"A minha depressão é Portugal"

23-02-2001
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"A Minha Depressão É Portugal"

Por ALEXANDRA LUCAS COELHO

Sexta-feira, 23 de Fevereiro de 2001 Integrando o elenco de "A Morte de Empédocles", a grande tragédia de Hölderlin, pela primeira vez encenada em Portugal, João Grosso estreia-se a trabalhar com Luís Miguel Cintra, no Teatro da Cornucópia. Em Novembro passado, João Grosso estava em casa. "O Verão tinha sido uma tristeza, para a frente era o vazio. E um actor morre a cada minuto quando fica parado". Foi assim uma espécie de mão a puxá-lo do escuro, o convite de Luís Miguel Cintra para integrar o elenco da primeira encenação em Portugal da grande tragédia de Hölderlin, "A Morte de Empédocles", que o Teatro da Cornucópia estreia na próxima quinta-feira, dia 1. "Nunca tínhamos trabalhado juntos. Foi uma honra e um desafio poder colaborar com um encenador como o Luís Miguel Cintra, com uma companhia de referência, como esta. E eticamente, foi muito louvável, depois de tudo o que aconteceu." O que aconteceu, recorda João Grosso, foi "ter sido enxovalhado" pelo ministro da Cultura, José Sasportes, na rocambolesca história da direcção do Teatro Nacional D. Maria II: em Junho passado, o ainda ministro Manuel Maria Carrilho, em plena visita ao teatro, anuncia João Grosso como o sucessor de Carlos Avilez; o actor esboça um plano de reestruturação e constitui uma equipa; em Julho, o já ministro Sasportes anula tudo com um telefonema. "O que me deprimiu não foi o facto de não ter sido indigitado, mas a forma como tudo se passou. O que posso dizer é que não fui tratado com respeito pelo actual ministro." Para quem pense que, enxovalho à parte, João Grosso se safou de boa - um edifício meses a fio inerte, uma companhia gigante, traumatizada, para não falar do pesadelo burocrático -, sublinhe-se que o actor (dos quadros do D. Maria desde 1998) mantém convicções apaixonadas quanto ao que poderia ser esse desafio. "Eu acredito que é possível criar uma dinâmica diferente, de montagem de espectáculos, com alguns acolhimentos também, convidando encenadores mais arrojados, mais modernos. As questões burocráticas não me preocupavam nada, tinha uma equipa formada que as resolveria muito bem. O único ponto com que me debati, tendo em conta que enquanto criador sempre interferi criticamente no tecido político, foi o da colagem ao poder vigente que um cargo como este pode implicar. De resto, o meu projecto era baseado num grande respeito pelas pessoas, há diversos trabalhos que se podem fazer, com um actor só, com vários. Os problemas do D. Maria não se resolvem acabando com a companhia residente." Desde que o ministro da Cultura anunciou ser esse o seu plano, os actores do D. Maria têm vindo a receber propostas para se irem embora, com uma indemnização. João Grosso recusou: "Não saio. Sempre quis integrar o Teatro Nacional. Na minha ingenuidade, pensava que aí teria oportunidade de fazer os grandes textos, os clássicos. Consegui isso, mas no S. João do Porto, com peças de Pirandello ["Os Gigantes da Montanha"] e Gil Vicente ["As Barcas"], que me deram imenso trabalho e imensíssimo prazer. Quando o Luís Miguel Cintra me convidou para este Empédocles avisou-me que era um texto muito difícil, e eu pensei: óptimo, é disso que gosto." Ele é "nós", sem nome. Trabalhada a dramaturgia, a tragédia de Hölderlin revelou-se para João Grosso "um texto claríssimo, belíssimo, sobre a morte como libertação, sobre a verticalidade do pensamento e do comportamento ligado a esse pensamento". Ele vive as personagens sem nome da peça. Primeiro, é a voz dos cidadãos da cidade siciliana de Agrigento que contribuem para a expulsão de Empédocles, o herói anti-herói que cometeu a suprema ousadia de se proclamar deus; numa segunda aparição, representa os três escravos dedicados de Empédocles, nunca verdadeiramente submetidos à escravidão; numa terceira, breve, passagem, surge com um camponês desconfiado que recusa abrigo a um Empédocles já refugiado no Monte Etna; finalmente, de novo em nome dos cidadãos de Agrigento, arrependidos, procura o exilado para lhe pedir que regresse como Rei. Assim será até 1 de Abril. Depois, volta a ser o vazio: "Penso: acaba ''A Morte de Empédocles'' e eu vou fazer o quê? Tenho sempre imensas propostas para recitais de poesia, no Norte, em Coimbra. Andei por Vila Real, Bragança, Lamego, Macedo de Cavaleiros, em igrejas, escolas, teatros, a dizer Torga, Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, Nobre, Sophia, Pascoaes... e gosto muito, digo muitas vezes que é a poesia que me salva. Mas não quero ser obrigado a substituir a minha intervenção no teatro pelos recitais. Quero mesmo ocupar o meu tempo a fazer teatro. Vou ficar à espera do que acontecer no D. Maria." Sonha vir a ser o "Pedro, o Cru", de António Patrício - uma das suas mais antigas e permanentes paixões -, o Petrucchio de "A Fera Amansada", de Shakespeare, ou o "Édipo", de Sófocles. "Tenho 42 anos, mas ainda espero atirar-me a coisas suculentas. É absolutamente deprimente e suicidário olharmos para o futuro e não vermos nada. O que me faz impressão é os nossos governantes olharem para nós como uns tadinhos. Um actor é um bem cultural. Uma senhora como a Eunice Muñoz [actriz residente do D. Maria] é um bem cultural. Como é possível que ela me diga, como outro dia disse: ''O que vou fazer? Não tenho perspectivas nenhumas''? Em relação ao teatro, todo o comportamento deste ministério, em relação ao D. Maria, aos subsídios, é um afastamento desarrazoado da realidade cultural portuguesa. Não quero ser grosseiro, mas isto parece um jogo de mafiosos. Num Estado de direito, as coisas deviam ser claras." Vem de longe esta inquietude - estrondosamente materializada, já lá vão 14 anos, na célebre interpretação do hino nacional em versão rock - que o leva a dizer, como Alexandre O''Neill diria: "A minha séria depressão é Portugal". Mas para quem como ele teima em não partir - depois de dezenas de interpretações (que o confirmaram como um dos mais enérgicos e apaixonados actores portugueses) e de meia dúzia de encenações (de Almada Negreiros a Jean Genet) -, dizer isto é só uma forma inconformada de se manter fiel. A MORTE DE EMPÉDOCLES

de Friedrich Hölderlin

pelo Teatro da Cornucópia

Encenação de Luis Miguel Cintra; cenário e figurinos de Cristina Reis; luzes de Daniel Worm d''Assumpção; com João Grosso, José Manuel Mendes, Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Ricardo Aibéo, Rita Loureiro e Sofia Marques.

LISBOA Teatro do Bairro Alto, R. Tenente Raúl Cascais, 1-A-1250-268.

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O que aconteceu, recorda João Grosso, foi "ter sido enxovalhado" pelo ministro da Cultura, José Sasportes, na rocambolesca história da direcção do Teatro Nacional D. Maria II: em Junho passado, o ainda ministro Manuel Maria Carrilho, em plena visita ao teatro, anuncia João Grosso como o sucessor de Carlos Avilez; o actor esboça um plano de reestruturação e constitui uma equipa; em Julho, o já ministro Sasportes anula tudo com um telefonema. "O que me deprimiu não foi o facto de não ter sido indigitado, mas a forma como tudo se passou. O que posso dizer é que não fui tratado com respeito pelo actual ministro." Para quem pense que, enxovalho à parte, João Grosso se safou de boa - um edifício meses a fio inerte, uma companhia gigante, traumatizada, para não falar do pesadelo burocrático -, sublinhe-se que o actor (dos quadros do D. Maria desde 1998) mantém convicções apaixonadas quanto ao que poderia ser esse desafio. "Eu acredito que é possível criar uma dinâmica diferente, de montagem de espectáculos, com alguns acolhimentos também, convidando encenadores mais arrojados, mais modernos. As questões burocráticas não me preocupavam nada, tinha uma equipa formada que as resolveria muito bem. O único ponto com que me debati, tendo em conta que enquanto criador sempre interferi criticamente no tecido político, foi o da colagem ao poder vigente que um cargo como este pode implicar. De resto, o meu projecto era baseado num grande respeito pelas pessoas, há diversos trabalhos que se podem fazer, com um actor só, com vários. Os problemas do D. Maria não se resolvem acabando com a companhia residente." Desde que o ministro da Cultura anunciou ser esse o seu plano, os actores do D. Maria têm vindo a receber propostas para se irem embora, com uma indemnização. João Grosso recusou: "Não saio. Sempre quis integrar o Teatro Nacional. Na minha ingenuidade, pensava que aí teria oportunidade de fazer os grandes textos, os clássicos. Consegui isso, mas no S. João do Porto, com peças de Pirandello ["Os Gigantes da Montanha"] e Gil Vicente ["As Barcas"], que me deram imenso trabalho e imensíssimo prazer. Quando o Luís Miguel Cintra me convidou para este Empédocles avisou-me que era um texto muito difícil, e eu pensei: óptimo, é disso que gosto." Ele é "nós", sem nome. Trabalhada a dramaturgia, a tragédia de Hölderlin revelou-se para João Grosso "um texto claríssimo, belíssimo, sobre a morte como libertação, sobre a verticalidade do pensamento e do comportamento ligado a esse pensamento". Ele vive as personagens sem nome da peça. Primeiro, é a voz dos cidadãos da cidade siciliana de Agrigento que contribuem para a expulsão de Empédocles, o herói anti-herói que cometeu a suprema ousadia de se proclamar deus; numa segunda aparição, representa os três escravos dedicados de Empédocles, nunca verdadeiramente submetidos à escravidão; numa terceira, breve, passagem, surge com um camponês desconfiado que recusa abrigo a um Empédocles já refugiado no Monte Etna; finalmente, de novo em nome dos cidadãos de Agrigento, arrependidos, procura o exilado para lhe pedir que regresse como Rei. Assim será até 1 de Abril. Depois, volta a ser o vazio: "Penso: acaba ''A Morte de Empédocles'' e eu vou fazer o quê? Tenho sempre imensas propostas para recitais de poesia, no Norte, em Coimbra. Andei por Vila Real, Bragança, Lamego, Macedo de Cavaleiros, em igrejas, escolas, teatros, a dizer Torga, Pessoa, Sá-Carneiro, Almada, Nobre, Sophia, Pascoaes... e gosto muito, digo muitas vezes que é a poesia que me salva. Mas não quero ser obrigado a substituir a minha intervenção no teatro pelos recitais. Quero mesmo ocupar o meu tempo a fazer teatro. Vou ficar à espera do que acontecer no D. Maria." Sonha vir a ser o "Pedro, o Cru", de António Patrício - uma das suas mais antigas e permanentes paixões -, o Petrucchio de "A Fera Amansada", de Shakespeare, ou o "Édipo", de Sófocles. "Tenho 42 anos, mas ainda espero atirar-me a coisas suculentas. É absolutamente deprimente e suicidário olharmos para o futuro e não vermos nada. O que me faz impressão é os nossos governantes olharem para nós como uns tadinhos. Um actor é um bem cultural. Uma senhora como a Eunice Muñoz [actriz residente do D. Maria] é um bem cultural. Como é possível que ela me diga, como outro dia disse: ''O que vou fazer? Não tenho perspectivas nenhumas''? Em relação ao teatro, todo o comportamento deste ministério, em relação ao D. Maria, aos subsídios, é um afastamento desarrazoado da realidade cultural portuguesa. Não quero ser grosseiro, mas isto parece um jogo de mafiosos. Num Estado de direito, as coisas deviam ser claras." Vem de longe esta inquietude - estrondosamente materializada, já lá vão 14 anos, na célebre interpretação do hino nacional em versão rock - que o leva a dizer, como Alexandre O''Neill diria: "A minha séria depressão é Portugal". Mas para quem como ele teima em não partir - depois de dezenas de interpretações (que o confirmaram como um dos mais enérgicos e apaixonados actores portugueses) e de meia dúzia de encenações (de Almada Negreiros a Jean Genet) -, dizer isto é só uma forma inconformada de se manter fiel. A MORTE DE EMPÉDOCLES

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Encenação de Luis Miguel Cintra; cenário e figurinos de Cristina Reis; luzes de Daniel Worm d''Assumpção; com João Grosso, José Manuel Mendes, Luis Lima Barreto, Luis Miguel Cintra, Ricardo Aibéo, Rita Loureiro e Sofia Marques.

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