EXPRESSO: Artigo

15-12-2001
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O corpo do último herói português da Índia

INFOGRAFIA DE ANA SERRA E JAIME FIGUEIREDO

O tenente Oliveira e Carmo foi o último herói português na Índia. Comandante da lancha «Vega», morreu em Diu, no dia 18 de Dezembro de 1961. Diz o relatório elaborado pelos sobreviventes que «foi atingido mortalmente no peito» por disparos de um avião; antes, já uma rajada lhe havia cortado «as pernas totalmente pelas coxas». O segundo-tenente, de 25 anos, correu para a morte. Começou por se fardar «de branco», explicando aos marinheiros «que assim morreria com mais honra». Exortou-os a lutar até ao fim: «Fazemos parte da defesa de Diu e da Pátria e vamos cumprir até ao último homem e última bala se possível.» Já ferido, despediu-se da mulher e do filho, beijando as fotografias que trazia no bolso.

A pequena lancha de fiscalização, de 17 metros de comprido e uma única metralhadora de 20 mm, largara da doca de Diu, passou a barra e fez-se ao mar alto, em direcção ao «Delhi», um cruzador indiano de 9740 toneladas. Durante a sangrenta batalha, não foi a artilharia do navio inimigo que derrotou a «Vega», mas a metralha cruzada de dois ou três aviões.

A título póstumo, Jorge Manuel Oliveira e Carmo foi promovido a capitão-tenente e recebeu a Torre e Espada - a mais alta condecoração portuguesa para feitos em combate.

Oliveira e Carmo. O comandante da lancha «Vega» foi condecorado com a Torre e Espada. A família nunca soube do corpo

Nas diversas refregas que se travaram em Diu, verificaram-se três mortos entre os portugueses - todos da tripulação da «Vega». Para além do comandante, tombaram os marinheiros António Ferreira e Aníbal Jardim. O relatório refere que os corpos do tenente Carmo e do marinheiro Ferreira foram arrastados pela lancha, quando esta se afundou ao largo do Mar de Omã.

A viúva e os dois filhos (um dos quais nascido após a morte do pai) nunca conseguiram recuperar o corpo do tenente. E, em Diu, as dúvidas suplantam as certezas. Segunda figura do governo de Diu, Mulchand Jamnadas, de 59 anos, é quem está melhor colocado para dar uma informação. «Infelizmente não sei nada», responde desolado, em português corrente, ao subir para o jipe. «Quem o pode ajudar é o senhor Manicolau», aconselha. Com 76 anos, Manicolau Vias é o tradutor oficial do governo de inglês para português (e vice-versa). O então professor primário seguiu a batalha «do terraço de casa», mas apenas confirma que a lancha se afundou num ápice.

Os dois padres que, em 1961, estavam em Diu, já cá não estão para ajudar. Um deles faleceu; o outro, como era oriundo de Portugal, foi preso e recambiado. Resta o patriarca da diminuta comunidade cristã, Júlio Almeida. «Sempre ouvi dizer que o corpo apareceu numa das praias a Oeste, creio que na de S. Sebastião», hoje chamada Jalandhar Beach. Almeida, contudo, não está absolutamente seguro. Certezas só tem uma: «Para o cemitério, o corpo não foi. Parece que foi enterrado na própria praia.» Paciente, responde a todas as perguntas. Como é que sabe que era o cadáver do tenente? «Era o que se dizia.» E o outro corpo? «Parece que desapareceu.» Só fica contrariado quando lhe pedimos nomes de outras pessoas que possam ajudar à pesquisa. «Eu sou o homem mais velho aqui em Diu entre os cristãos e trabalhei muitos anos na Marinha. Se eu não sei, ninguém mais sabe!»

Do lado indiano, registaram-se oito mortos, mas só sete têm o nome inscrito no memorial em frente do antigo palácio do governador. A lenda tomou conta da História e avança números assustadores. Em Fevereiro de 1962, um semanário reportou 200 mortos. «No Passo Covo, repelimos dois ataques», lembra Carlos Azeredo, baseado em relatos ouvidos na prisão. «Falava-se de uma data de corpos a boiar nas águas. Contavam-se mais de 600...» Na sua casa, na cidade velha, Manicolau Vias fica-se por «umas dezenas». Muito mais longe na imaginação vai Abdul Karim, um dignitário muçulmano, de 67 anos. «Morreram três a quatro mil», assegura este comerciante, que viveu largos anos em Moçambique. «Mas, em 1961, eu estava cá», apressa-se a esclarecer, «tinha vindo casar e assisti a tudo».

Em termos relativos, foi em Damão que se verificaram mais baixas. Na contabilidade portuguesa, houve sete mortos, entre os quais o tenente Alberto Santiago de Carvalho (que recebeu a segunda e última Torre e Espada conferida pelo Governo). O governador, major António Costa Pinto, foi ferido numa perna. Os indianos, por sua vez, registaram 4 mortos e 14 feridos.

Também aqui a vox populi não acredita nesta estatística. «Do lado de lá, morreram muitos mais», assegura Taumaturgo Castelino, o então secretário do governador. Argentina Remédios, que foi mãe na na véspera da batalha, ouviu falar «em mais de mil». A sua fantástica descrição inclui corpos «metidos em camiões para Gujarate e queimados, à maneira hindu». Vítimas de um imaginário «canhão português, montado na estrada para Vapi». Vítor Fernandes, líder da Associação Luso Indiana Damanesa, faz-se eco de idêntica versão. Fala de «várias vagas» de soldados: uma de sikhs, outra de gurkas, uma última de marathas. Os cadáveres teriam sido levados de camião - e Vítor Fernandes, que à época estudava em Goa, fala mesmo de uma viatura repleta só com os capacetes das vítimas...

No meio de versões tão díspares, é indiscutível que em Diu e Damão - praças muito mais pequenas que Goa - a resistência foi bem maior. Como é reconhecido, vezes sem conta, pelos autores do relatório da «Operação Vijay».

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O corpo do último herói português da Índia

INFOGRAFIA DE ANA SERRA E JAIME FIGUEIREDO

O tenente Oliveira e Carmo foi o último herói português na Índia. Comandante da lancha «Vega», morreu em Diu, no dia 18 de Dezembro de 1961. Diz o relatório elaborado pelos sobreviventes que «foi atingido mortalmente no peito» por disparos de um avião; antes, já uma rajada lhe havia cortado «as pernas totalmente pelas coxas». O segundo-tenente, de 25 anos, correu para a morte. Começou por se fardar «de branco», explicando aos marinheiros «que assim morreria com mais honra». Exortou-os a lutar até ao fim: «Fazemos parte da defesa de Diu e da Pátria e vamos cumprir até ao último homem e última bala se possível.» Já ferido, despediu-se da mulher e do filho, beijando as fotografias que trazia no bolso.

A pequena lancha de fiscalização, de 17 metros de comprido e uma única metralhadora de 20 mm, largara da doca de Diu, passou a barra e fez-se ao mar alto, em direcção ao «Delhi», um cruzador indiano de 9740 toneladas. Durante a sangrenta batalha, não foi a artilharia do navio inimigo que derrotou a «Vega», mas a metralha cruzada de dois ou três aviões.

A título póstumo, Jorge Manuel Oliveira e Carmo foi promovido a capitão-tenente e recebeu a Torre e Espada - a mais alta condecoração portuguesa para feitos em combate.

Oliveira e Carmo. O comandante da lancha «Vega» foi condecorado com a Torre e Espada. A família nunca soube do corpo

Nas diversas refregas que se travaram em Diu, verificaram-se três mortos entre os portugueses - todos da tripulação da «Vega». Para além do comandante, tombaram os marinheiros António Ferreira e Aníbal Jardim. O relatório refere que os corpos do tenente Carmo e do marinheiro Ferreira foram arrastados pela lancha, quando esta se afundou ao largo do Mar de Omã.

A viúva e os dois filhos (um dos quais nascido após a morte do pai) nunca conseguiram recuperar o corpo do tenente. E, em Diu, as dúvidas suplantam as certezas. Segunda figura do governo de Diu, Mulchand Jamnadas, de 59 anos, é quem está melhor colocado para dar uma informação. «Infelizmente não sei nada», responde desolado, em português corrente, ao subir para o jipe. «Quem o pode ajudar é o senhor Manicolau», aconselha. Com 76 anos, Manicolau Vias é o tradutor oficial do governo de inglês para português (e vice-versa). O então professor primário seguiu a batalha «do terraço de casa», mas apenas confirma que a lancha se afundou num ápice.

Os dois padres que, em 1961, estavam em Diu, já cá não estão para ajudar. Um deles faleceu; o outro, como era oriundo de Portugal, foi preso e recambiado. Resta o patriarca da diminuta comunidade cristã, Júlio Almeida. «Sempre ouvi dizer que o corpo apareceu numa das praias a Oeste, creio que na de S. Sebastião», hoje chamada Jalandhar Beach. Almeida, contudo, não está absolutamente seguro. Certezas só tem uma: «Para o cemitério, o corpo não foi. Parece que foi enterrado na própria praia.» Paciente, responde a todas as perguntas. Como é que sabe que era o cadáver do tenente? «Era o que se dizia.» E o outro corpo? «Parece que desapareceu.» Só fica contrariado quando lhe pedimos nomes de outras pessoas que possam ajudar à pesquisa. «Eu sou o homem mais velho aqui em Diu entre os cristãos e trabalhei muitos anos na Marinha. Se eu não sei, ninguém mais sabe!»

Do lado indiano, registaram-se oito mortos, mas só sete têm o nome inscrito no memorial em frente do antigo palácio do governador. A lenda tomou conta da História e avança números assustadores. Em Fevereiro de 1962, um semanário reportou 200 mortos. «No Passo Covo, repelimos dois ataques», lembra Carlos Azeredo, baseado em relatos ouvidos na prisão. «Falava-se de uma data de corpos a boiar nas águas. Contavam-se mais de 600...» Na sua casa, na cidade velha, Manicolau Vias fica-se por «umas dezenas». Muito mais longe na imaginação vai Abdul Karim, um dignitário muçulmano, de 67 anos. «Morreram três a quatro mil», assegura este comerciante, que viveu largos anos em Moçambique. «Mas, em 1961, eu estava cá», apressa-se a esclarecer, «tinha vindo casar e assisti a tudo».

Em termos relativos, foi em Damão que se verificaram mais baixas. Na contabilidade portuguesa, houve sete mortos, entre os quais o tenente Alberto Santiago de Carvalho (que recebeu a segunda e última Torre e Espada conferida pelo Governo). O governador, major António Costa Pinto, foi ferido numa perna. Os indianos, por sua vez, registaram 4 mortos e 14 feridos.

Também aqui a vox populi não acredita nesta estatística. «Do lado de lá, morreram muitos mais», assegura Taumaturgo Castelino, o então secretário do governador. Argentina Remédios, que foi mãe na na véspera da batalha, ouviu falar «em mais de mil». A sua fantástica descrição inclui corpos «metidos em camiões para Gujarate e queimados, à maneira hindu». Vítimas de um imaginário «canhão português, montado na estrada para Vapi». Vítor Fernandes, líder da Associação Luso Indiana Damanesa, faz-se eco de idêntica versão. Fala de «várias vagas» de soldados: uma de sikhs, outra de gurkas, uma última de marathas. Os cadáveres teriam sido levados de camião - e Vítor Fernandes, que à época estudava em Goa, fala mesmo de uma viatura repleta só com os capacetes das vítimas...

No meio de versões tão díspares, é indiscutível que em Diu e Damão - praças muito mais pequenas que Goa - a resistência foi bem maior. Como é reconhecido, vezes sem conta, pelos autores do relatório da «Operação Vijay».

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