EXPRESSO: Artigo

11-11-2001
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Albuquerque Mendes (Auto)-retrato de um artista

O Museu de Serralves inaugura quinta-feira, dia 15, «Confesso», a primeira grande exposição antológica de Albuquerque Mendes. Pioneiro na arte da «performance» em Portugal, o pintor apresenta uma obra marcada pela exploração exaustiva e por vezes irónica da iconografia católica. Os quadros surgem povoados de padres, freiras, cruzes, sudários, espinhos ou Cristos, numa espécie de oferenda profana também recheada de colagens hipersexualizadas.

Texto de Valdemar Cruz Auto-retrato de Albuquerque Mendes (2001), inédito produzido para a revista do EXPRESSO Em criança, Albuquerque Mendes penava os dias consumido pela angústia de não conseguir decidir-se entre ser padre ou pintor. A única certeza passava pelas mãos. Em qualquer dos cenários imaginava-as como actrizes principais desse devir imaginário. Sonhava-lhes os movimentos, impulsionados pelo ardor da pregação da palavra de Deus, ou pelo vigor das pinceladas nas telas vazias. Não saiu padre. Cresceu pintor. Nos seus quadros gosta de fabular a partir da iconografia judaico-cristã. Povoa-os de padres, freiras, cruzes, sudários, espinhos, Cristos. Encena o rito das vias-sacras. Faz do auto-retrato uma religião intensa e obsessiva, sem paralelo em qualquer outro pintor português contemporâneo. Albuquerque é o Cristo crucificado em tamanho natural. Pode ser o peregrino em demanda de Santiago. Em simultâneo será o contrário de tudo isso, quando se compraz em ironizar com o lado festivo e pagão do universo católico ou em expor de um modo quase pornográfico partes sensíveis do corpo humano. Em criança, Albuquerque Mendes penava os dias consumido pela angústia de não conseguir decidir-se entre ser padre ou pintor. A única certeza passava pelas mãos. Em qualquer dos cenários imaginava-as como actrizes principais desse devir imaginário. Sonhava-lhes os movimentos, impulsionados pelo ardor da pregação da palavra de Deus, ou pelo vigor das pinceladas nas telas vazias. Não saiu padre. Cresceu pintor. Nos seus quadros gosta de fabular a partir da iconografia judaico-cristã. Povoa-os de padres, freiras, cruzes, sudários, espinhos, Cristos. Encena o rito das vias-sacras. Faz do auto-retrato uma religião intensa e obsessiva, sem paralelo em qualquer outro pintor português contemporâneo. Albuquerque é o Cristo crucificado em tamanho natural. Pode ser o peregrino em demanda de Santiago. Em simultâneo será o contrário de tudo isso, quando se compraz em ironizar com o lado festivo e pagão do universo católico ou em expor de um modo quase pornográfico partes sensíveis do corpo humano. O jovem Albuquerque com a irmã, de férias de Verão, na Figueira da Foz José Bernardo de Albuquerque Mendes nasceu em Trancoso, na Beira Alta, há 48 anos. Quando, a 17 de Março de 1953, a mãe, Henriqueta Fernanda d'Albuquerque, expulsa das entranhas uma criança perfilhada pelo funcionário público José Mendes, um outro José, de apelido Estaline, morrera há apenas 12 dias. Vinte e oito anos depois, Albuquerque marca um inesperado encontro com o «tio» Zé na bem comunista cidade de Almada. Corre o ano de 1981 e na outra margem decorre a «Alternativa, Festival Internacional de Arte Viva». O barbudo Albuquerque Mendes é já a principal referência das «performances» em Portugal. Pioneiro nacional, terá sido um dos primeiros artistas na Europa a servir-se do espaço urbano como local de intervenção artística. Em Almada, tudo decorre no interior de uma barbearia, no centro da cidade. A curiosidade esmaga os espaços disponíveis na rua e no interior da barbearia. Albuquerque pintara um quadro de Lenine e Estaline e pendura-o frente às cadeiras do barbeiro. Egídio Álvaro, seu colaborador na «performance», senta-se numa das cadeiras. Tem a cabeça rapada e uma barbicha que o fazem parecer-se com Lenine. Albuquerque senta-se noutra cadeira. O barbeiro inicia a função. Corta a barba e o cabelo do pintor até construir uma semelhança com Estaline. No final, Albuquerque sai. Deixa a barbearia com o quadro exposto e não diz uma palavra. No ar fica a dúvida sobre as suas reais intenções. Isso é o que menos lhe importa e mais o diverte. Tal como sucedera em 1975, em Viana do Castelo, naquela que é considerada a primeira verdadeira «performance» em espaço urbano realizada em Portugal. José Bernardo de Albuquerque Mendes nasceu em Trancoso, na Beira Alta, há 48 anos. Quando, a 17 de Março de 1953, a mãe, Henriqueta Fernanda d'Albuquerque, expulsa das entranhas uma criança perfilhada pelo funcionário público José Mendes, um outro José, de apelido Estaline, morrera há apenas 12 dias. Vinte e oito anos depois, Albuquerque marca um inesperado encontro com o «tio» Zé na bem comunista cidade de Almada. Corre o ano de 1981 e na outra margem decorre a «Alternativa, Festival Internacional de Arte Viva». O barbudo Albuquerque Mendes é já a principal referência das «performances» em Portugal. Pioneiro nacional, terá sido um dos primeiros artistas na Europa a servir-se do espaço urbano como local de intervenção artística. Em Almada, tudo decorre no interior de uma barbearia, no centro da cidade. A curiosidade esmaga os espaços disponíveis na rua e no interior da barbearia. Albuquerque pintara um quadro de Lenine e Estaline e pendura-o frente às cadeiras do barbeiro. Egídio Álvaro, seu colaborador na «performance», senta-se numa das cadeiras. Tem a cabeça rapada e uma barbicha que o fazem parecer-se com Lenine. Albuquerque senta-se noutra cadeira. O barbeiro inicia a função. Corta a barba e o cabelo do pintor até construir uma semelhança com Estaline. No final, Albuquerque sai. Deixa a barbearia com o quadro exposto e não diz uma palavra. No ar fica a dúvida sobre as suas reais intenções. Isso é o que menos lhe importa e mais o diverte. Tal como sucedera em 1975, em Viana do Castelo, naquela que é considerada a primeira verdadeira «performance» em espaço urbano realizada em Portugal. Auto-retrato (1996), acrílico sobre papel, 60X58 cm (colecção particular de Leiria) Albuquerque recorda ter-se socorrido da simbologia católica. «Fiz um percurso como se fosse uma procissão.» Havia ali «uma celebração da arte». O artista sai da igreja e leva à frente o sacristão a tocar uma sineta. «Quando saio, há pessoas que se ajoelham, porque viam o sacristão com a cruz e julgavam-me um messias.» Em Lisboa, Albuquerque repete esta «performance», em Agosto de 1975, no Largo Camões, mas ninguém fez a mesma leitura. «Levava pregos, martelos, e deu muita celeuma, com um caldeirão de pessoas a questionarem tudo aquilo, porque julgavam que tinha alguma coisa a ver com comunismo.» O mais intrigante ainda é o silêncio do «performer». «Nunca digo nada, dado que tudo vive dos gestos e da ritualização de alguns momentos.» Albuquerque recorda ter-se socorrido da simbologia católica. «Fiz um percurso como se fosse uma procissão.» Havia ali «uma celebração da arte». O artista sai da igreja e leva à frente o sacristão a tocar uma sineta. «Quando saio, há pessoas que se ajoelham, porque viam o sacristão com a cruz e julgavam-me um messias.» Em Lisboa, Albuquerque repete esta «performance», em Agosto de 1975, no Largo Camões, mas ninguém fez a mesma leitura. «Levava pregos, martelos, e deu muita celeuma, com um caldeirão de pessoas a questionarem tudo aquilo, porque julgavam que tinha alguma coisa a ver com comunismo.» O mais intrigante ainda é o silêncio do «performer». «Nunca digo nada, dado que tudo vive dos gestos e da ritualização de alguns momentos.» Agora, este funcionário do Instituto Português da Juventude, com licença sem vencimento há um ano, já raras vezes realiza uma «performance». A mais recente ocorreu a 18 de Julho de 1997, na Baixa do Porto. «A sagração da pintura», foi o título escolhido pelo jornal «Público» para noticiar o evento. No corpo da notícia, o jornalista dizia que, «se algum público preferia mandar trabalhar Albuquerque Mendes, outro encarou aquele momento com um respeito religioso, havendo mesmo casos de pessoas que recusaram abandonar o local devido ao receio de serem afectadas por um qualquer mau-olhado». Vinte anos antes, o artista realizara naquele mesmo local a sua última «performance» de rua. No jornal «O Primeiro de Janeiro» surge o relato onde se evidencia a diferença de mundos entretanto nascida. O jornalista recolhe alguns comentários suscitados pela passagem de Albuquerque e não se escusa de os anteceder de um significativo comentário: «Assistimos, então, ao impacto público da patética cena.» Vêm, a seguir, as vozes do povo: «Ó mulher, parece Cristo que volta cá baixo - dizia uma, enquanto outra condenava a excentricidade: Agora é que estamos perdidos.» Mais adiante um calceteiro desabafa: «Ó pá, a quem trabalha não se tira a fotografia e àquele malandro que vai ali, vão a acheirá-lo todo!» Vestido por Paulo Cássio, na Moda Lisboa, em 1992 (fotografia de Paulo Cássio) Sentado numa sala da cave do Museu de Serralves, Albuquerque Mendes sorri ao recordar estes episódios. Os olhos têm a transparência da água. A voz é pontuada por uma irresistível tentação para se perder em gargalhadas francas. O tom adoptado para se expressar é confessional. Não deixa de ser, na grande cidade, o miúdo que um dia abandona os ares da serra, larga Trancoso e descobre-se em Coimbra, para onde vai com 10 anos, na companhia da irmã mais velha seis anos, Maria da Conceição. Sentado numa sala da cave do Museu de Serralves, Albuquerque Mendes sorri ao recordar estes episódios. Os olhos têm a transparência da água. A voz é pontuada por uma irresistível tentação para se perder em gargalhadas francas. O tom adoptado para se expressar é confessional. Não deixa de ser, na grande cidade, o miúdo que um dia abandona os ares da serra, larga Trancoso e descobre-se em Coimbra, para onde vai com 10 anos, na companhia da irmã mais velha seis anos, Maria da Conceição. «Foi a minha sorte», diz. Recorda o papel dos pais nessa decisão e classifica-os de «corajosos». Porque Coimbra era a Universidade, as Repúblicas, o Teatro Gil Vicente, o Avenida, o Maio de 1969, o Citac e sobretudo o Círculo de Artes Plásticas, «uma ilha onde se podia falar, em oposição ao mundo cinzento do exterior». O Círculo era um organismo da Associação Académica de Coimbra aberto aos estudantes e a todos quantos gostassem de ter uma actividade artística. Tinha a vantagem de ser frequentado por prazer e não por obrigação. Ângelo de Sousa, então um dos professores convidados, tal como João Dixo, ainda se recorda da chegada de Albuquerque Mendes. «Era um miúdo de liceu que apareceu lá cheio de projectos e um pouco louco, no sentido de investir em várias direcções ao mesmo tempo e com toda aquela pose de quem se percebia logo que jamais iria tirar um curso de Direito.» Anos depois, Ângelo de Sousa, que entretanto lhe perdera o rasto, reencontra-o à entrada da cooperativa Árvore. «Disse-me que estava a organizar a sua primeira exposição individual e fiquei espantado e ao mesmo tempo satisfeito.» Acha fantástica a constatação de ser Albuquerque, de entre quantos lhe apareceram em Coimbra naqueles finais dos anos 60, um dos raros cujo percurso conhece. Lamenta apenas que, para muita gente, «ele continue a ser um artista do Porto». Enquanto «os outros, de Lisboa ou do Algarve, são artistas sem adjectivos, nós somos do Porto ou do Norte». Ritual «performance» em 1975, nos II Encontros Internacionais de Arte em Portugal, em Viana do Castelo Se aos dez anos queria ir para padre, por ter uma grande fé e considerar ser essa a única forma de ser útil à sociedade, o que o leva a ficar «completamente fascinado» com Santiago de Compostela, quando visita a cidade galega com 14 anos, é em Paris, aos 17 anos, que se encontra perante uma revelação. Depois de regressar, durante uns três ou quatro meses, remete-se a um silêncio conventual. Quase não fala com ninguém. Cumprira-se Hemingway. Paris era uma festa. «Levei um autêntico balde de água, porque nunca pensei que pudesse fazer tudo aquilo, como ver o 'Z', do Costa Gravas, os filmes do Pasolini, comprar o 'Livro Vermelho' do Mao, os livros de Lenine e Estaline, ver filmes pornográficos, assistir a sexo ao vivo, passear pelo Museu de Arte Moderna, passar horas no Louvre a extasiar-me com os quadros de que mais gostava, como o 'Naufrágio de Medusa', de Géricault, a 'Liberdade Guiando o Povo', de Delacroix.»Tudo quanto era proibido em Portugal estava ali escancarado de forma provocatória para quem chega do cantinho moldado por Salazar. Depois desta experiência, conheceu cidades espantosas, como Nova Iorque, mas sensações como as de Santiago ou Paris só se repetiram uma vez . Foi em Ouro Preto, no Brasil, país que chega a visitar quatro vezes por ano. A ligação é intensa ao ponto de desejar acabar lá os seus dias e afirmar a existência no seu trabalho de «um antes e um depois de ter ido ao Brasil». Conceptualmente, gosta muito do Brasil e da arte brasileira. Acha interessante «como os artistas locais conseguiram extrair da arte moderna os elementos que mais lhes interessavam para depois terem uma arte muito própria». Vê nesta atitude uma «componente canibalesca que eles assumem com toda a naturalidade, enquanto nós temos grandes pruridos em falar das nossas fontes de inspiração, porque damos sempre um ar muito dramático a tudo». Se aos dez anos queria ir para padre, por ter uma grande fé e considerar ser essa a única forma de ser útil à sociedade, o que o leva a ficar «completamente fascinado» com Santiago de Compostela, quando visita a cidade galega com 14 anos, é em Paris, aos 17 anos, que se encontra perante uma revelação. Depois de regressar, durante uns três ou quatro meses, remete-se a um silêncio conventual. Quase não fala com ninguém. Cumprira-se Hemingway. Paris era uma festa. «Levei um autêntico balde de água, porque nunca pensei que pudesse fazer tudo aquilo, como ver o 'Z', do Costa Gravas, os filmes do Pasolini, comprar o 'Livro Vermelho' do Mao, os livros de Lenine e Estaline, ver filmes pornográficos, assistir a sexo ao vivo, passear pelo Museu de Arte Moderna, passar horas no Louvre a extasiar-me com os quadros de que mais gostava, como o 'Naufrágio de Medusa', de Géricault, a 'Liberdade Guiando o Povo', de Delacroix.»Tudo quanto era proibido em Portugal estava ali escancarado de forma provocatória para quem chega do cantinho moldado por Salazar. Depois desta experiência, conheceu cidades espantosas, como Nova Iorque, mas sensações como as de Santiago ou Paris só se repetiram uma vez . Foi em Ouro Preto, no Brasil, país que chega a visitar quatro vezes por ano. A ligação é intensa ao ponto de desejar acabar lá os seus dias e afirmar a existência no seu trabalho de «um antes e um depois de ter ido ao Brasil». Conceptualmente, gosta muito do Brasil e da arte brasileira. Acha interessante «como os artistas locais conseguiram extrair da arte moderna os elementos que mais lhes interessavam para depois terem uma arte muito própria». Vê nesta atitude uma «componente canibalesca que eles assumem com toda a naturalidade, enquanto nós temos grandes pruridos em falar das nossas fontes de inspiração, porque damos sempre um ar muito dramático a tudo». Retrato de Marcel Duchamp (1980-81), acrílico sobre tela, 100 X 80 cm (colecção particular, Leça da Palmeira) No Brasil, Albuquerque Mendes tem um reconhecimento institucional contrastante com o esquecimento a que tem sido votado em Portugal. Chega aos 48 anos sem jamais ter exposto em organismos como a Fundação Gulbenkian, a Culturgest, o Centro Cultural de Belém ou a Secretaria de Estado da Cultura. No outro lado do Atlântico já foi convidado para a Praça Imperial, no Rio de Janeiro, Museus de Arte Moderna da Baía e do Recife, Museu da Inconfidência, em Tiradentes (uma espécie de Panteão Nacional). Trabalha com várias galerias de prestígio, do Rio e de S. Paulo e no próximo ano expõe no Museu de Arte Contemporânea Dragão do Mar, em Fortaleza. No Brasil, Albuquerque Mendes tem um reconhecimento institucional contrastante com o esquecimento a que tem sido votado em Portugal. Chega aos 48 anos sem jamais ter exposto em organismos como a Fundação Gulbenkian, a Culturgest, o Centro Cultural de Belém ou a Secretaria de Estado da Cultura. No outro lado do Atlântico já foi convidado para a Praça Imperial, no Rio de Janeiro, Museus de Arte Moderna da Baía e do Recife, Museu da Inconfidência, em Tiradentes (uma espécie de Panteão Nacional). Trabalha com várias galerias de prestígio, do Rio e de S. Paulo e no próximo ano expõe no Museu de Arte Contemporânea Dragão do Mar, em Fortaleza. É neste contexto que surge a grande mostra de Serralves, intitulada «Confesso». São mais de 300 quadros, muitos deles nunca vistos em público. Albuquerque olha para trás «sem nenhuma mágoa». Afinal, «tudo tem um tempo certo» e ele nunca foi especialmente ansioso em relação à vida. Admite que tudo acontece com naturalidade. «Casei, tenho três filhos, não corro desalmadamente para expor em nenhum sítio, porque há uma espécie de mapa cósmico e tudo tem de acontecer a seu tempo.» José Mário Brandão, galerista e amigo pessoal de Albuquerque há longos anos, resume todo este desprendimento com o verso de uma canção de Gal Costa, aplicável à atitude do artista: «Não preciso de muito dinheiro, graças a Deus.» Por isso, para José Mário, Albuquerque «não deixa de ser o rapaz de Trancoso que continua teimosamente a ser pintor, com a sua própria linguagem, seguindo aquilo em que acredita, o que o faz continuar obstinadamente a viver no Porto, longe de Lisboa, onde tudo tem sempre mais visibilidade». Pedro Cabrita Reis fala de «uma imagética muito pessoal, que faz de Albuquerque Mendes um pintor com uma grande riqueza interior, alegre e bem-humorado, o que é sempre um sintoma de inteligência». Há no seu comportamento uma forte componente de saudável loucura, que o leva às atitudes mais inesperadas. Como quando decide apressar o casamento com Maria Julieta, realizado na igreja de Cedofeita a 24 de Abril de 1977, porque naquela tarde, o Rivoli passava «O Intruso», de Luchino Visconti. «Saí do casamento a correr, porque queria mesmo ir ver o filme e dali a dois dias teria de estar em Paris para participar numa performance no Jardim do Luxemburgo.» O pintor na Galeria Roma e Pavia (Porto), em 1982 Nessa altura, Albuquerque era um cristão-novo do Porto. Chegara com o Instituto Superior Técnico como destino. Ele, que considera ter sido sempre um mau aluno, muito distraído, quase não chega a aquecer o lugar no Instituto. «O que é que eu tinha a ver com resistência de materiais?» Abandona mas agarra-se à cidade, de cuja organização urbana começara por não gostar, em contraste com o fascínio exercido pela massa humana. «Adorei logo o sotaque bairrista, descarado, rude, com todos aqueles aspectos verbais vernáculos e sarcásticos.» Instala-se na Avenida Fernão de Magalhães, próximo do Estádio das Antas e serve-se do FC Porto «para contar uma história que estava a passar-se na cidade». É assim que surgem os «Contos do Porto», uma série de trabalhos - notas, maços de tabaco, naturezas mortas - em que todos têm o emblema do FCP no canto superior direito, como se fosse um carimbo. No dia da inauguração, na cooperativa Árvore, as bebidas e bolachas eram servidas por palhaços. Levavam as bandejas cheias de vinho do Porto. Quando as pessoas se aproximavam para pegar num cálice, fugiam e iam para uma sala ao lado beber o vinho. «Nunca ninguém conseguiu chegar aos palhaços pobres para tirar um cálice», diz Albuquerque com um ar malicioso e a certeza de nada ter contra o vinho. «Gosto tanto de vinho tinto que poderia ser alcoólico.» Do ponto de vista gastronómico considera-se «um parolo». Adora sardinhas assadas com batatas cozidas com casca. Vai com frequência à lota de Matosinhos, muito próximo da sua residência em Leça da Palmeira, e compra baldes de peixe, não se sabe se apenas pelo prazer de discutir com as peixeiras ou por um genuíno desejo de saborear as lulas grelhadas, um dos seus pratos preferidos. São prazeres simples, os mesmos que o levam a pegar na família e adoptar como programa de férias uma temporada em Viana do Castelo para assistirem às festas da Senhora da Agonia. É de novo o universo religioso a marcar presença no percurso de um pintor que acha desnecessária qualquer explicação quando se olham alguns dos seus trabalhos, «porque por trás estão dois mil anos de história». Por isso a utilização intensiva da iconografia da Igreja católica. Por isso a repetição até à exaustão de retratos de freiras. Por isso a insistência na encenação da Via Sacra. Albuquerque assume o gosto pelas procissões, onde há «um lado festivo, com uma forte componente pagã e uma decoração barroca, que é exactamente o contrário do que muitas vezes é a fachada». Adora apanhar este lado da cultura popular e religiosa. Quando se lhe pergunta se é um homem religioso, começa por dizer que nele, nada é fácil. Por vezes adora ir à missa e deixa-se encandear pelo ritual da celebração. «Misturo fé com estética, e isso pode ser um processo cultural que vem da minha infância, porque não sei onde começa uma coisa e acaba a outra.» Será isso que o leva a escolher apenas igrejas e museus como roteiro de visita, sempre que vai a uma nova cidade. Decorre daí não considerar desprestigiante para um artista «ir buscar elementos bem populares para construir a sua obra, desde que isso seja bem feito». Às vezes gosta de utilizar elementos carregados de ingenuidade, levados para o universo erudito, «por muito que isso não esteja na moda». Nessa altura, Albuquerque era um cristão-novo do Porto. Chegara com o Instituto Superior Técnico como destino. Ele, que considera ter sido sempre um mau aluno, muito distraído, quase não chega a aquecer o lugar no Instituto. «O que é que eu tinha a ver com resistência de materiais?» Abandona mas agarra-se à cidade, de cuja organização urbana começara por não gostar, em contraste com o fascínio exercido pela massa humana. «Adorei logo o sotaque bairrista, descarado, rude, com todos aqueles aspectos verbais vernáculos e sarcásticos.» Instala-se na Avenida Fernão de Magalhães, próximo do Estádio das Antas e serve-se do FC Porto «para contar uma história que estava a passar-se na cidade». É assim que surgem os «Contos do Porto», uma série de trabalhos - notas, maços de tabaco, naturezas mortas - em que todos têm o emblema do FCP no canto superior direito, como se fosse um carimbo. No dia da inauguração, na cooperativa Árvore, as bebidas e bolachas eram servidas por palhaços. Levavam as bandejas cheias de vinho do Porto. Quando as pessoas se aproximavam para pegar num cálice, fugiam e iam para uma sala ao lado beber o vinho. «Nunca ninguém conseguiu chegar aos palhaços pobres para tirar um cálice», diz Albuquerque com um ar malicioso e a certeza de nada ter contra o vinho. «Gosto tanto de vinho tinto que poderia ser alcoólico.» Do ponto de vista gastronómico considera-se «um parolo». Adora sardinhas assadas com batatas cozidas com casca. Vai com frequência à lota de Matosinhos, muito próximo da sua residência em Leça da Palmeira, e compra baldes de peixe, não se sabe se apenas pelo prazer de discutir com as peixeiras ou por um genuíno desejo de saborear as lulas grelhadas, um dos seus pratos preferidos. São prazeres simples, os mesmos que o levam a pegar na família e adoptar como programa de férias uma temporada em Viana do Castelo para assistirem às festas da Senhora da Agonia. É de novo o universo religioso a marcar presença no percurso de um pintor que acha desnecessária qualquer explicação quando se olham alguns dos seus trabalhos, «porque por trás estão dois mil anos de história». Por isso a utilização intensiva da iconografia da Igreja católica. Por isso a repetição até à exaustão de retratos de freiras. Por isso a insistência na encenação da Via Sacra. Albuquerque assume o gosto pelas procissões, onde há «um lado festivo, com uma forte componente pagã e uma decoração barroca, que é exactamente o contrário do que muitas vezes é a fachada». Adora apanhar este lado da cultura popular e religiosa. Quando se lhe pergunta se é um homem religioso, começa por dizer que nele, nada é fácil. Por vezes adora ir à missa e deixa-se encandear pelo ritual da celebração. «Misturo fé com estética, e isso pode ser um processo cultural que vem da minha infância, porque não sei onde começa uma coisa e acaba a outra.» Será isso que o leva a escolher apenas igrejas e museus como roteiro de visita, sempre que vai a uma nova cidade. Decorre daí não considerar desprestigiante para um artista «ir buscar elementos bem populares para construir a sua obra, desde que isso seja bem feito». Às vezes gosta de utilizar elementos carregados de ingenuidade, levados para o universo erudito, «por muito que isso não esteja na moda». O artista enquanto jovem, aos 27 anos, no Porto, com a filha Beatriz (foto Pedro Rocha) Essa nunca foi uma preocupação sua. Nem mesmo quando em meados dos anos 70 adere ao Grupo Puzzle, que no Porto estabelece uma contra-corrente artística e serve para dar visibilidade a uma série de artistas que acabam por seguir rumos individuais muito diversos. Esta é uma fase de intensa produção e coincide com um dos momentos mais fantásticos da sua vida. A tropa. Feita entre Setembro de 1974 e Agosto de 1976. «Foi o tempo de que mais gostei, porque estive na tropa durante os três anos mais incríveis do século XX português.» Acontece que o furriel-milicano Albuquerque Mendes tinha dotes artísticos reconhecidos pela hierarquia. Então, «estava na tropa e fazia performances, tinha um quarto só para pintar, ia a festivais internacionais de 'performance' e acho isto extraordinário, porque seria impensável nos nossos dias». Os filhos, Beatriz, 22 anos, estudante de «design», e os gémeos Adriano e Frederico, com 15 anos, acham tudo isto pertença do reino do inimaginável. Tal como os tempos de Coimbra e o sombrio sufoco político, social e cultural do fascismo reinante. «Riem-se destas histórias, até por viverem num universo de Internet, com uma percepção global do mundo, sem repararem que 30 anos não é nada, mas significa esta diferença total.» Essa nunca foi uma preocupação sua. Nem mesmo quando em meados dos anos 70 adere ao Grupo Puzzle, que no Porto estabelece uma contra-corrente artística e serve para dar visibilidade a uma série de artistas que acabam por seguir rumos individuais muito diversos. Esta é uma fase de intensa produção e coincide com um dos momentos mais fantásticos da sua vida. A tropa. Feita entre Setembro de 1974 e Agosto de 1976. «Foi o tempo de que mais gostei, porque estive na tropa durante os três anos mais incríveis do século XX português.» Acontece que o furriel-milicano Albuquerque Mendes tinha dotes artísticos reconhecidos pela hierarquia. Então, «estava na tropa e fazia performances, tinha um quarto só para pintar, ia a festivais internacionais de 'performance' e acho isto extraordinário, porque seria impensável nos nossos dias». Os filhos, Beatriz, 22 anos, estudante de «design», e os gémeos Adriano e Frederico, com 15 anos, acham tudo isto pertença do reino do inimaginável. Tal como os tempos de Coimbra e o sombrio sufoco político, social e cultural do fascismo reinante. «Riem-se destas histórias, até por viverem num universo de Internet, com uma percepção global do mundo, sem repararem que 30 anos não é nada, mas significa esta diferença total.» «Dia dos namorados» (1991), acrílico sobre tela, 82 X 61 cm (colecção particular, Porto) Quando passeia pelas ruas do Porto, sempre a pé por não ter carta de condução, embrulhado no seu imenso sobretudo ou nos intermináveis cachecóis, Albuquerque Mendes deixa um rasto de tranquilidade. A mesma tranquilidade que vai beber às origens quando recorda a infância em Trancoso, rodeado de neve no Natal. Ou as férias com os pais, todos os anos em Agosto, na Figueira da Foz. Ou ainda as idas à caça com o pai, mesmo se é com a mãe que recorda ter estabelecido uma grande cumplicidade. Foi essa mesma tranquilidade que o fez caminhar sem se tentar pelo precipício quando, em 1992, depois de vários anos de sofrimento, descobre que tem um corpo de 38 anos «e uma aorta com 120 anos». O professor Manuel Antunes coloca-lhe uma aorta mecânica, feita em quartzo e constrói-lhe uma companhia para a vida. Quando passeia pelas ruas do Porto, sempre a pé por não ter carta de condução, embrulhado no seu imenso sobretudo ou nos intermináveis cachecóis, Albuquerque Mendes deixa um rasto de tranquilidade. A mesma tranquilidade que vai beber às origens quando recorda a infância em Trancoso, rodeado de neve no Natal. Ou as férias com os pais, todos os anos em Agosto, na Figueira da Foz. Ou ainda as idas à caça com o pai, mesmo se é com a mãe que recorda ter estabelecido uma grande cumplicidade. Foi essa mesma tranquilidade que o fez caminhar sem se tentar pelo precipício quando, em 1992, depois de vários anos de sofrimento, descobre que tem um corpo de 38 anos «e uma aorta com 120 anos». O professor Manuel Antunes coloca-lhe uma aorta mecânica, feita em quartzo e constrói-lhe uma companhia para a vida. Os bolsos dos casacos de Albuquerque são pesados. Carregam cadernos parecidos com os que os merceeiros antigamente utilizavam para apontar as dívidas dos clientes. Estão cheios de desenhos. Pequenos desenhos. Meticulosos projectos de quadros que hão-de nascer. Pensados até o mínimo detalhe. A organização é meticulosa. Impressiona pelo contraste com o «atelier» do artista. Onde o processo de criação é caótico. Onde a ausência de disciplina é tão-só a expressão do deleite de quem se diverte com o conforto do direito à preguiça. Temporária e vigiada. Quando termina, explodem as ondas de criatividade. Então, Albuquerque esquece tudo. Pinta. Até à exaustão. 13

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O Museu de Serralves inaugura quinta-feira, dia 15, «Confesso», a primeira grande exposição antológica de Albuquerque Mendes. Pioneiro na arte da «performance» em Portugal, o pintor apresenta uma obra marcada pela exploração exaustiva e por vezes irónica da iconografia católica. Os quadros surgem povoados de padres, freiras, cruzes, sudários, espinhos ou Cristos, numa espécie de oferenda profana também recheada de colagens hipersexualizadas.

Texto de Valdemar Cruz Auto-retrato de Albuquerque Mendes (2001), inédito produzido para a revista do EXPRESSO Em criança, Albuquerque Mendes penava os dias consumido pela angústia de não conseguir decidir-se entre ser padre ou pintor. A única certeza passava pelas mãos. Em qualquer dos cenários imaginava-as como actrizes principais desse devir imaginário. Sonhava-lhes os movimentos, impulsionados pelo ardor da pregação da palavra de Deus, ou pelo vigor das pinceladas nas telas vazias. Não saiu padre. Cresceu pintor. Nos seus quadros gosta de fabular a partir da iconografia judaico-cristã. Povoa-os de padres, freiras, cruzes, sudários, espinhos, Cristos. Encena o rito das vias-sacras. Faz do auto-retrato uma religião intensa e obsessiva, sem paralelo em qualquer outro pintor português contemporâneo. Albuquerque é o Cristo crucificado em tamanho natural. Pode ser o peregrino em demanda de Santiago. Em simultâneo será o contrário de tudo isso, quando se compraz em ironizar com o lado festivo e pagão do universo católico ou em expor de um modo quase pornográfico partes sensíveis do corpo humano. Em criança, Albuquerque Mendes penava os dias consumido pela angústia de não conseguir decidir-se entre ser padre ou pintor. A única certeza passava pelas mãos. Em qualquer dos cenários imaginava-as como actrizes principais desse devir imaginário. Sonhava-lhes os movimentos, impulsionados pelo ardor da pregação da palavra de Deus, ou pelo vigor das pinceladas nas telas vazias. Não saiu padre. Cresceu pintor. Nos seus quadros gosta de fabular a partir da iconografia judaico-cristã. Povoa-os de padres, freiras, cruzes, sudários, espinhos, Cristos. Encena o rito das vias-sacras. Faz do auto-retrato uma religião intensa e obsessiva, sem paralelo em qualquer outro pintor português contemporâneo. Albuquerque é o Cristo crucificado em tamanho natural. Pode ser o peregrino em demanda de Santiago. Em simultâneo será o contrário de tudo isso, quando se compraz em ironizar com o lado festivo e pagão do universo católico ou em expor de um modo quase pornográfico partes sensíveis do corpo humano. O jovem Albuquerque com a irmã, de férias de Verão, na Figueira da Foz José Bernardo de Albuquerque Mendes nasceu em Trancoso, na Beira Alta, há 48 anos. Quando, a 17 de Março de 1953, a mãe, Henriqueta Fernanda d'Albuquerque, expulsa das entranhas uma criança perfilhada pelo funcionário público José Mendes, um outro José, de apelido Estaline, morrera há apenas 12 dias. Vinte e oito anos depois, Albuquerque marca um inesperado encontro com o «tio» Zé na bem comunista cidade de Almada. Corre o ano de 1981 e na outra margem decorre a «Alternativa, Festival Internacional de Arte Viva». O barbudo Albuquerque Mendes é já a principal referência das «performances» em Portugal. Pioneiro nacional, terá sido um dos primeiros artistas na Europa a servir-se do espaço urbano como local de intervenção artística. Em Almada, tudo decorre no interior de uma barbearia, no centro da cidade. A curiosidade esmaga os espaços disponíveis na rua e no interior da barbearia. Albuquerque pintara um quadro de Lenine e Estaline e pendura-o frente às cadeiras do barbeiro. Egídio Álvaro, seu colaborador na «performance», senta-se numa das cadeiras. Tem a cabeça rapada e uma barbicha que o fazem parecer-se com Lenine. Albuquerque senta-se noutra cadeira. O barbeiro inicia a função. Corta a barba e o cabelo do pintor até construir uma semelhança com Estaline. No final, Albuquerque sai. Deixa a barbearia com o quadro exposto e não diz uma palavra. No ar fica a dúvida sobre as suas reais intenções. Isso é o que menos lhe importa e mais o diverte. Tal como sucedera em 1975, em Viana do Castelo, naquela que é considerada a primeira verdadeira «performance» em espaço urbano realizada em Portugal. José Bernardo de Albuquerque Mendes nasceu em Trancoso, na Beira Alta, há 48 anos. Quando, a 17 de Março de 1953, a mãe, Henriqueta Fernanda d'Albuquerque, expulsa das entranhas uma criança perfilhada pelo funcionário público José Mendes, um outro José, de apelido Estaline, morrera há apenas 12 dias. Vinte e oito anos depois, Albuquerque marca um inesperado encontro com o «tio» Zé na bem comunista cidade de Almada. Corre o ano de 1981 e na outra margem decorre a «Alternativa, Festival Internacional de Arte Viva». O barbudo Albuquerque Mendes é já a principal referência das «performances» em Portugal. Pioneiro nacional, terá sido um dos primeiros artistas na Europa a servir-se do espaço urbano como local de intervenção artística. Em Almada, tudo decorre no interior de uma barbearia, no centro da cidade. A curiosidade esmaga os espaços disponíveis na rua e no interior da barbearia. Albuquerque pintara um quadro de Lenine e Estaline e pendura-o frente às cadeiras do barbeiro. Egídio Álvaro, seu colaborador na «performance», senta-se numa das cadeiras. Tem a cabeça rapada e uma barbicha que o fazem parecer-se com Lenine. Albuquerque senta-se noutra cadeira. O barbeiro inicia a função. Corta a barba e o cabelo do pintor até construir uma semelhança com Estaline. No final, Albuquerque sai. Deixa a barbearia com o quadro exposto e não diz uma palavra. No ar fica a dúvida sobre as suas reais intenções. Isso é o que menos lhe importa e mais o diverte. Tal como sucedera em 1975, em Viana do Castelo, naquela que é considerada a primeira verdadeira «performance» em espaço urbano realizada em Portugal. Auto-retrato (1996), acrílico sobre papel, 60X58 cm (colecção particular de Leiria) Albuquerque recorda ter-se socorrido da simbologia católica. «Fiz um percurso como se fosse uma procissão.» Havia ali «uma celebração da arte». O artista sai da igreja e leva à frente o sacristão a tocar uma sineta. «Quando saio, há pessoas que se ajoelham, porque viam o sacristão com a cruz e julgavam-me um messias.» Em Lisboa, Albuquerque repete esta «performance», em Agosto de 1975, no Largo Camões, mas ninguém fez a mesma leitura. «Levava pregos, martelos, e deu muita celeuma, com um caldeirão de pessoas a questionarem tudo aquilo, porque julgavam que tinha alguma coisa a ver com comunismo.» O mais intrigante ainda é o silêncio do «performer». «Nunca digo nada, dado que tudo vive dos gestos e da ritualização de alguns momentos.» Albuquerque recorda ter-se socorrido da simbologia católica. «Fiz um percurso como se fosse uma procissão.» Havia ali «uma celebração da arte». O artista sai da igreja e leva à frente o sacristão a tocar uma sineta. «Quando saio, há pessoas que se ajoelham, porque viam o sacristão com a cruz e julgavam-me um messias.» Em Lisboa, Albuquerque repete esta «performance», em Agosto de 1975, no Largo Camões, mas ninguém fez a mesma leitura. «Levava pregos, martelos, e deu muita celeuma, com um caldeirão de pessoas a questionarem tudo aquilo, porque julgavam que tinha alguma coisa a ver com comunismo.» O mais intrigante ainda é o silêncio do «performer». «Nunca digo nada, dado que tudo vive dos gestos e da ritualização de alguns momentos.» Agora, este funcionário do Instituto Português da Juventude, com licença sem vencimento há um ano, já raras vezes realiza uma «performance». A mais recente ocorreu a 18 de Julho de 1997, na Baixa do Porto. «A sagração da pintura», foi o título escolhido pelo jornal «Público» para noticiar o evento. No corpo da notícia, o jornalista dizia que, «se algum público preferia mandar trabalhar Albuquerque Mendes, outro encarou aquele momento com um respeito religioso, havendo mesmo casos de pessoas que recusaram abandonar o local devido ao receio de serem afectadas por um qualquer mau-olhado». Vinte anos antes, o artista realizara naquele mesmo local a sua última «performance» de rua. No jornal «O Primeiro de Janeiro» surge o relato onde se evidencia a diferença de mundos entretanto nascida. O jornalista recolhe alguns comentários suscitados pela passagem de Albuquerque e não se escusa de os anteceder de um significativo comentário: «Assistimos, então, ao impacto público da patética cena.» Vêm, a seguir, as vozes do povo: «Ó mulher, parece Cristo que volta cá baixo - dizia uma, enquanto outra condenava a excentricidade: Agora é que estamos perdidos.» Mais adiante um calceteiro desabafa: «Ó pá, a quem trabalha não se tira a fotografia e àquele malandro que vai ali, vão a acheirá-lo todo!» Vestido por Paulo Cássio, na Moda Lisboa, em 1992 (fotografia de Paulo Cássio) Sentado numa sala da cave do Museu de Serralves, Albuquerque Mendes sorri ao recordar estes episódios. Os olhos têm a transparência da água. A voz é pontuada por uma irresistível tentação para se perder em gargalhadas francas. O tom adoptado para se expressar é confessional. Não deixa de ser, na grande cidade, o miúdo que um dia abandona os ares da serra, larga Trancoso e descobre-se em Coimbra, para onde vai com 10 anos, na companhia da irmã mais velha seis anos, Maria da Conceição. Sentado numa sala da cave do Museu de Serralves, Albuquerque Mendes sorri ao recordar estes episódios. Os olhos têm a transparência da água. A voz é pontuada por uma irresistível tentação para se perder em gargalhadas francas. O tom adoptado para se expressar é confessional. Não deixa de ser, na grande cidade, o miúdo que um dia abandona os ares da serra, larga Trancoso e descobre-se em Coimbra, para onde vai com 10 anos, na companhia da irmã mais velha seis anos, Maria da Conceição. «Foi a minha sorte», diz. Recorda o papel dos pais nessa decisão e classifica-os de «corajosos». Porque Coimbra era a Universidade, as Repúblicas, o Teatro Gil Vicente, o Avenida, o Maio de 1969, o Citac e sobretudo o Círculo de Artes Plásticas, «uma ilha onde se podia falar, em oposição ao mundo cinzento do exterior». O Círculo era um organismo da Associação Académica de Coimbra aberto aos estudantes e a todos quantos gostassem de ter uma actividade artística. Tinha a vantagem de ser frequentado por prazer e não por obrigação. Ângelo de Sousa, então um dos professores convidados, tal como João Dixo, ainda se recorda da chegada de Albuquerque Mendes. «Era um miúdo de liceu que apareceu lá cheio de projectos e um pouco louco, no sentido de investir em várias direcções ao mesmo tempo e com toda aquela pose de quem se percebia logo que jamais iria tirar um curso de Direito.» Anos depois, Ângelo de Sousa, que entretanto lhe perdera o rasto, reencontra-o à entrada da cooperativa Árvore. «Disse-me que estava a organizar a sua primeira exposição individual e fiquei espantado e ao mesmo tempo satisfeito.» Acha fantástica a constatação de ser Albuquerque, de entre quantos lhe apareceram em Coimbra naqueles finais dos anos 60, um dos raros cujo percurso conhece. Lamenta apenas que, para muita gente, «ele continue a ser um artista do Porto». Enquanto «os outros, de Lisboa ou do Algarve, são artistas sem adjectivos, nós somos do Porto ou do Norte». Ritual «performance» em 1975, nos II Encontros Internacionais de Arte em Portugal, em Viana do Castelo Se aos dez anos queria ir para padre, por ter uma grande fé e considerar ser essa a única forma de ser útil à sociedade, o que o leva a ficar «completamente fascinado» com Santiago de Compostela, quando visita a cidade galega com 14 anos, é em Paris, aos 17 anos, que se encontra perante uma revelação. Depois de regressar, durante uns três ou quatro meses, remete-se a um silêncio conventual. Quase não fala com ninguém. Cumprira-se Hemingway. Paris era uma festa. «Levei um autêntico balde de água, porque nunca pensei que pudesse fazer tudo aquilo, como ver o 'Z', do Costa Gravas, os filmes do Pasolini, comprar o 'Livro Vermelho' do Mao, os livros de Lenine e Estaline, ver filmes pornográficos, assistir a sexo ao vivo, passear pelo Museu de Arte Moderna, passar horas no Louvre a extasiar-me com os quadros de que mais gostava, como o 'Naufrágio de Medusa', de Géricault, a 'Liberdade Guiando o Povo', de Delacroix.»Tudo quanto era proibido em Portugal estava ali escancarado de forma provocatória para quem chega do cantinho moldado por Salazar. Depois desta experiência, conheceu cidades espantosas, como Nova Iorque, mas sensações como as de Santiago ou Paris só se repetiram uma vez . Foi em Ouro Preto, no Brasil, país que chega a visitar quatro vezes por ano. A ligação é intensa ao ponto de desejar acabar lá os seus dias e afirmar a existência no seu trabalho de «um antes e um depois de ter ido ao Brasil». Conceptualmente, gosta muito do Brasil e da arte brasileira. Acha interessante «como os artistas locais conseguiram extrair da arte moderna os elementos que mais lhes interessavam para depois terem uma arte muito própria». Vê nesta atitude uma «componente canibalesca que eles assumem com toda a naturalidade, enquanto nós temos grandes pruridos em falar das nossas fontes de inspiração, porque damos sempre um ar muito dramático a tudo». Se aos dez anos queria ir para padre, por ter uma grande fé e considerar ser essa a única forma de ser útil à sociedade, o que o leva a ficar «completamente fascinado» com Santiago de Compostela, quando visita a cidade galega com 14 anos, é em Paris, aos 17 anos, que se encontra perante uma revelação. Depois de regressar, durante uns três ou quatro meses, remete-se a um silêncio conventual. Quase não fala com ninguém. Cumprira-se Hemingway. Paris era uma festa. «Levei um autêntico balde de água, porque nunca pensei que pudesse fazer tudo aquilo, como ver o 'Z', do Costa Gravas, os filmes do Pasolini, comprar o 'Livro Vermelho' do Mao, os livros de Lenine e Estaline, ver filmes pornográficos, assistir a sexo ao vivo, passear pelo Museu de Arte Moderna, passar horas no Louvre a extasiar-me com os quadros de que mais gostava, como o 'Naufrágio de Medusa', de Géricault, a 'Liberdade Guiando o Povo', de Delacroix.»Tudo quanto era proibido em Portugal estava ali escancarado de forma provocatória para quem chega do cantinho moldado por Salazar. Depois desta experiência, conheceu cidades espantosas, como Nova Iorque, mas sensações como as de Santiago ou Paris só se repetiram uma vez . Foi em Ouro Preto, no Brasil, país que chega a visitar quatro vezes por ano. A ligação é intensa ao ponto de desejar acabar lá os seus dias e afirmar a existência no seu trabalho de «um antes e um depois de ter ido ao Brasil». Conceptualmente, gosta muito do Brasil e da arte brasileira. Acha interessante «como os artistas locais conseguiram extrair da arte moderna os elementos que mais lhes interessavam para depois terem uma arte muito própria». Vê nesta atitude uma «componente canibalesca que eles assumem com toda a naturalidade, enquanto nós temos grandes pruridos em falar das nossas fontes de inspiração, porque damos sempre um ar muito dramático a tudo». Retrato de Marcel Duchamp (1980-81), acrílico sobre tela, 100 X 80 cm (colecção particular, Leça da Palmeira) No Brasil, Albuquerque Mendes tem um reconhecimento institucional contrastante com o esquecimento a que tem sido votado em Portugal. Chega aos 48 anos sem jamais ter exposto em organismos como a Fundação Gulbenkian, a Culturgest, o Centro Cultural de Belém ou a Secretaria de Estado da Cultura. No outro lado do Atlântico já foi convidado para a Praça Imperial, no Rio de Janeiro, Museus de Arte Moderna da Baía e do Recife, Museu da Inconfidência, em Tiradentes (uma espécie de Panteão Nacional). Trabalha com várias galerias de prestígio, do Rio e de S. Paulo e no próximo ano expõe no Museu de Arte Contemporânea Dragão do Mar, em Fortaleza. No Brasil, Albuquerque Mendes tem um reconhecimento institucional contrastante com o esquecimento a que tem sido votado em Portugal. Chega aos 48 anos sem jamais ter exposto em organismos como a Fundação Gulbenkian, a Culturgest, o Centro Cultural de Belém ou a Secretaria de Estado da Cultura. No outro lado do Atlântico já foi convidado para a Praça Imperial, no Rio de Janeiro, Museus de Arte Moderna da Baía e do Recife, Museu da Inconfidência, em Tiradentes (uma espécie de Panteão Nacional). Trabalha com várias galerias de prestígio, do Rio e de S. Paulo e no próximo ano expõe no Museu de Arte Contemporânea Dragão do Mar, em Fortaleza. É neste contexto que surge a grande mostra de Serralves, intitulada «Confesso». São mais de 300 quadros, muitos deles nunca vistos em público. Albuquerque olha para trás «sem nenhuma mágoa». Afinal, «tudo tem um tempo certo» e ele nunca foi especialmente ansioso em relação à vida. Admite que tudo acontece com naturalidade. «Casei, tenho três filhos, não corro desalmadamente para expor em nenhum sítio, porque há uma espécie de mapa cósmico e tudo tem de acontecer a seu tempo.» José Mário Brandão, galerista e amigo pessoal de Albuquerque há longos anos, resume todo este desprendimento com o verso de uma canção de Gal Costa, aplicável à atitude do artista: «Não preciso de muito dinheiro, graças a Deus.» Por isso, para José Mário, Albuquerque «não deixa de ser o rapaz de Trancoso que continua teimosamente a ser pintor, com a sua própria linguagem, seguindo aquilo em que acredita, o que o faz continuar obstinadamente a viver no Porto, longe de Lisboa, onde tudo tem sempre mais visibilidade». Pedro Cabrita Reis fala de «uma imagética muito pessoal, que faz de Albuquerque Mendes um pintor com uma grande riqueza interior, alegre e bem-humorado, o que é sempre um sintoma de inteligência». Há no seu comportamento uma forte componente de saudável loucura, que o leva às atitudes mais inesperadas. Como quando decide apressar o casamento com Maria Julieta, realizado na igreja de Cedofeita a 24 de Abril de 1977, porque naquela tarde, o Rivoli passava «O Intruso», de Luchino Visconti. «Saí do casamento a correr, porque queria mesmo ir ver o filme e dali a dois dias teria de estar em Paris para participar numa performance no Jardim do Luxemburgo.» O pintor na Galeria Roma e Pavia (Porto), em 1982 Nessa altura, Albuquerque era um cristão-novo do Porto. Chegara com o Instituto Superior Técnico como destino. Ele, que considera ter sido sempre um mau aluno, muito distraído, quase não chega a aquecer o lugar no Instituto. «O que é que eu tinha a ver com resistência de materiais?» Abandona mas agarra-se à cidade, de cuja organização urbana começara por não gostar, em contraste com o fascínio exercido pela massa humana. «Adorei logo o sotaque bairrista, descarado, rude, com todos aqueles aspectos verbais vernáculos e sarcásticos.» Instala-se na Avenida Fernão de Magalhães, próximo do Estádio das Antas e serve-se do FC Porto «para contar uma história que estava a passar-se na cidade». É assim que surgem os «Contos do Porto», uma série de trabalhos - notas, maços de tabaco, naturezas mortas - em que todos têm o emblema do FCP no canto superior direito, como se fosse um carimbo. No dia da inauguração, na cooperativa Árvore, as bebidas e bolachas eram servidas por palhaços. Levavam as bandejas cheias de vinho do Porto. Quando as pessoas se aproximavam para pegar num cálice, fugiam e iam para uma sala ao lado beber o vinho. «Nunca ninguém conseguiu chegar aos palhaços pobres para tirar um cálice», diz Albuquerque com um ar malicioso e a certeza de nada ter contra o vinho. «Gosto tanto de vinho tinto que poderia ser alcoólico.» Do ponto de vista gastronómico considera-se «um parolo». Adora sardinhas assadas com batatas cozidas com casca. Vai com frequência à lota de Matosinhos, muito próximo da sua residência em Leça da Palmeira, e compra baldes de peixe, não se sabe se apenas pelo prazer de discutir com as peixeiras ou por um genuíno desejo de saborear as lulas grelhadas, um dos seus pratos preferidos. São prazeres simples, os mesmos que o levam a pegar na família e adoptar como programa de férias uma temporada em Viana do Castelo para assistirem às festas da Senhora da Agonia. É de novo o universo religioso a marcar presença no percurso de um pintor que acha desnecessária qualquer explicação quando se olham alguns dos seus trabalhos, «porque por trás estão dois mil anos de história». Por isso a utilização intensiva da iconografia da Igreja católica. Por isso a repetição até à exaustão de retratos de freiras. Por isso a insistência na encenação da Via Sacra. Albuquerque assume o gosto pelas procissões, onde há «um lado festivo, com uma forte componente pagã e uma decoração barroca, que é exactamente o contrário do que muitas vezes é a fachada». Adora apanhar este lado da cultura popular e religiosa. Quando se lhe pergunta se é um homem religioso, começa por dizer que nele, nada é fácil. Por vezes adora ir à missa e deixa-se encandear pelo ritual da celebração. «Misturo fé com estética, e isso pode ser um processo cultural que vem da minha infância, porque não sei onde começa uma coisa e acaba a outra.» Será isso que o leva a escolher apenas igrejas e museus como roteiro de visita, sempre que vai a uma nova cidade. Decorre daí não considerar desprestigiante para um artista «ir buscar elementos bem populares para construir a sua obra, desde que isso seja bem feito». Às vezes gosta de utilizar elementos carregados de ingenuidade, levados para o universo erudito, «por muito que isso não esteja na moda». Nessa altura, Albuquerque era um cristão-novo do Porto. Chegara com o Instituto Superior Técnico como destino. Ele, que considera ter sido sempre um mau aluno, muito distraído, quase não chega a aquecer o lugar no Instituto. «O que é que eu tinha a ver com resistência de materiais?» Abandona mas agarra-se à cidade, de cuja organização urbana começara por não gostar, em contraste com o fascínio exercido pela massa humana. «Adorei logo o sotaque bairrista, descarado, rude, com todos aqueles aspectos verbais vernáculos e sarcásticos.» Instala-se na Avenida Fernão de Magalhães, próximo do Estádio das Antas e serve-se do FC Porto «para contar uma história que estava a passar-se na cidade». É assim que surgem os «Contos do Porto», uma série de trabalhos - notas, maços de tabaco, naturezas mortas - em que todos têm o emblema do FCP no canto superior direito, como se fosse um carimbo. No dia da inauguração, na cooperativa Árvore, as bebidas e bolachas eram servidas por palhaços. Levavam as bandejas cheias de vinho do Porto. Quando as pessoas se aproximavam para pegar num cálice, fugiam e iam para uma sala ao lado beber o vinho. «Nunca ninguém conseguiu chegar aos palhaços pobres para tirar um cálice», diz Albuquerque com um ar malicioso e a certeza de nada ter contra o vinho. «Gosto tanto de vinho tinto que poderia ser alcoólico.» Do ponto de vista gastronómico considera-se «um parolo». Adora sardinhas assadas com batatas cozidas com casca. Vai com frequência à lota de Matosinhos, muito próximo da sua residência em Leça da Palmeira, e compra baldes de peixe, não se sabe se apenas pelo prazer de discutir com as peixeiras ou por um genuíno desejo de saborear as lulas grelhadas, um dos seus pratos preferidos. São prazeres simples, os mesmos que o levam a pegar na família e adoptar como programa de férias uma temporada em Viana do Castelo para assistirem às festas da Senhora da Agonia. É de novo o universo religioso a marcar presença no percurso de um pintor que acha desnecessária qualquer explicação quando se olham alguns dos seus trabalhos, «porque por trás estão dois mil anos de história». Por isso a utilização intensiva da iconografia da Igreja católica. Por isso a repetição até à exaustão de retratos de freiras. Por isso a insistência na encenação da Via Sacra. Albuquerque assume o gosto pelas procissões, onde há «um lado festivo, com uma forte componente pagã e uma decoração barroca, que é exactamente o contrário do que muitas vezes é a fachada». Adora apanhar este lado da cultura popular e religiosa. Quando se lhe pergunta se é um homem religioso, começa por dizer que nele, nada é fácil. Por vezes adora ir à missa e deixa-se encandear pelo ritual da celebração. «Misturo fé com estética, e isso pode ser um processo cultural que vem da minha infância, porque não sei onde começa uma coisa e acaba a outra.» Será isso que o leva a escolher apenas igrejas e museus como roteiro de visita, sempre que vai a uma nova cidade. Decorre daí não considerar desprestigiante para um artista «ir buscar elementos bem populares para construir a sua obra, desde que isso seja bem feito». Às vezes gosta de utilizar elementos carregados de ingenuidade, levados para o universo erudito, «por muito que isso não esteja na moda». O artista enquanto jovem, aos 27 anos, no Porto, com a filha Beatriz (foto Pedro Rocha) Essa nunca foi uma preocupação sua. Nem mesmo quando em meados dos anos 70 adere ao Grupo Puzzle, que no Porto estabelece uma contra-corrente artística e serve para dar visibilidade a uma série de artistas que acabam por seguir rumos individuais muito diversos. Esta é uma fase de intensa produção e coincide com um dos momentos mais fantásticos da sua vida. A tropa. Feita entre Setembro de 1974 e Agosto de 1976. «Foi o tempo de que mais gostei, porque estive na tropa durante os três anos mais incríveis do século XX português.» Acontece que o furriel-milicano Albuquerque Mendes tinha dotes artísticos reconhecidos pela hierarquia. Então, «estava na tropa e fazia performances, tinha um quarto só para pintar, ia a festivais internacionais de 'performance' e acho isto extraordinário, porque seria impensável nos nossos dias». Os filhos, Beatriz, 22 anos, estudante de «design», e os gémeos Adriano e Frederico, com 15 anos, acham tudo isto pertença do reino do inimaginável. Tal como os tempos de Coimbra e o sombrio sufoco político, social e cultural do fascismo reinante. «Riem-se destas histórias, até por viverem num universo de Internet, com uma percepção global do mundo, sem repararem que 30 anos não é nada, mas significa esta diferença total.» Essa nunca foi uma preocupação sua. Nem mesmo quando em meados dos anos 70 adere ao Grupo Puzzle, que no Porto estabelece uma contra-corrente artística e serve para dar visibilidade a uma série de artistas que acabam por seguir rumos individuais muito diversos. Esta é uma fase de intensa produção e coincide com um dos momentos mais fantásticos da sua vida. A tropa. Feita entre Setembro de 1974 e Agosto de 1976. «Foi o tempo de que mais gostei, porque estive na tropa durante os três anos mais incríveis do século XX português.» Acontece que o furriel-milicano Albuquerque Mendes tinha dotes artísticos reconhecidos pela hierarquia. Então, «estava na tropa e fazia performances, tinha um quarto só para pintar, ia a festivais internacionais de 'performance' e acho isto extraordinário, porque seria impensável nos nossos dias». Os filhos, Beatriz, 22 anos, estudante de «design», e os gémeos Adriano e Frederico, com 15 anos, acham tudo isto pertença do reino do inimaginável. Tal como os tempos de Coimbra e o sombrio sufoco político, social e cultural do fascismo reinante. «Riem-se destas histórias, até por viverem num universo de Internet, com uma percepção global do mundo, sem repararem que 30 anos não é nada, mas significa esta diferença total.» «Dia dos namorados» (1991), acrílico sobre tela, 82 X 61 cm (colecção particular, Porto) Quando passeia pelas ruas do Porto, sempre a pé por não ter carta de condução, embrulhado no seu imenso sobretudo ou nos intermináveis cachecóis, Albuquerque Mendes deixa um rasto de tranquilidade. A mesma tranquilidade que vai beber às origens quando recorda a infância em Trancoso, rodeado de neve no Natal. Ou as férias com os pais, todos os anos em Agosto, na Figueira da Foz. Ou ainda as idas à caça com o pai, mesmo se é com a mãe que recorda ter estabelecido uma grande cumplicidade. Foi essa mesma tranquilidade que o fez caminhar sem se tentar pelo precipício quando, em 1992, depois de vários anos de sofrimento, descobre que tem um corpo de 38 anos «e uma aorta com 120 anos». O professor Manuel Antunes coloca-lhe uma aorta mecânica, feita em quartzo e constrói-lhe uma companhia para a vida. Quando passeia pelas ruas do Porto, sempre a pé por não ter carta de condução, embrulhado no seu imenso sobretudo ou nos intermináveis cachecóis, Albuquerque Mendes deixa um rasto de tranquilidade. A mesma tranquilidade que vai beber às origens quando recorda a infância em Trancoso, rodeado de neve no Natal. Ou as férias com os pais, todos os anos em Agosto, na Figueira da Foz. Ou ainda as idas à caça com o pai, mesmo se é com a mãe que recorda ter estabelecido uma grande cumplicidade. Foi essa mesma tranquilidade que o fez caminhar sem se tentar pelo precipício quando, em 1992, depois de vários anos de sofrimento, descobre que tem um corpo de 38 anos «e uma aorta com 120 anos». O professor Manuel Antunes coloca-lhe uma aorta mecânica, feita em quartzo e constrói-lhe uma companhia para a vida. Os bolsos dos casacos de Albuquerque são pesados. Carregam cadernos parecidos com os que os merceeiros antigamente utilizavam para apontar as dívidas dos clientes. Estão cheios de desenhos. Pequenos desenhos. Meticulosos projectos de quadros que hão-de nascer. Pensados até o mínimo detalhe. A organização é meticulosa. Impressiona pelo contraste com o «atelier» do artista. Onde o processo de criação é caótico. Onde a ausência de disciplina é tão-só a expressão do deleite de quem se diverte com o conforto do direito à preguiça. Temporária e vigiada. Quando termina, explodem as ondas de criatividade. Então, Albuquerque esquece tudo. Pinta. Até à exaustão. 13

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