto, foi a síntese possível no início dos anos 90. O seu resultado é um excelente livro que - não menos importante - foi escrito sem concessões a ideologismos vulgares.

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Portugal em transe

Um excelente estudo sobre o 25 de Abril e a construção da democracia portuguesa

António Costa Pinto

ANA BAIÃO José Medeiros Ferreira

ANA BAIÃO José Medeiros Ferreira

Com, o historiador e político José Medeiros Ferreira adaptou para um público de língua espanhola a sua síntese sobre o 25 de Abril de 1974 e a transição democrática, último volume dadirigida por José Mattoso para o Círculo de Leitores, no início dos anos 90. Uma edição de grande utilidade, pois, se já vão existindo alguns livros de historiadores portugueses traduzidos para francês e inglês, são curiosamente escassas as edições em castelhano.

Citando de cor, lembro-me apenas dos livros de Miriam Halpern Pereira, J. S. da Silva Dias, António Manuel Hespanha e, mais recentemente, de uma obra colectiva coordenada pelo autor destas linhas. Ora, como sabemos, se alguns leitores portugueses se arriscam a ler em castelhano, o contrário não acontece, pelo que a vizinhança, neste caso, pode ser ilusóriaHistoriador das relações internacionais portuguesas, José Medeiros Ferreira foi pioneiro no estudo da transição portuguesa, com o seu ensaio histórico sobre o 25 de Abril, mas foi com este livro que realizou a primeira síntese sobre os primeiros anos da democracia portuguesa. Trata-se de uma história com uma carga descritiva forte, destinada ao grande público, e escrita num período em que pouca investigação existia sobre a transição portuguesa e os seus actores. Apesar deste objectivo de síntese, esta versão espanhola de Portugal em Transe não deixa de apontar hipóteses de interpretação, que se foram tornando caras ao autor, algumas desenvolvidas noutros estudos, bem como de discutir teses de outros estudiosos dos anos iniciais da democracia portuguesa.

Nos anos 80, para além de alguns politólogos estrangeiros, poucas obras foram dedicadas à transição, e algumas destas, como refere o autor na sua introdução, preferiram «analisar o predomínio das continuidades entre o regime salazarista e corporativo e o Estado democrático» (pág. 8). Não foi esta, declaradamente, a opção de José Medeiros Ferreira.

O autor intitula o seu primeiro capítulo «Do golpe de Estado à Revolução», vocábulo entretanto quase desaparecido na literatura sobre o tema, que normalmente privilegia a fase de consolidação democrática a partir de 1976, evitando este estranho «'parêntesis', para alguns pouco civilizado», da história contemporânea portuguesa. Esta evolução é normal por parte de algumas disciplinas que nunca conheceram particulares instrumentos de análise para o estudo de crises de mudança de regime do tipo da portuguesa, particularmente quando o marxismo desapareceu do campo intelectual. Competirá assim aos historiadores tentar analisar com instrumentos mais amplos aquele curto e curioso PREC, apanhado na encruzilhada de uma crise do Estado, militares dominando a cena, fortes movimentos sociais, descolonização, nacionalizações e tudo o resto, ainda que rapidamente seguido por um regresso à estrada da consolidação da democracia.

Os primeiros capítulos, que abordam justamente o período de 1974-75, têm como fio condutor a presença militar e o conflito em torno da descolonização que preside à institucionalização do MFA. Encontram-se aqui alguns temas que o autor desenvolverá noutros trabalhos sobre a instituição militar e a sua estratégia de intervenção política, concluindo que «uma das características do processo revolucionário português foi a capacidade estratégica da instituição militar em organizar com os partidos políticos o restabelecimento de um regime democrático pluralista» (pág. 338).

Um dos capítulos mais interessantes da obra é o terceiro, sobre «a descolonização e as suas consequências». É aqui que Medeiros Ferreira imbrica as crises na metrópole, a institucionalização do MFA e as tensões com Spínola a propósito da descolonização. Contrariando a tese segundo a qual Angola e a sua descolonização foi um factor central das peripécias políticas metropolitanas conducentes ao 25 de Novembro, o autor salienta a importância de outros factores a partir de inícios de 1975, sublinhando com ironia que «nunca a metrópole foi tão egocêntrica, como durante o processo de descolonização» (pág. 109), onde esta «dispensou», de um só golpe de rins, a «periferia» colonial. Outra dimensão particularmente bem estruturada ao longo da obra é a internacional. Medeiros Ferreira vai sempre acompanhando a cena internacional e tomando posição perante algumas incógnitas da época, nomeadamente sobre a posição da União Soviética perante a transição portuguesa e a descolonização.

A obra reflecte evidentemente a historiografia sobre a transição portuguesa e é claramente mais forte na dimensão política do que na social e económica. No seu conjunto, foi a síntese possível no início dos anos 90. O seu resultado é um excelente livro que - não menos importante - foi escrito sem concessões a ideologismos vulgares.

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