Turismo e arte acidental

25-08-2001
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Turismo e Arte Acidental

Sábado, 25 de Agosto de 2001

"Eldorado", uma proposta crítica de Verão feita pelos alunos da Escola Maus-Maus, que toma o Cândido de Voltaire e Lisboa como motivos.

João Pinharanda

Os alunos do ano lectivo 2000/2001 da Escola Maus-Maus, em Lisboa, repetem a iniciativa dos seus colegas do ano passado e apresentam-se num espaço marginal às localizações habituais dos circuitos artísticos normalizados. Ao implicar a opção por estruturas por vezes de difícil manuseamento os intervenientes acabam por ter que enfrentar complexas questões de montagem e reordenamento dos espaços.

Em 2000 a apresentação colectiva foi no Museu das Comunicações. Este ano, um convite quase acidental levou-os à Galeria da Cidade, no recentemente inaugurado Lisboa Welcome Centre, ao Terreiro do Paço.

Com um orçamento quase inexistente (500 contos para oito artistas) as obras apresentadas podem ter menor impacte ou elaboração que as anteriores (recorde-se o vídeo de Vasco Araújo ou a instalação de João Pedro Vale). Mas nem por isso revelam um menor investimento programático ou atenção ao desenvolvimento temático. Mostrando como a arte actual se alimenta, e pode sobreviver, dos motivos de uma realiade acidental.

Integrando as iniciativas ligadas ao "Festival dos Oceanos" a temática sugerida tem a ver com o turismo através da evocação de uma personagem estrangeira de visita a Lisboa. Se a festa de abertura do Festival (domingo dia 18) se referia a uma imaginária passagem de Casanova pela cidade, na exposição evoca-se a passagem de Cândido e seus companheiros de (des)venturas - recorde-se que Cândido chega a Lisboa em 1755, no dia do Terramoto. Criação literária de Voltaire, Cândido, é uma sátira ao optimismo sem freio do Iluminismo seu contemporâneo. Pode mesmo funcionar como uma premonitória crítica à própria ideia ocidental de progresso indefinido que se manteve quase inatacável desde então e até à década de 70 do século XX.

Ao entrarmos no espaço oferece-se-nos um outro espaço de construção provisória: o cubo branco de uma sala virtual de exposições. Na parede, Rodrigo Oliveira colocou apenas um texto bilingue, citado de uma publicação oficial do Centro de Acolhimento e que anuncia a intenção de tornar a Galeria da Cidade numa das mais importantes de Lisboa. A sala, abobadada e de escasso pé-direito, o chão em madeira prejudicando a sonoridade e a exposição de escultura, a não definição de um perfil de clara contemporaneidade na programação do local tornam a citação uma ironia.

Aliás a ostensiva decoração, com a ocupação e divisão das zonas individuais de cada artista, com vasos e tufos de plantas, cadeiras e mesas de café ou secretárias de atendimento público e estantes acentua o carácter indiferenciado do espaço.

Indiferenciação é a aposta dos 81 diapositivos de Sérgio Leitão sobre Lisboa. Reenquadramentos de edifícios anónimos do surto da construção em altura (aço, vidro e betão), negam o "cliché" turístico da cidade - tanto poderiam ser tomadas nas docklands de Londres, como na Berlim Oriental, em Tóquio, em Houston, em certas lojas de Paris ou em Dallas... Contra esta uniformização - a imagem de uma cidade global - se orienta o trabalho de Daniela Silvestre. Numa excessiva farda de guia, orienta duas visitas guiadas por dia (em inglês, às 9h30, e e em português, às 17h) indo com os visitantes inscritos do Terreiro do Paço ao Rossio acentuando pequenas histórias esquecidas, todas com uma moral artística: os constrangimentos económicos e políticos da criação artística no séc. XVII (analisando os contratos de trabalho de Machado de Castro para a estátua de D. José), o "fake" que é a estátua de D. Pedro IV, no Rossio. Luís Colaço, criando o convite da exposição, parodia os postais turísticos de humor citando tanto a vocação tropicalista dos descobrimentos como motivos do desenho urbano lisboeta.

Manipulando imagens do dia 25 de Abril de 1974 (da autoria de Alfredo Cunha) Maria Santos coloca-se em cada uma delas, protagonizando acontecimentos anteriores à sua própria existência e dando sentido a uma intervenção feminima que rareia nas imagens citadas. Também Célia Domingues pretende alterar o género do discurso de Voltaire ao, muito simplesmente, alterar os sexos dos protagonistas de um dos capítulos mais sexistamente violentos da obra, reintitulada, "Cândida, a optimista".

Outros dois trabalhos acertam a imagem pela citação directa de Voltaire. Max, num vídeo de dupla imagem (a displicência da filmagem e do som não se tornam semanticamente significativas) mobilizou os seus colegas para a realização de petições individuais acerca dos espaços verdes de Lisboa, enquanto ele, mascarado à séc. XVIII passeia no Campo Grande e se dirige às mesmas repartições encenando a figura do homem público, interventivo, protestando contra a passividade optimista ou adormecida dos seus concidadãos.

Finalmente, Mariana Ramos, mimando o grafismo de uma das edições portuguesas de "Cândido" (Europa-América) actualiza a sua figura para a de um turista acidental passeando por Lisboa em busca de salvação para uma sucessão de desastres que, evidentemente, não se chegam a resolver.

Turismo e Arte Acidental

Sábado, 25 de Agosto de 2001

"Eldorado", uma proposta crítica de Verão feita pelos alunos da Escola Maus-Maus, que toma o Cândido de Voltaire e Lisboa como motivos.

João Pinharanda

Os alunos do ano lectivo 2000/2001 da Escola Maus-Maus, em Lisboa, repetem a iniciativa dos seus colegas do ano passado e apresentam-se num espaço marginal às localizações habituais dos circuitos artísticos normalizados. Ao implicar a opção por estruturas por vezes de difícil manuseamento os intervenientes acabam por ter que enfrentar complexas questões de montagem e reordenamento dos espaços.

Em 2000 a apresentação colectiva foi no Museu das Comunicações. Este ano, um convite quase acidental levou-os à Galeria da Cidade, no recentemente inaugurado Lisboa Welcome Centre, ao Terreiro do Paço.

Com um orçamento quase inexistente (500 contos para oito artistas) as obras apresentadas podem ter menor impacte ou elaboração que as anteriores (recorde-se o vídeo de Vasco Araújo ou a instalação de João Pedro Vale). Mas nem por isso revelam um menor investimento programático ou atenção ao desenvolvimento temático. Mostrando como a arte actual se alimenta, e pode sobreviver, dos motivos de uma realiade acidental.

Integrando as iniciativas ligadas ao "Festival dos Oceanos" a temática sugerida tem a ver com o turismo através da evocação de uma personagem estrangeira de visita a Lisboa. Se a festa de abertura do Festival (domingo dia 18) se referia a uma imaginária passagem de Casanova pela cidade, na exposição evoca-se a passagem de Cândido e seus companheiros de (des)venturas - recorde-se que Cândido chega a Lisboa em 1755, no dia do Terramoto. Criação literária de Voltaire, Cândido, é uma sátira ao optimismo sem freio do Iluminismo seu contemporâneo. Pode mesmo funcionar como uma premonitória crítica à própria ideia ocidental de progresso indefinido que se manteve quase inatacável desde então e até à década de 70 do século XX.

Ao entrarmos no espaço oferece-se-nos um outro espaço de construção provisória: o cubo branco de uma sala virtual de exposições. Na parede, Rodrigo Oliveira colocou apenas um texto bilingue, citado de uma publicação oficial do Centro de Acolhimento e que anuncia a intenção de tornar a Galeria da Cidade numa das mais importantes de Lisboa. A sala, abobadada e de escasso pé-direito, o chão em madeira prejudicando a sonoridade e a exposição de escultura, a não definição de um perfil de clara contemporaneidade na programação do local tornam a citação uma ironia.

Aliás a ostensiva decoração, com a ocupação e divisão das zonas individuais de cada artista, com vasos e tufos de plantas, cadeiras e mesas de café ou secretárias de atendimento público e estantes acentua o carácter indiferenciado do espaço.

Indiferenciação é a aposta dos 81 diapositivos de Sérgio Leitão sobre Lisboa. Reenquadramentos de edifícios anónimos do surto da construção em altura (aço, vidro e betão), negam o "cliché" turístico da cidade - tanto poderiam ser tomadas nas docklands de Londres, como na Berlim Oriental, em Tóquio, em Houston, em certas lojas de Paris ou em Dallas... Contra esta uniformização - a imagem de uma cidade global - se orienta o trabalho de Daniela Silvestre. Numa excessiva farda de guia, orienta duas visitas guiadas por dia (em inglês, às 9h30, e e em português, às 17h) indo com os visitantes inscritos do Terreiro do Paço ao Rossio acentuando pequenas histórias esquecidas, todas com uma moral artística: os constrangimentos económicos e políticos da criação artística no séc. XVII (analisando os contratos de trabalho de Machado de Castro para a estátua de D. José), o "fake" que é a estátua de D. Pedro IV, no Rossio. Luís Colaço, criando o convite da exposição, parodia os postais turísticos de humor citando tanto a vocação tropicalista dos descobrimentos como motivos do desenho urbano lisboeta.

Manipulando imagens do dia 25 de Abril de 1974 (da autoria de Alfredo Cunha) Maria Santos coloca-se em cada uma delas, protagonizando acontecimentos anteriores à sua própria existência e dando sentido a uma intervenção feminima que rareia nas imagens citadas. Também Célia Domingues pretende alterar o género do discurso de Voltaire ao, muito simplesmente, alterar os sexos dos protagonistas de um dos capítulos mais sexistamente violentos da obra, reintitulada, "Cândida, a optimista".

Outros dois trabalhos acertam a imagem pela citação directa de Voltaire. Max, num vídeo de dupla imagem (a displicência da filmagem e do som não se tornam semanticamente significativas) mobilizou os seus colegas para a realização de petições individuais acerca dos espaços verdes de Lisboa, enquanto ele, mascarado à séc. XVIII passeia no Campo Grande e se dirige às mesmas repartições encenando a figura do homem público, interventivo, protestando contra a passividade optimista ou adormecida dos seus concidadãos.

Finalmente, Mariana Ramos, mimando o grafismo de uma das edições portuguesas de "Cândido" (Europa-América) actualiza a sua figura para a de um turista acidental passeando por Lisboa em busca de salvação para uma sucessão de desastres que, evidentemente, não se chegam a resolver.

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