Ilustres desconhecidos

01-11-2001
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Autores de manuais escolares

Ilustres Desconhecidos

Por DULCE NETO

Segunda-feira, 1 de Outubro de 2001 Não falam em livros. Falam em "projectos" ou "blocos pedagógicos". Em vez de leitores referem alunos, professores, pais. O discurso é o das competências, da educação, dos ciclos. Escrevem muito, às vezes durante muitos anos, "porque os livros envelhecem rapidamente". Fabricam best-sellers, as suas páginas são vigiadas por milhares de olhos, mas poucos os conhecem. "Fazem um trabalho mais difícil do que escrever um romance". São autores de manuais escolares, casos de sucesso anónimo. Faça um pequeno teste de memória. Como se chamava o livro de Português quando andava na escola, no 7º ano? E o de Matemática no 9º ano? Não se lembra? E o de História no 11º ano? E os nomes dos autores? É pedir demais? Esqueça então o passado e tente outro exercício. Se por estes dias, em que as aulas voltam a marcar o quotidiano de muitos milhares de pessoas, pousar os olhos num desses livros escritos para ensinar, repare numas linhas mais pequenas da capa. Sim, nos nomes de quem escreveu, pensou e discutiu essas páginas. Não se concentre nos preços dos manuais escolares, na polémica sobre o livro único ou a certificação de qualidade, nas prendas das editoras aos professores no momento da escolha dos livros, no volume de negócios que varia entre 15 e 20 milhões de contos anuais, na superabundância de títulos (em 1999 eram 1489, 878 novos). E pense nos homens e mulheres (cada vez mais) que inventaram esse livro. Quem são? Como são escolhidos pelas editoras? O que fazem? Como trabalham? Quanto ganham? Que constrangimentos lhes tolhem a criação? São escritores? "Somos escritores entre aspas" sorri Maria do Céu Rodrigues que, juntamente com Maria Manuel Oliveira, se estreou este ano com "Em Português", o manual de língua portuguesa para o 6º ano (Texto Editora). "É completamente diferente, é um trabalho mais esquemático do que escrever um romance ou um ensaio", responde Mário Lima, que, com 30 anos, está neste momento a trabalhar no seu primeiro manual: Matemática, para o 7º ano (ASA). "Não, eu sou mesmo escritora", desinibe-se Maria Luisa Guerra, autora de 33 livros escolares de História e Filosofia (desde 1966 até 1987), abrindo um parêntesis na sua modéstia, para ser rigorosa: "Escrevi ensaios, muitas pessoas me disseram que era uma pena eu não me dedicar a outro tipo de obras". Ser ou não escritor é questão que não se coloca. Simplesmente não interessa. As editoras procuram ou aceitam pessoas com um perfil bem definido. "Um bom autor é um bom professor, extremamente trabalhador e sacrificado (porque gasta centenas ou milhares de horas do seu tempo livre), com boa capacidade de escrita adequada ao nível etário para o qual se destina o livro", enuncia Vasco Teixeira, presidente da Porto Editora, que há 57 anos faz manuais escolares e que domina o mercado. Mas "não é fácil" encontrar pessoas com estas características. Na maior parte dos casos têm entre 38 e 50 anos ("antigamente eram mais velhos, acreditava-se que com a idade teriam outra qualidade, e havia mais homens", refere Pedro Mineiro, director de marketing da Plátano) e ganham dez por cento sobre o preço de capa. Arlindo Caldeira, que desde 1985 se tornou autor, com História de Portugal para o 6º ano (com Adérito Tavares e mais tarde Maria Emília Diniz, equipa que ainda hoje faz os manuais da disciplina para o 3º ciclo do básico) na Editorial O Livro, resume o que todos os seus colegas contactados pelo PÚBLICA disseram: "Primeiro tem que ser um professor, deve conhecer bem a matéria, ter uma formação científica consistente e grande sensibilidade didáctica". Muitos dos autores são ou foram orientadores de estágio, formadores de professores ou de formadores e têm participação activa em revistas, grupos de trabalho das associações científicas, por exemplo. Algumas editoras, como a ASA, por exemplo, relevam as pós-graduações, os mestrados e experiência de comunicação por escrito. Este é um dos momentos mais difíceis na elaboração de um livro para o estudante, escrever para diferentes idades (há autores que constroem livros para diferentes níveis de escolaridade), numa linguagem acessível que não infantil, interessante e motivadora mas que não seja pobre, num bom equilíbrio com a imagem. Ela escreve à mão, com um lápis em papel branco. "Não imagina a quantidade de lápis que a minha mulher gasta", sorri o marido, também ele professor. Não admira. Clara Santos Bustorff tem sete manuais escolares no mercado. Dois (5º e 6º anos) são líderes de venda, best-sellers desde 1992 e os outros, que já chefiaram o top, estão agora em terceiro lugar. Tudo para a disciplina de inglês. Dois para o 5º ano, dois para o 6º e um para o 7º, 8º e 9º anos. Ao todo, desde que escreve para os alunos e professores, já produziu, algumas vezes em parceria com outras colegas, 16 manuais com os respectivos apoios, que são muitos, por isso refere-se a "projecto" ou "bloco pedagógico". Desde o livro do estudante até ao do professor, passando pelo "workbook", o livro de testes, as cassetes áudio e vídeo, o "filoprof" (um dossier muito completo de auxílio do professor com guiões de utilização das cassetes, pacote de imagens, transparências, etc.), o cd. Sim, não se julgue que o trabalho do autor se cinge ao manual. A concorrência feroz entre as doze a quinze editoras escolares (não há dados estatísticos fiáveis sobre o sector) obriga à produção de outros materiais, uma espécie de satélites que giram em torno do livro do estudante. "É um trabalho louco. O meu dia começa às 9h00 e trabalho nisto, sem parar, até às 15h00." Sem almoço. Não se queixa. Tem um discurso entusiasta, de quem adora ser a número um, e de quem não se autoriza perder esse lugar. Fala do"Hitch-Hiker", série com que iniciou em 1984 esta "paixão" em co-autoria com Dulce Rola, depois do Jet-Line, do Super-Jet Line e agora do Stars como sendo autênticas criações suas. Este ano tem orgulho redobrado nas obras. Já não basta saber que vende entre 20 a 30 mil de cada título por ano, como tem um selo de Best European Schoolbooks na capa do livro: o manual, sujeito pela editora, a Texto (a segunda maior deste mundo escolar) ao concurso do Grupo Europeu de Editores de Manuais para o Ensino, que envolve editoras de vinte países, foi o único título de língua estrangeira a merecer uma menção honrosa. Jorge Lemos, que há quatro anos escreve para a Plátano um manual de Geografia para o 9º ano e um de Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social do 12º ano (em co-autoria),que ocupa a segunda posição nas vendas, está a trabalhar em férias. Sentado na cafetaria do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, local onde se reúne com os colegas para discutirem as páginas, lamenta que o dia só tenha 24 horas, pois além de ser professor ainda está a fazer um mestrado em demografia. Dá aulas na escola secundária Leal da Câmara, Rio de Mouro, Sintra, e "estava longe de pensar que algum dia pudesse escrever manuais escolares", embora no seu trabalho diário tivesse que produzir materiais, "algo que um professor deve sempre fazer, em função dos temas, da localização da escola". Este é um espaço de intervenção do docente "que se tem vindo a perder por culpa do próprio marketing de grandes editoras que levam a que todo o tipo de material - acetatos, fichas de trabalho, etc. - seja oferecido aos professores de modo a influenciá-lo a adoptar aquele manual". É pragmático: "Para que o manual seja concorrencial tenho que ir ao encontro dessa estratégia". Os autores não esquecem o mercado. Escrevem livros a pensar no estudante - é um instrumento de trabalho que permite uma aprendizagem autónoma, dizem Maria do Céu e Arlindo Caldeira - mas são os professores quem os seleccionam. É para estes que produzem os outros produtos que adornam o manual, para "que o professor tenha abundância suficiente de materiais para usar na aula; provavelmente não tem mapa, nós damos-lhe o mapa no livro", acrescenta Arlindo. O processo de adopção que decorre em Maio e Junho nas escolas é alvo de críticas: os professores que decidem em Junho não são os mesmos que em Setembro assumem as turmas (por isso há pais que se queixam de terem comprado manuais que depois não são utilizados), e há pouco tempo para analisar todos os livros que lhes são enviados. Só para Inglês, por exemplo, do 7º ano, há 32 títulos disponíveis! A variedade de manuais "beneficia o editor e penaliza o autor" sublinha Jorge Lemos, de 37 anos, 14 no ensino. Para cada disciplina "uma editora chega a ter duas e três ofertas". O que se justifica pela concorrência, explica Arlindo Caldeira. Mas Manuel Ferrão, responsável pela Texto Editora, que tem mais de 400 livros e mil autores, justifica de outra forma: "As escolas são todas diferentes, as turmas não são iguais e os professores também não. Por isso há vários livros.". Mário Lima, professor da escola do ensino básico dos 2º e 3º ciclos de Perafita, Matosinhos, que se obrigou a pensar noutras componentes que não apenas o manual, confessa que, para já, o seu novíssimo "projecto" está "a dar mais trabalho do que gozo". "Tudo dá trabalho, a concepção, a investigação, o processamento da informação, tudo implica muito tempo". Convidado pela editora diz que fará apenas este livro para este ano: "Por uma questão de princípio sou contra vários manuais para a mesma disciplina, para evitar conflitos internos". Aliás, Mário Lima não concorda com a tradição de adoptar manuais por escola. Devia ser cada professor a sugerir o livro com que queria trabalhar. E Manoel Lopes, escultor, que desde 1975 trabalha para a ASA, com o manual de Educação Visual para o terceiro ciclo, lembra os que defendem que deviam ser os próprios alunos a fazer o manual. Os seus 73 anos e largos anos de experiência (foi professor na Aurélio de Sousa, no Porto) permitem-lhe dizer que "isso é muito bonito mas não funciona em turmas de 30 alunos". A inovação, condição necessária para se vingar num mercado lotado, é um pau de dois bicos. Um risco, principalmente quando a decisão está na mão dos professores. Estes gostam pouco de mudar. Matias Alves, da ASA, diz que "o novo manual tem que ter algo de singular mas não se pode ser muito inovador, porque senão as pessoas já não o escolhem". Às vezes resulta. Como com Clara Bustorff. "Todos os meus livros têm canções, foi assim que eles se impuseram no mercado (e venceram mesmo os concorrentes estrangeiros), na altura foi uma inovação". É ela quem escreve as letras, a música é feita por um antigo aluno, elemento do grupo Tecto Vocal e são cantadas por Rita Guerra, Beto e Henrique Feist. A Adriano Vasco Rodrigues, que está na idade em que se permite fazer aquilo de que gosta, 70 anos, inovar foi crucial. Autor da História Geral da Civilização (1961, Porto Editora) diz ter sido ele, pela primeira vez, quem associou a ideia de documento à imagem. O seu livro teve oito edições. Depois perdeu tempo para escrever manuais: "Estive deputado (depois do 25 de Abril), fui para a direcção geral do ensino particular, chefiei a escola europeia da União Europeia, hoje pertenço ao Grupo de Trabalho de Acreditação da Carreira Docente." Às vezes não resulta. "Os projectos muito vanguardistas não vingam, os professores são lentos a mudar" frisa Vasco Teixeira. Às vezes demora a resultar. Como com Maria do Céu Rodrigues e Maria Manuela Oliveira. Convidadas pela editora para apresentar um projecto em pouco tempo (de Novembro a Março), lançaram este ano um manual diferente (muito interessante), preparado para a gestão flexível do currículo. Maria do Céu, professora na escola secundária Poeta Joaquim Serra, na Belavista, Montijo, dá aulas de português desde 1979 e não está muito preocupada com as poucas adopções que o livro teve. "Com o alargamento da gestão flexível, as pessoas vão precisar dele". As duas professoras são conhecidas pelas coisas novas que estão sempre a promover. Orientadoras de estágio, formadoras, têm muitos projectos, fazem ateliers de escrita na escola e sempre disseram que qualquer dia fariam um livro. Agora começaram para não parar. Já estão a preparar um para o 10º ano e em 2001 farão outro para o 5º ano. É que escrever um manual escolar pode significar um trabalho permanente. Cada adopção vale por três ou quatro anos (imposição legal) e na altura das novas escolhas as editoras aproveitam para lançar novos manuais ou para os actualizar. Uns dizem que é só uma forma de as editoras venderem mais, evitando assim os empréstimos entre estudantes ou as feiras dos livros (alunos vendem exemplares usados na escola). Jorge Lemos acredita na necessidade de reformulação: os dados estatísticos ficam rapidamente desactualizados e os chefes do mundo também vão mudando, por exemplo. Vasco Teixeira recorda que o sistema educativo é muito dinâmico e que são necessárias adaptações. Quando passou do Jet-Line para o Super-Jet-Line, Clara Bustorff renovou 60 por cento do manual em textos e exercícios. Um dos recursos que usa são os artistas da berra - no seu escritório há dois armários repletos de todas as revistas nacionais e estrangeiras que fazem as delícias dos miúdos dos 11 aos 16 anos. Lá está a Britney Spears, a Spice Girl Victoria Adams, a Christina Aguillera. E as estrelas também passam de moda. Há que acompanhar as ondas. Os livros envelhecem rapidamente. "Este é um trabalho absolutamente apaixonante. E muito criativo. Completamente". Licenciada em Filologia Germânica, tem dado aulas do 5º ao 9º ano na Escola do Ensino Básico dos 2º e 3º ciclos Eugénio dos Santos. Orientadora de estágio e formadora de professores, deixou crescer em si o gosto "de escrever textos" que vinha desde miúda. No Liceu Filipa de Lencastre, a turma de meninas de dez e onze anos tinha um hábito invulgar: escreviam romances em fascículos que traziam todos os dias e disputavam a leitura (não havia fotocópias) à hora do recreio. "A Alice Vieira, minha colega, escrevia tal como outras raparigas, eu também escrevia, mas era muito tímida e não tinha a produção da Alice". Hoje, Clara Bustorff escreve em inglês e tem uma verdadeira estrutura montada em casa para produzir manuais. Sente-se criadora. "Todos os textos são fabricados por mim. Crio personagens com certas características, com unidade, inseridas num conteúdo programático, para atingir determinado objectivo e perante isso construo um texto, normalmente com uma linha humorística. Procura que os seus heróis sejam o mais possível semelhantes às idades para as quais escreve (um pouquinho mais velhas, eles gostam deles um nadinha mais crescidos, porque eles, no fundo, pretendem ser mais velhos)". Para além do seu acervo de revistas e das consultas à Internet, fala com muitos miúdos e com as colegas espalhadas pelo país que lhes contam dos seus heróis do momento, na música, no desporto. "É fundamental que nos livros estejam temas que lhes interessem porque de outra maneira, com a escola paralela que temos, não há aluno que queira o manual. Mas também se abrem outras vias, outros heróis e criam-se valores no sentido de mudar atitudes". Um dos heróis do Super Jet Line 2 é uma criança paraplégica e no manual do 9º ano há textos sobre a sida, sobre o Magic Johnson, jogador de basquetebol e seropositivo. Mas também aparecem Van Gogh, Pessoa, Madre Teresa, Einstein, Figo, Fernanda Ribeiro. "Desde que trate os conteúdos programáticos, posso usar o tema que quiser e fazer o texto que quiser, imaginação não me falta. Procuro transmitir muitos valores, dentro dos objectivos da escolaridade básica". Não se trata de reunir textos e fazer exercícios. Como diz Maria do Céu, um "conjunto de folhas não é um livro". E vai longe o tempo em que os autores se limitavam a fazer pouco mais do que antologias literárias ou a reproduzir extractos de outros livros. Rui Vieira Castro, que coordena uma investigação do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho sobre manuais escolares, frisa que os autores são hoje "mais do que uma espécie de compiladores. Nos últimos 20 anos houve mutações muito significativas de conteúdo, os manuais são muito mais complexos. Têm textos, criados ou reproduzidos, mas têm também orientações, avaliação, grelhas de leitura, informações que correspondem aos conteúdos programáticos". São muito atractivos, têm jogos, endereços de Internet, notícias. Ainda assim, ou talvez por isso, há limites à criatividade. "Temos muitas limitações: o espaço, o programa, que nos condiciona completamente, e a necessidade de ir inovando", avisa Arlindo Caldeira que, no entanto, considera este "um trabalho criativo e de responsabilidade". A "bíblia do autor é o programa da disciplina", estabelece Manuel Ferrão. É pela interpretação do programa que começa o seu trabalho. E esse é o primeiro constrangimento, depois de já ter aceite fazer vários "adornos" ao manual. Como sublinha Rui Vieira: "Há um discurso à volta dos manuais escolares que releva da sua dimensão pedagógica que esconde uma dimensão fundamental que é o facto de serem objectos de consumo". O investigador acentua que os autores hoje "fazem uma espécie de concretização do programa escolar, a maioria dos manuais são a própria disciplina, com conteúdos, metodologias e avaliação. Este tipo de objectos e de práticas acaba por se traduzir numa razoável desqualificação dos próprios professores". O que significa "uma redução preocupante dos espaços de acção profissional, o desenvolvimento do curriculum é qualquer coisa gerado fora da escola, nas editoras". As exigências de quem publica são outro limite. "Isto não é um romance", garante Manuel Ferrão. "Nunca um trabalho de editor é tão apurado como no manual escolar. Trabalha desde o início com o autor". As editoras não só propõem outros produtos, como algumas têm orientações fortes do que deve ser determinado manual (a Asa, por exemplo, tem um ideário pedagógico formatado que entrega aos autores). Os projectos são discutidos com equipas das próprias editoras, algumas têm consultores científicos e pedagógicos que analisam o trabalho dos autores, para lá dos revisores literários. Houve um dia em que tinha excesso de bagagem num voo que a trazia de Nova York. "O que é que leva aí?" perguntam-lhe no aeroporto. "Material autêntico", responde com a naturalidade da verdade. Ou seja cartazes, menus, impressos de bancos, de farmácias, tudo o que recolhe nas suas viagens a países anglo-saxónicos. Todos os anos vai, a pretexto de férias, de carro, ao Reino Unido e à Irlanda. E fotografa, fotografa, fotografa. Tudo. Até meninos em escolas que depois são personagens dos livros. Em sua casa há estantes do chão ao tecto só com dossiers organizados por sítios e assuntos. É o seu banco de imagens, elemento crucial nos manuais actuais. Clara Bustorff não deixa nada em mãos alheias. Vive intensamente a feitura dos seus "projectos". Desde a paginação ao visionamento de vídeos. "Vou escrever manuais sempre. Não me imagino sem trabalhar. Mas fico completamente exausta". O trabalho é duro, reconhecem os editores. Um manual leva 18 meses a ser elaborado, em geral os autores de um só livro gastam seis a nove meses na sua concepção. A sua feitura é cada vez mais repartida. São raros os manuais novos de um só autor. Na Plátano, por exemplo, preferem-se as "equipas mistas", adianta Pedro Mineiro, director do departamento de marketing. É que "há mil e uma maneiras de explicar que 2+2 são quatro", acrescenta Vasco Teixeira para quem "o manual escolar é tão melhor quanto eficaz for e essa eficácia não está numa só cabeça". Este livro é muito uma obra colectiva, insiste Maria do Céu. Só que multiplicar autores significa aumentar horas de produção. Arlindo Caldeira, adepto das equipas, salienta que tudo resulta "de um intensíssimo trabalho de grupo, cada parágrafo é sujeito a uma discussão demoradíssima, fazemos emendas terríveis uns aos outros, há que adequar a linguagem às diferentes idades, trabalhar por consenso é complicado". Dá graças ao computador: "Na época das máquinas de escrever andava sempre de tesourinha na mão. Aproveitava os pedaços de texto aprovados e colava, fazia assim as emendas. Era heróico!" A tarefa é rentável, "mas dá muito trabalho e gasta-se um bocadinho a tirar fotografias", admite Manoel Lopes, que terá vendido uns 50 mil exemplares ao longo dos anos. Nada que se compare com os líderes de mercado das disciplinas obrigatórias, como o português, que chegam a vender 40 a 50 mil por ano. Desde que o manual tenha sucesso (basta que seja adoptado numas 15 escolas para se tornar num best-seller) ganha-se muito dinheiro. Também é um investimento (da editora) avultado e há quem não sobreviva: um manual pode custar mais de sete mil contos e não ter retorno. Jorge Lemos, cujos manuais venderam seis e oito mil por ano, não quer enriquecer com esta actividade. Até porque os 10 por cento sobre o preço de capa (nenhum manual custa menos do que 2.000$00) a que os autores têm direito são a repartir por vários, como acontece com Mário Lima: "Somos cinco e tudo é dividido. Não creio que seja financeiramente vantajoso". Para Arlindo Caldeira (as vendas anuais têm oscilado entre os 30 e os 45 mil exemplares), professor do ensino recorrente na Luis de Camões, Lisboa, considera que é compensatório. "Fico satisfeito quando os filhos dos meus amigos me dizem que estudaram pelo meu livro. Pelo menos contribui com alguma coisa para fazer aquelas cabeças". Só que os autores não têm o reconhecimento da sociedade e dos colegas que mereciam, lamenta Jorge Lemos: "Não me incomoda o anonimato, não busco riqueza nem prestígio, mas este trabalho não é suficientemente valorizado". Todos dizem ter prazer no que fazem, gozo mesmo. Alguns preferem não aparecer. Por pudor? Porque há colegas que os invejam, porque são professores do ensino universitário e não querem que se saiba que participam em livros do ensino não superior. Vasco Teixeira diz admirar os autores de manuais escolares. "Geralmente são muito maltratados, mas é muito, muito difícil escrever um livro destes, muito mais do que escrever um romance, uma peça jornalística, um ensaio, onde o escritor, como Saramago, por exemplo, até pode dar erros de pontuação que tem a desculpa de ser uma opção própria. Um autor nunca o poderia fazer, se tiver uma vírgula fora do sítio já tem um coro de protestos! Se tiver uma frase longa, o manual já não está adequado ao nível etário! São vigiados por milhares de olhos (docentes, pais, alunos) em busca do negativo". Tornar fácil o complicado nunca foi tarefa simples. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Segunda-feira, 1 de Outubro de 2001 Não falam em livros. Falam em "projectos" ou "blocos pedagógicos". Em vez de leitores referem alunos, professores, pais. O discurso é o das competências, da educação, dos ciclos. Escrevem muito, às vezes durante muitos anos, "porque os livros envelhecem rapidamente". Fabricam best-sellers, as suas páginas são vigiadas por milhares de olhos, mas poucos os conhecem. "Fazem um trabalho mais difícil do que escrever um romance". São autores de manuais escolares, casos de sucesso anónimo. Faça um pequeno teste de memória. Como se chamava o livro de Português quando andava na escola, no 7º ano? E o de Matemática no 9º ano? Não se lembra? E o de História no 11º ano? E os nomes dos autores? É pedir demais? Esqueça então o passado e tente outro exercício. Se por estes dias, em que as aulas voltam a marcar o quotidiano de muitos milhares de pessoas, pousar os olhos num desses livros escritos para ensinar, repare numas linhas mais pequenas da capa. Sim, nos nomes de quem escreveu, pensou e discutiu essas páginas. Não se concentre nos preços dos manuais escolares, na polémica sobre o livro único ou a certificação de qualidade, nas prendas das editoras aos professores no momento da escolha dos livros, no volume de negócios que varia entre 15 e 20 milhões de contos anuais, na superabundância de títulos (em 1999 eram 1489, 878 novos). E pense nos homens e mulheres (cada vez mais) que inventaram esse livro. Quem são? Como são escolhidos pelas editoras? O que fazem? Como trabalham? Quanto ganham? Que constrangimentos lhes tolhem a criação? São escritores? "Somos escritores entre aspas" sorri Maria do Céu Rodrigues que, juntamente com Maria Manuel Oliveira, se estreou este ano com "Em Português", o manual de língua portuguesa para o 6º ano (Texto Editora). "É completamente diferente, é um trabalho mais esquemático do que escrever um romance ou um ensaio", responde Mário Lima, que, com 30 anos, está neste momento a trabalhar no seu primeiro manual: Matemática, para o 7º ano (ASA). "Não, eu sou mesmo escritora", desinibe-se Maria Luisa Guerra, autora de 33 livros escolares de História e Filosofia (desde 1966 até 1987), abrindo um parêntesis na sua modéstia, para ser rigorosa: "Escrevi ensaios, muitas pessoas me disseram que era uma pena eu não me dedicar a outro tipo de obras". Ser ou não escritor é questão que não se coloca. Simplesmente não interessa. As editoras procuram ou aceitam pessoas com um perfil bem definido. "Um bom autor é um bom professor, extremamente trabalhador e sacrificado (porque gasta centenas ou milhares de horas do seu tempo livre), com boa capacidade de escrita adequada ao nível etário para o qual se destina o livro", enuncia Vasco Teixeira, presidente da Porto Editora, que há 57 anos faz manuais escolares e que domina o mercado. Mas "não é fácil" encontrar pessoas com estas características. Na maior parte dos casos têm entre 38 e 50 anos ("antigamente eram mais velhos, acreditava-se que com a idade teriam outra qualidade, e havia mais homens", refere Pedro Mineiro, director de marketing da Plátano) e ganham dez por cento sobre o preço de capa. Arlindo Caldeira, que desde 1985 se tornou autor, com História de Portugal para o 6º ano (com Adérito Tavares e mais tarde Maria Emília Diniz, equipa que ainda hoje faz os manuais da disciplina para o 3º ciclo do básico) na Editorial O Livro, resume o que todos os seus colegas contactados pelo PÚBLICA disseram: "Primeiro tem que ser um professor, deve conhecer bem a matéria, ter uma formação científica consistente e grande sensibilidade didáctica". Muitos dos autores são ou foram orientadores de estágio, formadores de professores ou de formadores e têm participação activa em revistas, grupos de trabalho das associações científicas, por exemplo. Algumas editoras, como a ASA, por exemplo, relevam as pós-graduações, os mestrados e experiência de comunicação por escrito. Este é um dos momentos mais difíceis na elaboração de um livro para o estudante, escrever para diferentes idades (há autores que constroem livros para diferentes níveis de escolaridade), numa linguagem acessível que não infantil, interessante e motivadora mas que não seja pobre, num bom equilíbrio com a imagem. Ela escreve à mão, com um lápis em papel branco. "Não imagina a quantidade de lápis que a minha mulher gasta", sorri o marido, também ele professor. Não admira. Clara Santos Bustorff tem sete manuais escolares no mercado. Dois (5º e 6º anos) são líderes de venda, best-sellers desde 1992 e os outros, que já chefiaram o top, estão agora em terceiro lugar. Tudo para a disciplina de inglês. Dois para o 5º ano, dois para o 6º e um para o 7º, 8º e 9º anos. Ao todo, desde que escreve para os alunos e professores, já produziu, algumas vezes em parceria com outras colegas, 16 manuais com os respectivos apoios, que são muitos, por isso refere-se a "projecto" ou "bloco pedagógico". Desde o livro do estudante até ao do professor, passando pelo "workbook", o livro de testes, as cassetes áudio e vídeo, o "filoprof" (um dossier muito completo de auxílio do professor com guiões de utilização das cassetes, pacote de imagens, transparências, etc.), o cd. Sim, não se julgue que o trabalho do autor se cinge ao manual. A concorrência feroz entre as doze a quinze editoras escolares (não há dados estatísticos fiáveis sobre o sector) obriga à produção de outros materiais, uma espécie de satélites que giram em torno do livro do estudante. "É um trabalho louco. O meu dia começa às 9h00 e trabalho nisto, sem parar, até às 15h00." Sem almoço. Não se queixa. Tem um discurso entusiasta, de quem adora ser a número um, e de quem não se autoriza perder esse lugar. Fala do"Hitch-Hiker", série com que iniciou em 1984 esta "paixão" em co-autoria com Dulce Rola, depois do Jet-Line, do Super-Jet Line e agora do Stars como sendo autênticas criações suas. Este ano tem orgulho redobrado nas obras. Já não basta saber que vende entre 20 a 30 mil de cada título por ano, como tem um selo de Best European Schoolbooks na capa do livro: o manual, sujeito pela editora, a Texto (a segunda maior deste mundo escolar) ao concurso do Grupo Europeu de Editores de Manuais para o Ensino, que envolve editoras de vinte países, foi o único título de língua estrangeira a merecer uma menção honrosa. Jorge Lemos, que há quatro anos escreve para a Plátano um manual de Geografia para o 9º ano e um de Introdução ao Desenvolvimento Económico e Social do 12º ano (em co-autoria),que ocupa a segunda posição nas vendas, está a trabalhar em férias. Sentado na cafetaria do Centro Cultural de Belém, em Lisboa, local onde se reúne com os colegas para discutirem as páginas, lamenta que o dia só tenha 24 horas, pois além de ser professor ainda está a fazer um mestrado em demografia. Dá aulas na escola secundária Leal da Câmara, Rio de Mouro, Sintra, e "estava longe de pensar que algum dia pudesse escrever manuais escolares", embora no seu trabalho diário tivesse que produzir materiais, "algo que um professor deve sempre fazer, em função dos temas, da localização da escola". Este é um espaço de intervenção do docente "que se tem vindo a perder por culpa do próprio marketing de grandes editoras que levam a que todo o tipo de material - acetatos, fichas de trabalho, etc. - seja oferecido aos professores de modo a influenciá-lo a adoptar aquele manual". É pragmático: "Para que o manual seja concorrencial tenho que ir ao encontro dessa estratégia". Os autores não esquecem o mercado. Escrevem livros a pensar no estudante - é um instrumento de trabalho que permite uma aprendizagem autónoma, dizem Maria do Céu e Arlindo Caldeira - mas são os professores quem os seleccionam. É para estes que produzem os outros produtos que adornam o manual, para "que o professor tenha abundância suficiente de materiais para usar na aula; provavelmente não tem mapa, nós damos-lhe o mapa no livro", acrescenta Arlindo. O processo de adopção que decorre em Maio e Junho nas escolas é alvo de críticas: os professores que decidem em Junho não são os mesmos que em Setembro assumem as turmas (por isso há pais que se queixam de terem comprado manuais que depois não são utilizados), e há pouco tempo para analisar todos os livros que lhes são enviados. Só para Inglês, por exemplo, do 7º ano, há 32 títulos disponíveis! A variedade de manuais "beneficia o editor e penaliza o autor" sublinha Jorge Lemos, de 37 anos, 14 no ensino. Para cada disciplina "uma editora chega a ter duas e três ofertas". O que se justifica pela concorrência, explica Arlindo Caldeira. Mas Manuel Ferrão, responsável pela Texto Editora, que tem mais de 400 livros e mil autores, justifica de outra forma: "As escolas são todas diferentes, as turmas não são iguais e os professores também não. Por isso há vários livros.". Mário Lima, professor da escola do ensino básico dos 2º e 3º ciclos de Perafita, Matosinhos, que se obrigou a pensar noutras componentes que não apenas o manual, confessa que, para já, o seu novíssimo "projecto" está "a dar mais trabalho do que gozo". "Tudo dá trabalho, a concepção, a investigação, o processamento da informação, tudo implica muito tempo". Convidado pela editora diz que fará apenas este livro para este ano: "Por uma questão de princípio sou contra vários manuais para a mesma disciplina, para evitar conflitos internos". Aliás, Mário Lima não concorda com a tradição de adoptar manuais por escola. Devia ser cada professor a sugerir o livro com que queria trabalhar. E Manoel Lopes, escultor, que desde 1975 trabalha para a ASA, com o manual de Educação Visual para o terceiro ciclo, lembra os que defendem que deviam ser os próprios alunos a fazer o manual. Os seus 73 anos e largos anos de experiência (foi professor na Aurélio de Sousa, no Porto) permitem-lhe dizer que "isso é muito bonito mas não funciona em turmas de 30 alunos". A inovação, condição necessária para se vingar num mercado lotado, é um pau de dois bicos. Um risco, principalmente quando a decisão está na mão dos professores. Estes gostam pouco de mudar. Matias Alves, da ASA, diz que "o novo manual tem que ter algo de singular mas não se pode ser muito inovador, porque senão as pessoas já não o escolhem". Às vezes resulta. Como com Clara Bustorff. "Todos os meus livros têm canções, foi assim que eles se impuseram no mercado (e venceram mesmo os concorrentes estrangeiros), na altura foi uma inovação". É ela quem escreve as letras, a música é feita por um antigo aluno, elemento do grupo Tecto Vocal e são cantadas por Rita Guerra, Beto e Henrique Feist. A Adriano Vasco Rodrigues, que está na idade em que se permite fazer aquilo de que gosta, 70 anos, inovar foi crucial. Autor da História Geral da Civilização (1961, Porto Editora) diz ter sido ele, pela primeira vez, quem associou a ideia de documento à imagem. O seu livro teve oito edições. Depois perdeu tempo para escrever manuais: "Estive deputado (depois do 25 de Abril), fui para a direcção geral do ensino particular, chefiei a escola europeia da União Europeia, hoje pertenço ao Grupo de Trabalho de Acreditação da Carreira Docente." Às vezes não resulta. "Os projectos muito vanguardistas não vingam, os professores são lentos a mudar" frisa Vasco Teixeira. Às vezes demora a resultar. Como com Maria do Céu Rodrigues e Maria Manuela Oliveira. Convidadas pela editora para apresentar um projecto em pouco tempo (de Novembro a Março), lançaram este ano um manual diferente (muito interessante), preparado para a gestão flexível do currículo. Maria do Céu, professora na escola secundária Poeta Joaquim Serra, na Belavista, Montijo, dá aulas de português desde 1979 e não está muito preocupada com as poucas adopções que o livro teve. "Com o alargamento da gestão flexível, as pessoas vão precisar dele". As duas professoras são conhecidas pelas coisas novas que estão sempre a promover. Orientadoras de estágio, formadoras, têm muitos projectos, fazem ateliers de escrita na escola e sempre disseram que qualquer dia fariam um livro. Agora começaram para não parar. Já estão a preparar um para o 10º ano e em 2001 farão outro para o 5º ano. É que escrever um manual escolar pode significar um trabalho permanente. Cada adopção vale por três ou quatro anos (imposição legal) e na altura das novas escolhas as editoras aproveitam para lançar novos manuais ou para os actualizar. Uns dizem que é só uma forma de as editoras venderem mais, evitando assim os empréstimos entre estudantes ou as feiras dos livros (alunos vendem exemplares usados na escola). Jorge Lemos acredita na necessidade de reformulação: os dados estatísticos ficam rapidamente desactualizados e os chefes do mundo também vão mudando, por exemplo. Vasco Teixeira recorda que o sistema educativo é muito dinâmico e que são necessárias adaptações. Quando passou do Jet-Line para o Super-Jet-Line, Clara Bustorff renovou 60 por cento do manual em textos e exercícios. Um dos recursos que usa são os artistas da berra - no seu escritório há dois armários repletos de todas as revistas nacionais e estrangeiras que fazem as delícias dos miúdos dos 11 aos 16 anos. Lá está a Britney Spears, a Spice Girl Victoria Adams, a Christina Aguillera. E as estrelas também passam de moda. Há que acompanhar as ondas. Os livros envelhecem rapidamente. "Este é um trabalho absolutamente apaixonante. E muito criativo. Completamente". Licenciada em Filologia Germânica, tem dado aulas do 5º ao 9º ano na Escola do Ensino Básico dos 2º e 3º ciclos Eugénio dos Santos. Orientadora de estágio e formadora de professores, deixou crescer em si o gosto "de escrever textos" que vinha desde miúda. No Liceu Filipa de Lencastre, a turma de meninas de dez e onze anos tinha um hábito invulgar: escreviam romances em fascículos que traziam todos os dias e disputavam a leitura (não havia fotocópias) à hora do recreio. "A Alice Vieira, minha colega, escrevia tal como outras raparigas, eu também escrevia, mas era muito tímida e não tinha a produção da Alice". Hoje, Clara Bustorff escreve em inglês e tem uma verdadeira estrutura montada em casa para produzir manuais. Sente-se criadora. "Todos os textos são fabricados por mim. Crio personagens com certas características, com unidade, inseridas num conteúdo programático, para atingir determinado objectivo e perante isso construo um texto, normalmente com uma linha humorística. Procura que os seus heróis sejam o mais possível semelhantes às idades para as quais escreve (um pouquinho mais velhas, eles gostam deles um nadinha mais crescidos, porque eles, no fundo, pretendem ser mais velhos)". Para além do seu acervo de revistas e das consultas à Internet, fala com muitos miúdos e com as colegas espalhadas pelo país que lhes contam dos seus heróis do momento, na música, no desporto. "É fundamental que nos livros estejam temas que lhes interessem porque de outra maneira, com a escola paralela que temos, não há aluno que queira o manual. Mas também se abrem outras vias, outros heróis e criam-se valores no sentido de mudar atitudes". Um dos heróis do Super Jet Line 2 é uma criança paraplégica e no manual do 9º ano há textos sobre a sida, sobre o Magic Johnson, jogador de basquetebol e seropositivo. Mas também aparecem Van Gogh, Pessoa, Madre Teresa, Einstein, Figo, Fernanda Ribeiro. "Desde que trate os conteúdos programáticos, posso usar o tema que quiser e fazer o texto que quiser, imaginação não me falta. Procuro transmitir muitos valores, dentro dos objectivos da escolaridade básica". Não se trata de reunir textos e fazer exercícios. Como diz Maria do Céu, um "conjunto de folhas não é um livro". E vai longe o tempo em que os autores se limitavam a fazer pouco mais do que antologias literárias ou a reproduzir extractos de outros livros. Rui Vieira Castro, que coordena uma investigação do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho sobre manuais escolares, frisa que os autores são hoje "mais do que uma espécie de compiladores. Nos últimos 20 anos houve mutações muito significativas de conteúdo, os manuais são muito mais complexos. Têm textos, criados ou reproduzidos, mas têm também orientações, avaliação, grelhas de leitura, informações que correspondem aos conteúdos programáticos". São muito atractivos, têm jogos, endereços de Internet, notícias. Ainda assim, ou talvez por isso, há limites à criatividade. "Temos muitas limitações: o espaço, o programa, que nos condiciona completamente, e a necessidade de ir inovando", avisa Arlindo Caldeira que, no entanto, considera este "um trabalho criativo e de responsabilidade". A "bíblia do autor é o programa da disciplina", estabelece Manuel Ferrão. É pela interpretação do programa que começa o seu trabalho. E esse é o primeiro constrangimento, depois de já ter aceite fazer vários "adornos" ao manual. Como sublinha Rui Vieira: "Há um discurso à volta dos manuais escolares que releva da sua dimensão pedagógica que esconde uma dimensão fundamental que é o facto de serem objectos de consumo". O investigador acentua que os autores hoje "fazem uma espécie de concretização do programa escolar, a maioria dos manuais são a própria disciplina, com conteúdos, metodologias e avaliação. Este tipo de objectos e de práticas acaba por se traduzir numa razoável desqualificação dos próprios professores". O que significa "uma redução preocupante dos espaços de acção profissional, o desenvolvimento do curriculum é qualquer coisa gerado fora da escola, nas editoras". As exigências de quem publica são outro limite. "Isto não é um romance", garante Manuel Ferrão. "Nunca um trabalho de editor é tão apurado como no manual escolar. Trabalha desde o início com o autor". As editoras não só propõem outros produtos, como algumas têm orientações fortes do que deve ser determinado manual (a Asa, por exemplo, tem um ideário pedagógico formatado que entrega aos autores). Os projectos são discutidos com equipas das próprias editoras, algumas têm consultores científicos e pedagógicos que analisam o trabalho dos autores, para lá dos revisores literários. Houve um dia em que tinha excesso de bagagem num voo que a trazia de Nova York. "O que é que leva aí?" perguntam-lhe no aeroporto. "Material autêntico", responde com a naturalidade da verdade. Ou seja cartazes, menus, impressos de bancos, de farmácias, tudo o que recolhe nas suas viagens a países anglo-saxónicos. Todos os anos vai, a pretexto de férias, de carro, ao Reino Unido e à Irlanda. E fotografa, fotografa, fotografa. Tudo. Até meninos em escolas que depois são personagens dos livros. Em sua casa há estantes do chão ao tecto só com dossiers organizados por sítios e assuntos. É o seu banco de imagens, elemento crucial nos manuais actuais. Clara Bustorff não deixa nada em mãos alheias. Vive intensamente a feitura dos seus "projectos". Desde a paginação ao visionamento de vídeos. "Vou escrever manuais sempre. Não me imagino sem trabalhar. Mas fico completamente exausta". O trabalho é duro, reconhecem os editores. Um manual leva 18 meses a ser elaborado, em geral os autores de um só livro gastam seis a nove meses na sua concepção. A sua feitura é cada vez mais repartida. São raros os manuais novos de um só autor. Na Plátano, por exemplo, preferem-se as "equipas mistas", adianta Pedro Mineiro, director do departamento de marketing. É que "há mil e uma maneiras de explicar que 2+2 são quatro", acrescenta Vasco Teixeira para quem "o manual escolar é tão melhor quanto eficaz for e essa eficácia não está numa só cabeça". Este livro é muito uma obra colectiva, insiste Maria do Céu. Só que multiplicar autores significa aumentar horas de produção. Arlindo Caldeira, adepto das equipas, salienta que tudo resulta "de um intensíssimo trabalho de grupo, cada parágrafo é sujeito a uma discussão demoradíssima, fazemos emendas terríveis uns aos outros, há que adequar a linguagem às diferentes idades, trabalhar por consenso é complicado". Dá graças ao computador: "Na época das máquinas de escrever andava sempre de tesourinha na mão. Aproveitava os pedaços de texto aprovados e colava, fazia assim as emendas. Era heróico!" A tarefa é rentável, "mas dá muito trabalho e gasta-se um bocadinho a tirar fotografias", admite Manoel Lopes, que terá vendido uns 50 mil exemplares ao longo dos anos. Nada que se compare com os líderes de mercado das disciplinas obrigatórias, como o português, que chegam a vender 40 a 50 mil por ano. Desde que o manual tenha sucesso (basta que seja adoptado numas 15 escolas para se tornar num best-seller) ganha-se muito dinheiro. Também é um investimento (da editora) avultado e há quem não sobreviva: um manual pode custar mais de sete mil contos e não ter retorno. Jorge Lemos, cujos manuais venderam seis e oito mil por ano, não quer enriquecer com esta actividade. Até porque os 10 por cento sobre o preço de capa (nenhum manual custa menos do que 2.000$00) a que os autores têm direito são a repartir por vários, como acontece com Mário Lima: "Somos cinco e tudo é dividido. Não creio que seja financeiramente vantajoso". Para Arlindo Caldeira (as vendas anuais têm oscilado entre os 30 e os 45 mil exemplares), professor do ensino recorrente na Luis de Camões, Lisboa, considera que é compensatório. "Fico satisfeito quando os filhos dos meus amigos me dizem que estudaram pelo meu livro. Pelo menos contribui com alguma coisa para fazer aquelas cabeças". Só que os autores não têm o reconhecimento da sociedade e dos colegas que mereciam, lamenta Jorge Lemos: "Não me incomoda o anonimato, não busco riqueza nem prestígio, mas este trabalho não é suficientemente valorizado". Todos dizem ter prazer no que fazem, gozo mesmo. Alguns preferem não aparecer. Por pudor? Porque há colegas que os invejam, porque são professores do ensino universitário e não querem que se saiba que participam em livros do ensino não superior. Vasco Teixeira diz admirar os autores de manuais escolares. "Geralmente são muito maltratados, mas é muito, muito difícil escrever um livro destes, muito mais do que escrever um romance, uma peça jornalística, um ensaio, onde o escritor, como Saramago, por exemplo, até pode dar erros de pontuação que tem a desculpa de ser uma opção própria. Um autor nunca o poderia fazer, se tiver uma vírgula fora do sítio já tem um coro de protestos! Se tiver uma frase longa, o manual já não está adequado ao nível etário! São vigiados por milhares de olhos (docentes, pais, alunos) em busca do negativo". Tornar fácil o complicado nunca foi tarefa simples. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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