Carta aberta a José Medeiros Ferreira

03-01-2002
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Carta Aberta a José Medeiros Ferreira

Por EURICO FIGUEIREDO

Quinta-feira, 27 de Dezembro de 2001 Meu caro José Medeiros Ferreira: Mais uma vez, a grande amizade que nos liga há quarenta anos vai-me servir como pano de fundo de cumplicidade para compreenderes as reservas que manifesto ao teu simpático apelo para que desça "à arena do combate pela esquerda abandonada" (teu artigo do DN de 18 de Dezembro), referindo-me com mais meia dúzia de nomes sonantes do nosso mundo intelectual. Honras-me mas inquietas-me. Porque generalizas as tuas preocupações a toda a esquerda portuguesa quando nos devíamos preocupar mais em arrumar a nossa própria casa, em descalabro, o centro-esquerda, do que a cuidar da do alheio, pretensamente à nossa esquerda, e que se exprime politicamente no PCP e BE. Antes, todavia, de avançar para o fundamental, surpreende-me a leitura que fazes do abandono de António Guterres, que só terá futuro político em Portugal, para nosso azar, se outros, com a tua credibilidade, não quiserem ver o mais pertinente. Lida à luz da sua personalidade, a demissão de A. Guterres só pode ser encarada como sinal de cobardia e premeditação, procurando, depois de ter destruído a credibilidade do PS, esquivar-se a uma previsível derrota eleitoral nas próximas legislativas para se preservar para uma eventual candidatura à Presidência da República. Não se demitiu após a estrondosa derrota no referendo da regionalização, principal bandeira do PS às eleições de 95. A cobardia esclarece toda a sua trajectória política desde o momento que escolheu para conquista da liderança do PS, à retórica do diálogo, à indecisão como primeiro-ministro, à forma como se viu livre de muitos dos seus colaboradores sem os encarar olhos nos olhos. A crise dos partidos que se reclamam da esquerda em Portugal é, como dizes, evidente. Mas, como podes confirmar no livro da minha autoria que há dias te ofereci, "Valores e Gerações, Anos 80 Anos 90", o hiato que separa o centro-esquerda e a esquerda em Portugal, nos jovens, tem aumentado e não diminuído nos últimos anos, tornando a preocupação com a globalidade das formações políticas que se afirmam de esquerda não só ambígua mas mesmo suspeita. É nos jovens de centro-esquerda (geralmente muito próximo do centro-direita), os mais reformistas, que vamos encontrar os sectores da população portuguesa que mais se identificam com as duas opções que marcam o regime do pós 25 de Abril: democracia política e integração europeia segundo um modelo confederal. Neles se revela um maior apreço pelo estado de direito. Também se expressa no centro-esquerda uma maior exigência em relação aos serviços públicos encarados actualmente como extremamente degradados. O centro-esquerda é o que mais se revê nas mudanças que se processaram em Portugal no pós 25 de Abril dando à mulher um estatuto tendencialmente igual ao do homem. Que mais apoia os valores em franca ascensão de defesa do meio ambiente. Mas, curiosamente, é também no centro-esquerda que encontramos um maior distanciamento em relação aos partidos políticos. Só 8.4 dos jovens universitários de centro-esquerda se dizem muito ligados a um partido político, para 11.8 de centro-direita, 23.2 de direita e 27.5 de esquerda - nos pais temos 7.7 centro-esquerda, 10.4 centro-direita, 22.1 direita e 25.3 esquerda. O que, associado ao facto dos valores dos jovens universitários de centro-esquerda se encontrarem bem mais próximos dos do centro-direita, e a generalizar este facto para o conjunto da população portuguesa, nos permite compreender a colossal tranferência de votos que facilmente se processa entre os partidos que bem ou mal se colocam no espaço do centro-esquerda e centro-direita, Partido Socialista e Partido Social Democrata. O que é extremamente saudável para a democracia portuguesa... mas não garante qualquer fidelidade aos partidos que actualmente se arrogam representar o espaço central! Meu caro José Medeiros Ferreira. Se leste com alguma atenção o referido livro que analisa os valores de duas décadas e duas gerações, pais e filhos, sexos, opções políticas e classes sociais, também poderás constatar que se na nossa geração há alguma continuidade de valores entre o centro esquerda e a esquerda, nos jovens a continuidade é bem maior entre os centro esquerda e centro direita e entre a esquerda e a direita. Muitos dados a que terás acesso no referido livro vão no sentido de admitir existir um grande mal estar nos jovens das camadas mais altas da população portuguesa que se traduz em opções políticas nos dois extremos do espectro político português, com potencialmente votos de protesto no BE-PCP ou PP. São os jovens da classe mais alta da sociedade portuguesa os que mais votam nos extremos tanto à direita como à esquerda, com uma grande proximidade quanto aos valores. Com opções cada vez mais antidemocráticas, anti-europeias, pondo também em causa muitas dos valores igualitaristas saídas da revolução de Abril, exactamente ao contrário dos jovens que se afirmam do centro-esquerda e até do centro-direita. Daí o parecer-me bem mais prudente cuidar do espaço político onde os dois nos situamos, tu ainda no PS, eu sem compromissos partidários. Sendo certo que a governação socialista a que tu, imagino, bem contrafeito, deste apoio na Assembleia da República, não correspondeu de maneira nenhuma aos valores dos portugueses que se reconhecem politicamente no espaço do centro-esquerda. Sendo certamente útil procurar recredibilizar o único partido que continua a situar-se nesse espaço. O que me parece deverá ser sobretudo obra dos seus militantes. Porque dificilmente o PS reencontrará os independentes disponíveis dos Estados Gerais para se comprometerem com um PS completamente desacreditado. Irás encontrar os mesmos ou parecidos nos "Estados Gerais" do PSD. Salvo, eventualmente, numa perspectiva de poderem participar num projecto de refundação de um partido de centro-esquerda, que para já só tem sentido se partir da iniciativa do PS. Sinto poder vir a ser esta a melhor solução, mas só tenderá a impor-se perante desaires futuros do Partido Socialista. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

O fantasma dos "boys"

OPINIÃO

O PSD à esquerda e à direita

Viva o euro!

Vanessa II

Acuso

Carta aberta a José Medeiros Ferreira

O FIO DO HORIZONTE

Uma Europa que ainda dança

CARTAS AO DIRECTOR

Há um anarquista em cada português?

Nós, portugueses, somos assassinos?

Citações

Carta Aberta a José Medeiros Ferreira

Por EURICO FIGUEIREDO

Quinta-feira, 27 de Dezembro de 2001 Meu caro José Medeiros Ferreira: Mais uma vez, a grande amizade que nos liga há quarenta anos vai-me servir como pano de fundo de cumplicidade para compreenderes as reservas que manifesto ao teu simpático apelo para que desça "à arena do combate pela esquerda abandonada" (teu artigo do DN de 18 de Dezembro), referindo-me com mais meia dúzia de nomes sonantes do nosso mundo intelectual. Honras-me mas inquietas-me. Porque generalizas as tuas preocupações a toda a esquerda portuguesa quando nos devíamos preocupar mais em arrumar a nossa própria casa, em descalabro, o centro-esquerda, do que a cuidar da do alheio, pretensamente à nossa esquerda, e que se exprime politicamente no PCP e BE. Antes, todavia, de avançar para o fundamental, surpreende-me a leitura que fazes do abandono de António Guterres, que só terá futuro político em Portugal, para nosso azar, se outros, com a tua credibilidade, não quiserem ver o mais pertinente. Lida à luz da sua personalidade, a demissão de A. Guterres só pode ser encarada como sinal de cobardia e premeditação, procurando, depois de ter destruído a credibilidade do PS, esquivar-se a uma previsível derrota eleitoral nas próximas legislativas para se preservar para uma eventual candidatura à Presidência da República. Não se demitiu após a estrondosa derrota no referendo da regionalização, principal bandeira do PS às eleições de 95. A cobardia esclarece toda a sua trajectória política desde o momento que escolheu para conquista da liderança do PS, à retórica do diálogo, à indecisão como primeiro-ministro, à forma como se viu livre de muitos dos seus colaboradores sem os encarar olhos nos olhos. A crise dos partidos que se reclamam da esquerda em Portugal é, como dizes, evidente. Mas, como podes confirmar no livro da minha autoria que há dias te ofereci, "Valores e Gerações, Anos 80 Anos 90", o hiato que separa o centro-esquerda e a esquerda em Portugal, nos jovens, tem aumentado e não diminuído nos últimos anos, tornando a preocupação com a globalidade das formações políticas que se afirmam de esquerda não só ambígua mas mesmo suspeita. É nos jovens de centro-esquerda (geralmente muito próximo do centro-direita), os mais reformistas, que vamos encontrar os sectores da população portuguesa que mais se identificam com as duas opções que marcam o regime do pós 25 de Abril: democracia política e integração europeia segundo um modelo confederal. Neles se revela um maior apreço pelo estado de direito. Também se expressa no centro-esquerda uma maior exigência em relação aos serviços públicos encarados actualmente como extremamente degradados. O centro-esquerda é o que mais se revê nas mudanças que se processaram em Portugal no pós 25 de Abril dando à mulher um estatuto tendencialmente igual ao do homem. Que mais apoia os valores em franca ascensão de defesa do meio ambiente. Mas, curiosamente, é também no centro-esquerda que encontramos um maior distanciamento em relação aos partidos políticos. Só 8.4 dos jovens universitários de centro-esquerda se dizem muito ligados a um partido político, para 11.8 de centro-direita, 23.2 de direita e 27.5 de esquerda - nos pais temos 7.7 centro-esquerda, 10.4 centro-direita, 22.1 direita e 25.3 esquerda. O que, associado ao facto dos valores dos jovens universitários de centro-esquerda se encontrarem bem mais próximos dos do centro-direita, e a generalizar este facto para o conjunto da população portuguesa, nos permite compreender a colossal tranferência de votos que facilmente se processa entre os partidos que bem ou mal se colocam no espaço do centro-esquerda e centro-direita, Partido Socialista e Partido Social Democrata. O que é extremamente saudável para a democracia portuguesa... mas não garante qualquer fidelidade aos partidos que actualmente se arrogam representar o espaço central! Meu caro José Medeiros Ferreira. Se leste com alguma atenção o referido livro que analisa os valores de duas décadas e duas gerações, pais e filhos, sexos, opções políticas e classes sociais, também poderás constatar que se na nossa geração há alguma continuidade de valores entre o centro esquerda e a esquerda, nos jovens a continuidade é bem maior entre os centro esquerda e centro direita e entre a esquerda e a direita. Muitos dados a que terás acesso no referido livro vão no sentido de admitir existir um grande mal estar nos jovens das camadas mais altas da população portuguesa que se traduz em opções políticas nos dois extremos do espectro político português, com potencialmente votos de protesto no BE-PCP ou PP. São os jovens da classe mais alta da sociedade portuguesa os que mais votam nos extremos tanto à direita como à esquerda, com uma grande proximidade quanto aos valores. Com opções cada vez mais antidemocráticas, anti-europeias, pondo também em causa muitas dos valores igualitaristas saídas da revolução de Abril, exactamente ao contrário dos jovens que se afirmam do centro-esquerda e até do centro-direita. Daí o parecer-me bem mais prudente cuidar do espaço político onde os dois nos situamos, tu ainda no PS, eu sem compromissos partidários. Sendo certo que a governação socialista a que tu, imagino, bem contrafeito, deste apoio na Assembleia da República, não correspondeu de maneira nenhuma aos valores dos portugueses que se reconhecem politicamente no espaço do centro-esquerda. Sendo certamente útil procurar recredibilizar o único partido que continua a situar-se nesse espaço. O que me parece deverá ser sobretudo obra dos seus militantes. Porque dificilmente o PS reencontrará os independentes disponíveis dos Estados Gerais para se comprometerem com um PS completamente desacreditado. Irás encontrar os mesmos ou parecidos nos "Estados Gerais" do PSD. Salvo, eventualmente, numa perspectiva de poderem participar num projecto de refundação de um partido de centro-esquerda, que para já só tem sentido se partir da iniciativa do PS. Sinto poder vir a ser esta a melhor solução, mas só tenderá a impor-se perante desaires futuros do Partido Socialista. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

O fantasma dos "boys"

OPINIÃO

O PSD à esquerda e à direita

Viva o euro!

Vanessa II

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Há um anarquista em cada português?

Nós, portugueses, somos assassinos?

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