Suplemento Mil Folhas

19-11-2001
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A Alma e o Holofote

Por EDUARDO PRADO COELHO

Sábado, 5 de Maio de 2001

No plano do diagnóstico crítico, em "Novo Ciclo", há quatro traços que aparecem como recorrentes: necessidade de um reforço claro da dimensão política, com tudo o que isso implica; valorização da dimensão estratégica a longo prazo em relação às piruetas e fogos-de-artifício a curto prazo; valorização da componente voluntarista contra a ilusão de agradar a todos e de satisfazer todos; crítica implacável do universo mediático, onde os dirigentes políticos perdem a alma por amor do holofote.

Novo ciclo? É sob este lema que um conjunto de personalidades ligadas (ou próximas) ao PS resolveu apresentar algumas reflexões que apontam para o que, no subtítulo, designam como uma "política do futuro". O resultado é um pequeno mas estimulante livro agora lançado pela Editorial Notícias (que continua a apostar em verdadeiros "tiros" editoriais).

Qual o âmbito desta expressão? Uns irão ligá-la - é inevitável - às circunstâncias mais imediatas, e até à realização do Congresso do Partido Socialista. É neste sentido que podemos ler a afirmação (num contexto, aliás, fortemente crítico) de que "o primeiro ano da segunda legislatura (...) constituiu uma falsa partida para um novo ciclo". Outros, como João de Almeida Santos ou Guilherme d'Oliveira Martins, preferem enveredar por uma dimensão mais ampla e global, e mesmo apelar para a referência prestigiante de Vico relativamente aos "corsi" e "recorsi" de uma história que nunca avança linearmente e com uma cadência regular.

De qualquer modo, devemos sublinhar de entrada que este livro constitui um conjunto de textos de teor e índole muito variável: para além de reflexões de fundo, como aquela que, com a sua habitual capacidade de informação e de reflexão, nos propõe Guilherme d'Oliveira Martins, encontramos textos de recorte mais ideológico ou cultural (como os de Conde Rodrigues e Leonel Moura), outros voltados para o desenvolvimento de uma ideia forte (é o caso de Mariano Gago ou de João de Almeida Santos), outros marcados por uma experiência governativa e/ou parlamentar (como sucede com Alberto Martins ou Maria de Belém Roseira). Refira-se, no entanto, que todos eles têm de um modo explícito, ou por contraste óbvio entre o que dizem e a realidade, uma dimensão fortemente crítica. E nesse plano do diagnóstico crítico há quatro traços que aparecem como recorrentes: necessidade de um reforço claro da dimensão política, com tudo o que isso implica (como se nos últimos tempos se tivesse vivido mais em termos de administração de crises do que de condução política da governação); valorização da dimensão estratégica a longo prazo em relação às piruetas e fogos-de-artifício a curto prazo (o que aliás decorre da alínea anterior); valorização da componente voluntarista contra a ilusão de agradar a todos e de satisfazer todos; crítica implacável do universo mediático, onde os dirigentes políticos perdem a alma por amor do holofote (área onde há coisas que não dependem do Governo, e outras que dele dependem: mas é impossível não reconhecer que, naquelas que dele dependem, o panorama ainda está longe de ser famoso e a desorientação persiste em proliferar).

Demos dois exemplos. Mariano Gago (que, sendo um dos melhores ministros dos governos socialistas, soube ultrapassar sem pânico a fase inicial de sondagens que o desconheciam) defende, de um modo que só é frio na aparência, "uma ética do estudo e do trabalho" contra o "fatalismo preguiçoso de boa consciência". É verdade que em Portugal se trabalha pouco e mal, e sem grandes competências profissionais, e com escasso desejo de valorização profissional. Mas, dentro desta "ética", fará sentido o "facilitismo" reiterado das "pontes" que reduzem a metade as semanas de trabalho? Não. Mas para as eliminar seria necessário conversar de olhos nos olhos com os portugueses, e não por observações laterais para jornalistas ou em tiradas brilhantes na Assembleia da República.

Segundo exemplo. Seria fácil explicar a realidade aos portugueses: nas actuais circunstâncias de inflação, o aumento (em teoria, justo) dos vencimentos nas negociações salariais iria criar o que, em circunstâncias idênticas, Michel Rocard chamava "uma moeda de macaco": tendo-se a ilusão de que se ficava a ganhar mais, ficava-se a ganhar menos. Mas para aceitar isto seria necessário haver confiança na equipa económica - o que, não estou a dizer uma novidade, manifestamente não existe.

Os textos aqui reunidos têm ambições muito diversas. Alguns parecem ter sido redigidos apressadamente, apenas para satisfazer um compromisso. Daí a minha desilusão (confesso-a, tanto mais que se trata de pessoa que muito admiro) com a contribuição de Alberto Martins, que fica muito no plano das generalidades, quando, como se pode comprovar pelas restantes intervenções (em particular, a de Carlos Zorrinho, bastante mais técnica e pertinente), se trata de uma área absolutamente decisiva (não apenas no interface com o público, mas em relação a toda a prática governativa).

João de Almeida Santos dá-nos, pelo contrário, páginas altamente interessantes de um trabalho que tem vindo a desenvolver. Destacaria sobretudo um aspecto do seu ensaio: o modo como mostra que as tecnologias da informação e comunicação foram retirando território e dimensão espacial às comunicações entre os homens, desligando-se progressivamente da base comunitária. Que resulta daqui? O que João de Almeida Santos designa como uma "descomunitarização da comunicação", e neste ponto surge uma ideia que me parece excelente: que uma das principais formas de contrariar esta tendência é através de uma política da cidade, criando no interior desta espaços com valor de uso, e reabilitando a dimensão convivial da proximidade: a cidade feita de bairros e praças com múltiplas formas culturais e existenciais de uso. Parece-me, contudo, que João de Almeida Santos, acentuando talvez em excesso o determinismo tecnológico, não põe em relevo os pontos de bifurcação onde incide a dimensão política das novas tecnologias (o que surge por exemplo, com vocabulários distintos, nos livros de Castells e de Toni Negri e Michael Hardt, oportunamente convocados por Guilherme d'Oliveira Martins).

Em relação a um interessante contributo de Conde Rodrigues, intitulado (direi corajosamente?) "Ser de esquerda", creio que se verifica um efeito oposto. Conde Rodrigues lembra uma frase (infeliz) de Tony Blair: "Não há uma gestão económica de direita ou de esquerda, mas boa ou má gestão económica." Frase que poderíamos corrigir para "pode haver uma boa ou uma má gestão económica de direita e pode haver uma boa ou uma má gestão económica de esquerda" - vejam-se neste ponto as duas magníficas entrevistas, dadas ao PÚBLICO e à "Visão", por Vasco Vieira de Almeida. Mas Conde Rodrigues, pretendendo "salvar" Tony Blair, acaba por separar em excesso a economia da dimensão social e política - como se a economia fosse neutra. Ora, como lembra Guilherme d'Oliveira Martins, "é a economia política que nos interessa", porque só esta permite, através de mecanismos económicos de regulação (veja-se neste plano o recente Elie Cohen, "L'Ordre Économique Mondial - Essai sur les Autorités de Régulation", Fayard, 2001), que a economia de mercado se não transforme em sociedade de mercado, e que se não aceite "o contágio que nos conduziria a ver o conjunto dos valores sociais como valores monetários e o conjunto das relações sociais como relações mercantis" - e encontraremos hoje uma melhor definição para uma política socialista?

Ora se é verdade que Conde Rodrigues pretende deixar ao mercado o lugar do económico, e colocar a política na defesa da liberdade e no retorno aos valores que asseguram a coesão social, acentua pouco, em minha opinião, como é preciso também ver esta divisão de tarefas em termos de luta entre uma lógica de mercado que tende a dominar tudo e uma defesa da liberdade e dos valores contra a lógica do mercado. É aqui que se torna necessário ver que os mercados não estão separados de uma ordem social - eles resultam de uma construção social, porque estão embutidos em estruturas sociais, como amplamente tem vindo a demonstrar esse fundamental sociólogo contemporâneo que é Mark Granovetter (veja-se Mark Granovetter, "Le Marché Autrement", Desclée de Brouwer, 2000).

Trata-se de um livro extremamente oportuno. Mas ao mesmo tempo, extremamente lacunar: há inúmeras dimensões (relativas à economia, ao trabalho, à ecologia, à cultura, à saúde, à justiça, etc.) que estão ausentes. Daí a pergunta: se o índice foi feito em função das pessoas, que razões políticas reuniram estas pessoas?

A Alma e o Holofote

Por EDUARDO PRADO COELHO

Sábado, 5 de Maio de 2001

No plano do diagnóstico crítico, em "Novo Ciclo", há quatro traços que aparecem como recorrentes: necessidade de um reforço claro da dimensão política, com tudo o que isso implica; valorização da dimensão estratégica a longo prazo em relação às piruetas e fogos-de-artifício a curto prazo; valorização da componente voluntarista contra a ilusão de agradar a todos e de satisfazer todos; crítica implacável do universo mediático, onde os dirigentes políticos perdem a alma por amor do holofote.

Novo ciclo? É sob este lema que um conjunto de personalidades ligadas (ou próximas) ao PS resolveu apresentar algumas reflexões que apontam para o que, no subtítulo, designam como uma "política do futuro". O resultado é um pequeno mas estimulante livro agora lançado pela Editorial Notícias (que continua a apostar em verdadeiros "tiros" editoriais).

Qual o âmbito desta expressão? Uns irão ligá-la - é inevitável - às circunstâncias mais imediatas, e até à realização do Congresso do Partido Socialista. É neste sentido que podemos ler a afirmação (num contexto, aliás, fortemente crítico) de que "o primeiro ano da segunda legislatura (...) constituiu uma falsa partida para um novo ciclo". Outros, como João de Almeida Santos ou Guilherme d'Oliveira Martins, preferem enveredar por uma dimensão mais ampla e global, e mesmo apelar para a referência prestigiante de Vico relativamente aos "corsi" e "recorsi" de uma história que nunca avança linearmente e com uma cadência regular.

De qualquer modo, devemos sublinhar de entrada que este livro constitui um conjunto de textos de teor e índole muito variável: para além de reflexões de fundo, como aquela que, com a sua habitual capacidade de informação e de reflexão, nos propõe Guilherme d'Oliveira Martins, encontramos textos de recorte mais ideológico ou cultural (como os de Conde Rodrigues e Leonel Moura), outros voltados para o desenvolvimento de uma ideia forte (é o caso de Mariano Gago ou de João de Almeida Santos), outros marcados por uma experiência governativa e/ou parlamentar (como sucede com Alberto Martins ou Maria de Belém Roseira). Refira-se, no entanto, que todos eles têm de um modo explícito, ou por contraste óbvio entre o que dizem e a realidade, uma dimensão fortemente crítica. E nesse plano do diagnóstico crítico há quatro traços que aparecem como recorrentes: necessidade de um reforço claro da dimensão política, com tudo o que isso implica (como se nos últimos tempos se tivesse vivido mais em termos de administração de crises do que de condução política da governação); valorização da dimensão estratégica a longo prazo em relação às piruetas e fogos-de-artifício a curto prazo (o que aliás decorre da alínea anterior); valorização da componente voluntarista contra a ilusão de agradar a todos e de satisfazer todos; crítica implacável do universo mediático, onde os dirigentes políticos perdem a alma por amor do holofote (área onde há coisas que não dependem do Governo, e outras que dele dependem: mas é impossível não reconhecer que, naquelas que dele dependem, o panorama ainda está longe de ser famoso e a desorientação persiste em proliferar).

Demos dois exemplos. Mariano Gago (que, sendo um dos melhores ministros dos governos socialistas, soube ultrapassar sem pânico a fase inicial de sondagens que o desconheciam) defende, de um modo que só é frio na aparência, "uma ética do estudo e do trabalho" contra o "fatalismo preguiçoso de boa consciência". É verdade que em Portugal se trabalha pouco e mal, e sem grandes competências profissionais, e com escasso desejo de valorização profissional. Mas, dentro desta "ética", fará sentido o "facilitismo" reiterado das "pontes" que reduzem a metade as semanas de trabalho? Não. Mas para as eliminar seria necessário conversar de olhos nos olhos com os portugueses, e não por observações laterais para jornalistas ou em tiradas brilhantes na Assembleia da República.

Segundo exemplo. Seria fácil explicar a realidade aos portugueses: nas actuais circunstâncias de inflação, o aumento (em teoria, justo) dos vencimentos nas negociações salariais iria criar o que, em circunstâncias idênticas, Michel Rocard chamava "uma moeda de macaco": tendo-se a ilusão de que se ficava a ganhar mais, ficava-se a ganhar menos. Mas para aceitar isto seria necessário haver confiança na equipa económica - o que, não estou a dizer uma novidade, manifestamente não existe.

Os textos aqui reunidos têm ambições muito diversas. Alguns parecem ter sido redigidos apressadamente, apenas para satisfazer um compromisso. Daí a minha desilusão (confesso-a, tanto mais que se trata de pessoa que muito admiro) com a contribuição de Alberto Martins, que fica muito no plano das generalidades, quando, como se pode comprovar pelas restantes intervenções (em particular, a de Carlos Zorrinho, bastante mais técnica e pertinente), se trata de uma área absolutamente decisiva (não apenas no interface com o público, mas em relação a toda a prática governativa).

João de Almeida Santos dá-nos, pelo contrário, páginas altamente interessantes de um trabalho que tem vindo a desenvolver. Destacaria sobretudo um aspecto do seu ensaio: o modo como mostra que as tecnologias da informação e comunicação foram retirando território e dimensão espacial às comunicações entre os homens, desligando-se progressivamente da base comunitária. Que resulta daqui? O que João de Almeida Santos designa como uma "descomunitarização da comunicação", e neste ponto surge uma ideia que me parece excelente: que uma das principais formas de contrariar esta tendência é através de uma política da cidade, criando no interior desta espaços com valor de uso, e reabilitando a dimensão convivial da proximidade: a cidade feita de bairros e praças com múltiplas formas culturais e existenciais de uso. Parece-me, contudo, que João de Almeida Santos, acentuando talvez em excesso o determinismo tecnológico, não põe em relevo os pontos de bifurcação onde incide a dimensão política das novas tecnologias (o que surge por exemplo, com vocabulários distintos, nos livros de Castells e de Toni Negri e Michael Hardt, oportunamente convocados por Guilherme d'Oliveira Martins).

Em relação a um interessante contributo de Conde Rodrigues, intitulado (direi corajosamente?) "Ser de esquerda", creio que se verifica um efeito oposto. Conde Rodrigues lembra uma frase (infeliz) de Tony Blair: "Não há uma gestão económica de direita ou de esquerda, mas boa ou má gestão económica." Frase que poderíamos corrigir para "pode haver uma boa ou uma má gestão económica de direita e pode haver uma boa ou uma má gestão económica de esquerda" - vejam-se neste ponto as duas magníficas entrevistas, dadas ao PÚBLICO e à "Visão", por Vasco Vieira de Almeida. Mas Conde Rodrigues, pretendendo "salvar" Tony Blair, acaba por separar em excesso a economia da dimensão social e política - como se a economia fosse neutra. Ora, como lembra Guilherme d'Oliveira Martins, "é a economia política que nos interessa", porque só esta permite, através de mecanismos económicos de regulação (veja-se neste plano o recente Elie Cohen, "L'Ordre Économique Mondial - Essai sur les Autorités de Régulation", Fayard, 2001), que a economia de mercado se não transforme em sociedade de mercado, e que se não aceite "o contágio que nos conduziria a ver o conjunto dos valores sociais como valores monetários e o conjunto das relações sociais como relações mercantis" - e encontraremos hoje uma melhor definição para uma política socialista?

Ora se é verdade que Conde Rodrigues pretende deixar ao mercado o lugar do económico, e colocar a política na defesa da liberdade e no retorno aos valores que asseguram a coesão social, acentua pouco, em minha opinião, como é preciso também ver esta divisão de tarefas em termos de luta entre uma lógica de mercado que tende a dominar tudo e uma defesa da liberdade e dos valores contra a lógica do mercado. É aqui que se torna necessário ver que os mercados não estão separados de uma ordem social - eles resultam de uma construção social, porque estão embutidos em estruturas sociais, como amplamente tem vindo a demonstrar esse fundamental sociólogo contemporâneo que é Mark Granovetter (veja-se Mark Granovetter, "Le Marché Autrement", Desclée de Brouwer, 2000).

Trata-se de um livro extremamente oportuno. Mas ao mesmo tempo, extremamente lacunar: há inúmeras dimensões (relativas à economia, ao trabalho, à ecologia, à cultura, à saúde, à justiça, etc.) que estão ausentes. Daí a pergunta: se o índice foi feito em função das pessoas, que razões políticas reuniram estas pessoas?

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