O problema do Governo e do PS está no líder

12-07-2001
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Manuel Maria Carrilho em entrevista

O Problema do Governo e do PS Está no Líder

Segunda, 9 de Julho de 2001 Ana Sá Lopes, Isabel Braga e São José Almeida (texto) e Luis Ramos (fotos) É um ataque sem piedade aquele que Manuel Maria Carrilho desfere contra António Guterres. Para ele, o primeiro-ministro não tem perfil nem para chefiar o Governo nem para liderar o PS. Retrata-o como um homem sem visão, nem convicções, sem competência e sem coragem, que não suporta que não gostem dele e, por isso, apela sempre à compaixão. Já que é preciso substituir Guterres, Carrilho defende que o PS organize um congresso extraordinário a seguir às eleições autárquicas. Numa entrevista realizada exactamente um ano depois de ter batido com a porta do Ministério da Cultura, Manuel Maria Carrilho, actualmente deputado, faz o balanço da sua experiência de quase cinco anos no Governo e de um ano como deputado do PS na Assembleia da República. PÚBLICA - Em que estado se encontra actualmente o PS? MANUEL MARIA CARRILHO - O partido está na maior das perplexidades, uma vez que se encontra na situação algo bizarra de ter aprovado uma moção quase por unanimidade e de ter eleito um líder com 96 ou 97 por cento há cerca de um mês e meio. Passado este curto tempo, parece que o capital está totalmente esgotado, se é que alguma vez existiu. O congresso foi um "flop" total, uma oportunidade perdida em termos de renovação do PS, quer enquanto partido, quer enquanto base do Governo. P. - Essa falência do PS é de agora? Pertenceu durante cinco anos a um Governo socialista e ninguém lhe ouviu uma censura nem a Guterres nem ao PS. Depois, desde que saiu do Governo e sobretudo depois do congresso do partido, passou a ter uma atitude muito crítica. Porquê? R. - De 1995 para cá, distinguiria muito claramente três fases. Há um período, de 1995 a 1997, em que me senti pessoalmente muito empenhado e muito entusiasmado, no seguimento de toda a mobilização que se fez nos Estados Gerais. Os Estados Gerais foram uma estratégia de grande sucesso, não só pela eficácia, mas sobretudo pelo conteúdo. Na área da cultura, em que trabalhei, fizemos um diagnóstico exaustivo de todos os problemas, ouvimos os agentes, e a partir de 1995 começou a responder-se em grande parte a todos esses problemas. De 1995 a 1997, estive, pois, muito empenhado no Governo. É entre 1998 e 1999 que começo a sentir-me muito apreensivo com a condução das coisas... P. - Com quê, exactamente? R. - No fim de 1998, começa a haver sinais, na condução da estratégia do Governo, de uma excessiva e ilusória auto-estima, com manifesta subvalorização dos problemas que era preciso enfrentar. E quando, em 1998/99, se começa a definir a mensagem para a legislatura seguinte e a fazer a avaliação que me parecia necessária no termo da primeira legislatura, pensei que era o momento de relançar, em novas metas, a mensagem da Nova Maioria. Num tal quadro, era absolutamente vital pedir uma maioria absoluta ao país. Sempre defendi isso, sobretudo porque desde o princípio, de 1995, que muitas das justificações pelas coisas que não se faziam decorriam da aritmética parlamentar. P. - Se o PS tivesse conseguido a maioria absoluta, o "flop" teria sido menor? R. - Acho que se deveria ter pedido a maioria absoluta e estou convencido de que a teríamos tido se o tivéssemos feito. Mas, quando se pede uma maioria absoluta, é preciso dizer para quê. Ora a campanha de 1999 foi feita no lastro da inércia de um estado de graça que não parou, a não ser transitoriamente, num certo momento da liderança de Marcelo Rebelo de Sousa [PSD]. Estivemos em estado de graça contínuo de 1995 a 1999, e a opção política, a meu ver errada, foi "surfar" a onda do estado de graça e continuar sem dizer nada de muito inovador e mobilizador para o país. Foi essa a estratégia traçada, decidida. Penso que exigir a maioria absoluta teria tido, entre outras, a vantagem de obrigar o PS a assumir desígnios, porque não se pede a maioria absoluta sem se dizer para quê. Mas não foi esse o caminho, fez-se uma campanha eleitoral absolutamente sonolenta, apenas se prometia mais do mesmo. E reconheça-se que os portugueses estiveram à beira de dar uma maioria absoluta ao PS, mesmo com esta estratégia. O que é que, desde essa altura, me preocupou cada vez mais? A grande erosão da liderança que, nessa altura, era já muito óbvia. Provavelmente por razões pessoais, talvez pela desilusão que António Guterres sentiu depois de não ter tido a maioria absoluta que afinal nunca pediu. Para mim, a apreensão com o segundo Governo de António Guterres data quase do princípio, quer pelo modo como se constituiu a equipa do Governo, na rua, quer pelo conteúdo, até às pessoas que entraram e saíram, tudo então me surpreendeu bastante. P. - Quem é que o surpreendeu nessa composição governamental? R. - Não quero falar de ninguém, até porque muitos já saíram... Globalmente, o segundo Governo de Guterres foi avaliado desde o princípio, e bem, como sendo pior do que o anterior, formado por pessoas menos qualificadas. Lembremos que as bandeiras da Nova Maioria eram muito simples: era o rendimento mínimo garantido contra a insensibilidade social, era a qualificação contra o betão, era o diálogo contra o autoritarismo, eram metas muito claras e perceptíveis. Ora esqueceu-se que, para se defender com credibilidade a causa da qualificação, era preciso que o próprio partido e o próprio Governo aparecessem, eles próprios, como altamente qualificados e exigentes consigo próprios. Eu penso que o segundo Governo deu, pelo contrário, uma imagem de progressiva desqualificação. P. - Sentiu dificuldade em trabalhar num quadro em que faltavam vedetas, elites? Foi por isso que não gostou de trabalhar no segundo Governo? R. - A questão não é de todo essa, o que me desiludiu justamente foi não se enfrentarem dificuldades que permaneciam e, sobretudo, não se assumirem novas ambições. Isso foi muito claro na minha área. Os problemas estavam em geral encaminhados para boas soluções, mas havia muito trabalho a fazer, por exemplo, nas frentes do património, do audiovisual ou da cultura externa. O que eu fiz foi desafiar o primeiro-ministro a assumir estas novas batalhas, mas ele disse-me que não era o tempo para isso. P. - Que explicação tem para isso? R. - No fundo, a resposta foi sempre a mesma, hoje vejo com muito mais nitidez a matriz do comportamento do primeiro-ministro. Ele é uma pessoa que não mexe nos equilíbrios herdados, estabelecidos, por exemplo, se uma área tem uma tutela estabelecida há 20 anos, nunca o primeiro-ministro mexerá nessa tutela, quando muito dirá a um ministro para ir conversar com outro ministro, o que provavelmente deixará tudo na mesma. Ora, do meu ponto de vista, o primeiro-ministro existe justamente para resolver esses problemas que nenhum ministro pode resolver sozinho. Quando eu tinha problemas com a cultura externa, com o património ou o audiovisual, o primeiro-ministro dizia, muito simplesmente, que com umas conversas as coisas se resolveriam. O primeiro-ministro não exercia o seu papel, essa é que é a verdade. Mas o que me desiludiu mais desde o início do segundo Governo de Guterres foi a ausência de metas, o que me era pedido era apenas para continuar as rotinas. P. - Portanto entrou reticente no Governo? R. - Em parte, talvez. O primeiro-ministro convidou-me logo no primeiro dia para continuar, eu aceitei, mediante condições que tinha exposto muito claramente. Uma das condições era, do ponto de vista de um ministério novo como era o da Cultura, uma progressão orçamental mínima num quadro de quatro anos, a outra era a das novas metas políticas. No quadro orçamental, houve garantias que não vieram a ser cumpridas; quanto às metas políticas, o primeiro-ministro achava que não era a altura de mexer em nada. O que era espantoso, estávamos no arranque de uma nova legislatura. Eu tive a noção, desde o princípio, de que aquele Governo não ia funcionar. Houve vários sinais. Por exemplo, o programa eleitoral foi mandado para a Assembleia, não por razões de coerência, como se disse na altura, mas porque não se conseguiu fazer o programa a partir do novo "patchwork" organizativo do Governo. Isso, que foi apresentado como uma grande prova de coerência, era já um sinal claro das dificuldades que iríamos ter, necessariamente. Também houve a questão dos ministros coordenadores, que nunca funcionaram... Entretanto, acumularam-se muitos problemas, o primeiro-ministro exibia a sua vocação europeia e, quando acaba a presidência, que correu bem, em Junho de 2000, decidi sair, depois de ter analisado à lupa - verdadeiramente à lupa, podem crer - esta desmobilização em relação às causas, ao país e ao futuro. Para mim, era muito claro que não iria haver um novo fôlego, que a letargia estava para ficar. Quando conversei com o primeiro-ministro sobre a minha vontade de sair... P. - Quando foi isso? R. - Tudo isto se passou na primeira semana de Junho de 2000. Senti então que a terceira fase a que me referi, a da decepção, não tinha retorno. As metas que tínhamos apontado para a nova legislatura tinham três vertentes, que eram a consolidação, o aprofundamento e a inovação, mas, nas condições que havia, íamos ficar pela consolidação e, desse ponto de vista, não me sentia mobilizado para continuar. Ao mesmo tempo, eu queria dar um sinal de como se pode entender o exercício da política, que quanto a mim deve ser um exercício de mobilização por determinadas causas, com desapego pelo próprio poder, mais centrado numa política de missão do que numa política "profissional". Sei que isto é controverso, mas o que me surpreendeu nessa conversa com o primeiro-ministro foram os argumentos que ele dava para a minha continuação, em que insistia muito. Eram argumentos extremamente frouxos, não havia nada que me dissesse que fosse mobilizador, era um retrato da ocupação do poder pelo poder, em certos momentos até parecia que quem queria sair era ele... P. - Está a dar uma imagem terrível do primeiro-ministro... R. - Quando me demiti, tinha já uma ideia política negativa do primeiro-ministro, mas quis mesmo reservar para mim todo o Verão para avaliar melhor, com ponderação, a situação. Pensava comigo próprio que, se calhar tinha sido muito exigente, que provavelmente até me tinha enganado nesta avaliação toda... Enfim, passei o mês de Agosto a pensar nestas hipóteses... Mas, desde Setembro, desde a "rentrée", que ficou claro que não, que tudo ia na linha das minhas suspeitas, bem pior até do que eu tinha antecipado. Guterres revelou-se cada vez mais como um homem sem visão nem determinação na condução do Governo, mas também - o que complica tudo - sem a competência e a coragem que as suas funções exigem. P. - Nunca é frontal? R. - Guterres tem uma característica que o debilita muito, que é pesada em política, é uma pessoa que não suporta que não gostem dele. É um traço quase infantil que, claramente, o impede de ser frontal. A sua obsessão com a popularidade tem uma origem psicológica, antes de ser política. É isto que, no fundo, explica o privilégio que ele dá à estratégia da vitimização, e explica também o modo como ele se esgueira pelas vias da compaixão... É tudo muito beato, lânguido demais e insuportavelmente desresponsabilizante. P. - Pode dar exemplos? R. - Houve múltiplas situações, que hoje todos vamos conhecendo, que são públicas... Veja-se o que aconteceu hoje [29 de Junho], por exemplo. Eu estava no Parlamento e nunca estive tão constrangido como quando olhava para a Manuela Arcanjo, por quem tenho a maior estima, no carro já tinha ouvido as notícias da remodelação e a confirmação de Correia de Campos como ministro da Saúde, e chego ao Parlamento e vejo que a Manuela Arcanjo está no exercício das suas funções na bancada do Governo. O que é que leva uma pessoa a sujeitar a isto alguém que com ele colaborara com dedicação e sacrifício? O quê? E o que aconteceu com a invenção e a extinção de certos ministérios, com a demissão de Fernando Gomes, são já muito os comportamentos que devem, de facto, fazer pensar. Mantendo isto, é claro, no registo exclusivamente político. P. - E em termos pessoais, como é que as coisas se passavam? R. - Pessoalmente, tive sempre as melhores relações com o primeiro-ministro, mas nunca para além daquelas que decorriam das nossas funções. P. - Mas não o conheceu no PS? R. - Conheci-o como a muitas outras pessoas na vida do PS, e só tivemos relações mais próximas a partir do momento em que ele me convidou para o Governo. P. - A quem apoiou, dentro do PS, nas várias eleições para líder? Apoiou Jaime Gama... R. - Apoiei Jaime Gama nas duas vezes em que ele foi candidato e não apoiei ninguém na disputa entre Guterres e Jorge Sampaio. P. - Quando aderiu ao PS? Participou na vida do partido? R. - Aderi em 1986 e tive sempre uma relação muito clara com o PS: sempre que a minha colaboração foi solicitada dei-a, mas nunca andei atrás do partido, nem a dar nem a pedir nada, tinha e tenho a minha vida profissional fora da política e longe do partido. P. - Mas não se lembra concretamente de como conheceu António Guterres? R. - Foi essencialmente nos Estados Gerais. É bom lembrar que ele conseguiu fazer algumas coisas notáveis neste país, que os Estados Gerais foram um dos processos mais notáveis de sempre do ponto de vista do amadurecimento de um programa político alternativo de governação. Guterres é um homem com uma excepcional capacidade de negociação, mesmo de federação, que foram, de resto, as características que fizeram dele secretário-geral do PS. É também um orador extremamente talentoso, e tudo isto fez dele uma pessoa que seduziu muita gente. Eu nunca teria ido para o Governo, pelo que não tinha nenhuma ambição especial, se não tivesse acreditado nele. Mas se digo que António Guterres foi para mim uma enorme desilusão política, também acrescento que foi a única. Trabalhei com muita gente, segui, por exemplo, Mário Soares, mas Soares nunca foi uma "ilusão" para mim, no sentido de ser alguém que me levasse a dar o salto, a comprometer-me mais a sério na política, a mudar a minha vida. Quando vim para o Governo, estava para ir ocupar uma cátedra na Universidade de Bruxelas, foram opções que tive de avaliar muito bem. O que é curioso é que hoje, dia 29 de Junho de 2001, todos dizem isso, que Guterres foi uma enorme desilusão. Há um ano era diferente, por isso achei que devia dar um sinal muito claro e assumir o que pensava. Foi isso que fiz saindo e, logo em Setembro, escrevendo uma carta aberta ao primeiro-ministro, porque as questões que eu levantava não tinham nada de pessoal, eram questões estritamente políticas, que revelam graves problemas na liderança do país. Tenho perguntado várias vezes: diz-se muito mal deste ou daquele ministro, mas quais são as orientações de Governo que o primeiro-ministro deu e que este ou aquele ministro não seguiu, não concretizou adequadamente, permitindo-nos dizer que ele é um mau ministro? Não há. O problema, em geral, não está nos ministros, está em António Guterres. Eu pertenço aos quatro por cento que não votaram nele no congresso do PS, se saí do Governo foi por pensar isto há um ano, digo-o com toda a tranquilidade. P. - Depois deste percurso contestatário desde que, em Outubro passado, começou a escrever no "Diário de Notícias", conseguiu reunir à sua volta alguns apoios, ou sente-se isolado? R. - Sabe, eu nunca me senti isolado. Quem escreve o que - e quando - eu escrevi, é óbvio que não é uma pessoa que anda "à procura" de apoios, antes pretende, precisamente, desafiar esse tipo de situações, dizendo aquilo que pensa. Julgo que há pessoas no PS que, pelo seu trajecto, ambição política - a ambição é muito importante nisto - se espera que, numa tal situação, se configurem como alternativas. P. - E não tem ambição política? R. - Mas o que é a ambição política? Para mim, a ambição política tem a ver com acreditar num conjunto de causas públicas e com pensar que se é capaz de as levar à prática através do exercício do poder. São coisas que, para mim, se situaram sempre de um modo muito pontual. É por isso que digo que não tenho ambição política no sentido mais corrente do termo. P. - O senhor adora a política... R. - Não é verdade, mas compreendo que possa dar essa impressão... Sabe porque é que eu não acumulei com a universidade, porque é que estou em exclusivo no Parlamento? Sinto que no momento em que eu retomar a minha vida na universidade a sério, como fazia até 1995, nem sou capaz de ir ao Parlamento (risos). Esqueço-me do Parlamento (risos). O problema é que eu faço tudo, por temperamento, de um modo muito determinado, muito convicto e, provavelmente, isso pode, num momento em que me empenho muito como o fiz no Ministério da Cultura, ou depois, neste período "pós-ministério", no Parlamento, isso pode dar essa impressão para o exterior, de que eu tenho uma grande ambição política, o que não é, de facto, verdade. Mas a experiência do Governo foi uma experiência fantástica. A possibilidade da acção, de mudar de facto as coisas, é algo de extraordinário. De resto, foi uma das razões porque eu decidi aceitar, sem hesitações, quando pressenti, de véspera, que ia ser convidado para o Ministério da Cultura. P. - Falou em estar na política como missão. Mas não acha que isso contraria um bocado a forma como saiu de ministro da Cultura? Não acha que se devia ter sacrificado um bocado mais? R. - Missão não significa para mim sacrifício, que é uma palavra de que não gosto. Mas, aceitando o termo, diria que me sacrifiquei muito em nome desses objectivos e que, quando saí, o "sacrifício" não foi nada pequeno. Mas a responsabilidade pela condução dos grandes desígnios é do primeiro-ministro. E não é possível (hoje, verificamos mais uma vez essa situação com as declarações de Manuela Arcanjo), não é possível pedirem-nos a concretização de desígnios e, ao mesmo tempo, não termos meios ou apoio político para os alcançarmos. Portanto, eu achei que não ia continuar nessa situação. Mas esta erosão não atingiu só a Cultura, pelo contrário, ela atingiu o coração do "élan" reformista da Nova Maioria. É nessa altura que a paixão da educação desapareceu completamente do discurso político e do discurso do próprio primeiro-ministro. É justamente então que voltam, digamos, os fantasmas do cavaquismo, que se dá o regresso do betão através do Euro 2004. Para mim, simbolicamente, mas não só, o Euro 2004 significou o começo do fim da Nova Maioria. Digo-o com muita tranquilidade e segurança: à medida que se fazia do Euro 2004 um desígnio nacional, com o Governo quase todo metido num estádio de futebol aos saltos pela candidatura de um coisa que, enfim, é pontual, que não mudará nada de substancial no que diz respeito ao desenvolvimento do país... P. - Foi o Governo e foi a oposição. R. - Sim, nessa altura, voltou, triunfante, o partido do betão, que é um partido importante e transpartidário. E desde aí os desígnios da qualificação, da exigência desapareceram do discurso completamente. Portanto, foi a leitura de todos estes aspectos, de um conjunto muito grande de sinais que convergiam no mau sentido que me deram vontade de romper com ela. P. - Que acção pensa ter nos próximos tempos? Trabalhar numa alternativa a António Guterres é uma delas, ficar no Parlamento, como já disse que tenciona ficar, é outra, mas aí a sua acção é limitadíssima. R. - Não sei se vou ficar no Parlamento, é uma coisa em que vou pensar no próximo Verão. As coisas estão em aberto. P. - Defende eleições antecipadas? R. - Eu penso que ter-se uma maioria relativa de 115 deputados representa um potencial político muito maior do que aquele que se aproveitou nestes dois anos. Provavelmente já é tarde para o fazer, não sei, ver-se-á a partir daqui. Mas a situação actual é de um grande impasse e, se não houver sinais claros de saída deste impasse, provavelmente caminhar-se-á para isso. No actual contexto, isso depende de duas coisas, ou o primeiro-ministro se demite, o que não é provável, ou o Presidente da República toma uma iniciativa, o que não é fácil. P. - Foi o ministro da Cultura que mais vezes apareceu na revista "Caras". Como é que começou a sua relação privilegiada com as chamadas "revistas cor-de-rosa"? R. - Tem de me apresentar essa contabilidade dos ministros que aparecem na "Caras". Como sabe, a cultura tem uma grande proximidade com eventos sociais, as inaugurações, as "vernissages", as estreias, e podem fechar-se as portas a essas situações ou não. Francamente, aquilo de que tenho pena em Portugal é que se leia tão pouco, tão poucos livros, são essas situações que merecem acções de fundo. Na situação que temos, não me parece que se deva fazer uma hierarquia muito brutal entre publicações, do género deve-se falar para o PÚBLICO ou aparecer na "Caras"? Num país com esta iliteracia, com tanta falta de atenção ao que mais importa, todos os meios são bons para fazer passar mensagens. Nunca apareci nessas revistas sem ser ligado às minhas funções. Posso dizer que, quer antes quer depois de ser ministro, tive convites para todas as situações e mais alguma, mas nunca apareci em momento algum que não fosse ligado ao meu trabalho, em visitas a museus, na estreia de espectáculos, em exposições, etc. No fundo, tratou-se apenas de desenvolver o potencial de uma proximidade - e identifiquei sempre nas críticas que isso suscita uma talvez surpreendente, mas óbvia, inveja. P. - Para si, todos os problemas radicam no facto de António Guterres ser um mau líder? R. - Hoje, os sistemas democráticos são muito personalizados, quer por força da sua própria arquitectónica política, quer pela pressão mediática. Tudo está concentrado numa pessoa, a responsabilidade de um chefe de Governo e de um líder partidário são enormes. A letargia do topo prejudicou muitos ministros que queriam de facto fazer coisas, limitou ambições reformadoras que foram bloqueadas pelo torpor da liderança. Um caso muito curioso foi o da Fundação para a Prevenção e Segurança. A posição do primeiro-ministro devia ter sido muito clara e não foi, passou-se para um plano quase patológico de falar de Roma, de traidores, etc., quando se devia reconhecer que Fernando Gomes é que tinha tido razão do ponto de vista da gestão do Estado e não Vara, por muito que custasse ao primeiro-ministro. Era essa a sua obrigação como homem de Estado e como primeiro-ministro. Hoje falamos muito de dificuldades económicas, da inflação, da divergência com a Europa, do crescimento que diminui, converge-se para uma síntese negra, mas não foi isso que foi complicado este ano, o que foi verdadeiramente complicado foi o lançamento de um novo ciclo em Setembro completamente oco, tão oco que ainda estamos à procura do seu conteúdo, um ano depois; mais tarde, foi a história do queijo Limiano, em vez de se avançar com negociações que podiam certamente ter viabilizado o orçamento, faz-se uma negociação que os portugueses consideraram, e bem, inaceitável, que foi aliciar um deputado. Para rematar tudo, fez-se o congresso que se fez. No período do pré-congresso lança-se uma grande mobilização para um congresso que se pretendia ser de relançamento. Mas houve o pré e houve o pós - e entre os dois foi tudo zero: de ideias, de iniciativas, de "élan". Do meu ponto de vista, este foi o "anno horribilis" do engenheiro António Guterres - e o país merecia melhor do que isto. P. - Ele já obteve duas maiorias, o retrato que se tem dele não é de uma pessoa inábil... R. - Se calhar, sobra-lhe mesmo em "habilidade" o que lhe falta em visão e determinação... P. - Há alguém dentro do PS que admire? R. - As minhas admirações são mais noutros campos, artístico, filosófico, científico... P. - Que opinião tem do líder do PSD? R. - Ele tem tido um percurso bastante persistente e uma estratégia que, neste momento, ameaça poder tornar-se numa estratégia de sucesso com as coisas a virem cair-lhe de maduras na mão. Arriscamo-nos a ter uma alternância sem efectiva diferença, seria melhor para o país que fosse o líder do PSD que assumisse estratégias alternativas às do PS, e isso ele quase não tem feito. Tem sido de uma enorme persistência política, com a clara obsessão de estar no sítio certo no momento adequado. P. - O que pensa do novo Governo? R. - Que o seu principal problema é o mesmo do anterior. P. - Como avalia o comportamento do primeiro-ministro nesta remodelação? R. - Já todas as avaliações foram feitas, e vão todas no mesmo sentido, seja em termos políticos, seja em termos éticos: "abyssus abyssum invocat" [o abismo atrai o abismo]. Até onde? OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Segunda, 9 de Julho de 2001 Ana Sá Lopes, Isabel Braga e São José Almeida (texto) e Luis Ramos (fotos) É um ataque sem piedade aquele que Manuel Maria Carrilho desfere contra António Guterres. Para ele, o primeiro-ministro não tem perfil nem para chefiar o Governo nem para liderar o PS. Retrata-o como um homem sem visão, nem convicções, sem competência e sem coragem, que não suporta que não gostem dele e, por isso, apela sempre à compaixão. Já que é preciso substituir Guterres, Carrilho defende que o PS organize um congresso extraordinário a seguir às eleições autárquicas. Numa entrevista realizada exactamente um ano depois de ter batido com a porta do Ministério da Cultura, Manuel Maria Carrilho, actualmente deputado, faz o balanço da sua experiência de quase cinco anos no Governo e de um ano como deputado do PS na Assembleia da República. PÚBLICA - Em que estado se encontra actualmente o PS? MANUEL MARIA CARRILHO - O partido está na maior das perplexidades, uma vez que se encontra na situação algo bizarra de ter aprovado uma moção quase por unanimidade e de ter eleito um líder com 96 ou 97 por cento há cerca de um mês e meio. Passado este curto tempo, parece que o capital está totalmente esgotado, se é que alguma vez existiu. O congresso foi um "flop" total, uma oportunidade perdida em termos de renovação do PS, quer enquanto partido, quer enquanto base do Governo. P. - Essa falência do PS é de agora? Pertenceu durante cinco anos a um Governo socialista e ninguém lhe ouviu uma censura nem a Guterres nem ao PS. Depois, desde que saiu do Governo e sobretudo depois do congresso do partido, passou a ter uma atitude muito crítica. Porquê? R. - De 1995 para cá, distinguiria muito claramente três fases. Há um período, de 1995 a 1997, em que me senti pessoalmente muito empenhado e muito entusiasmado, no seguimento de toda a mobilização que se fez nos Estados Gerais. Os Estados Gerais foram uma estratégia de grande sucesso, não só pela eficácia, mas sobretudo pelo conteúdo. Na área da cultura, em que trabalhei, fizemos um diagnóstico exaustivo de todos os problemas, ouvimos os agentes, e a partir de 1995 começou a responder-se em grande parte a todos esses problemas. De 1995 a 1997, estive, pois, muito empenhado no Governo. É entre 1998 e 1999 que começo a sentir-me muito apreensivo com a condução das coisas... P. - Com quê, exactamente? R. - No fim de 1998, começa a haver sinais, na condução da estratégia do Governo, de uma excessiva e ilusória auto-estima, com manifesta subvalorização dos problemas que era preciso enfrentar. E quando, em 1998/99, se começa a definir a mensagem para a legislatura seguinte e a fazer a avaliação que me parecia necessária no termo da primeira legislatura, pensei que era o momento de relançar, em novas metas, a mensagem da Nova Maioria. Num tal quadro, era absolutamente vital pedir uma maioria absoluta ao país. Sempre defendi isso, sobretudo porque desde o princípio, de 1995, que muitas das justificações pelas coisas que não se faziam decorriam da aritmética parlamentar. P. - Se o PS tivesse conseguido a maioria absoluta, o "flop" teria sido menor? R. - Acho que se deveria ter pedido a maioria absoluta e estou convencido de que a teríamos tido se o tivéssemos feito. Mas, quando se pede uma maioria absoluta, é preciso dizer para quê. Ora a campanha de 1999 foi feita no lastro da inércia de um estado de graça que não parou, a não ser transitoriamente, num certo momento da liderança de Marcelo Rebelo de Sousa [PSD]. Estivemos em estado de graça contínuo de 1995 a 1999, e a opção política, a meu ver errada, foi "surfar" a onda do estado de graça e continuar sem dizer nada de muito inovador e mobilizador para o país. Foi essa a estratégia traçada, decidida. Penso que exigir a maioria absoluta teria tido, entre outras, a vantagem de obrigar o PS a assumir desígnios, porque não se pede a maioria absoluta sem se dizer para quê. Mas não foi esse o caminho, fez-se uma campanha eleitoral absolutamente sonolenta, apenas se prometia mais do mesmo. E reconheça-se que os portugueses estiveram à beira de dar uma maioria absoluta ao PS, mesmo com esta estratégia. O que é que, desde essa altura, me preocupou cada vez mais? A grande erosão da liderança que, nessa altura, era já muito óbvia. Provavelmente por razões pessoais, talvez pela desilusão que António Guterres sentiu depois de não ter tido a maioria absoluta que afinal nunca pediu. Para mim, a apreensão com o segundo Governo de António Guterres data quase do princípio, quer pelo modo como se constituiu a equipa do Governo, na rua, quer pelo conteúdo, até às pessoas que entraram e saíram, tudo então me surpreendeu bastante. P. - Quem é que o surpreendeu nessa composição governamental? R. - Não quero falar de ninguém, até porque muitos já saíram... Globalmente, o segundo Governo de Guterres foi avaliado desde o princípio, e bem, como sendo pior do que o anterior, formado por pessoas menos qualificadas. Lembremos que as bandeiras da Nova Maioria eram muito simples: era o rendimento mínimo garantido contra a insensibilidade social, era a qualificação contra o betão, era o diálogo contra o autoritarismo, eram metas muito claras e perceptíveis. Ora esqueceu-se que, para se defender com credibilidade a causa da qualificação, era preciso que o próprio partido e o próprio Governo aparecessem, eles próprios, como altamente qualificados e exigentes consigo próprios. Eu penso que o segundo Governo deu, pelo contrário, uma imagem de progressiva desqualificação. P. - Sentiu dificuldade em trabalhar num quadro em que faltavam vedetas, elites? Foi por isso que não gostou de trabalhar no segundo Governo? R. - A questão não é de todo essa, o que me desiludiu justamente foi não se enfrentarem dificuldades que permaneciam e, sobretudo, não se assumirem novas ambições. Isso foi muito claro na minha área. Os problemas estavam em geral encaminhados para boas soluções, mas havia muito trabalho a fazer, por exemplo, nas frentes do património, do audiovisual ou da cultura externa. O que eu fiz foi desafiar o primeiro-ministro a assumir estas novas batalhas, mas ele disse-me que não era o tempo para isso. P. - Que explicação tem para isso? R. - No fundo, a resposta foi sempre a mesma, hoje vejo com muito mais nitidez a matriz do comportamento do primeiro-ministro. Ele é uma pessoa que não mexe nos equilíbrios herdados, estabelecidos, por exemplo, se uma área tem uma tutela estabelecida há 20 anos, nunca o primeiro-ministro mexerá nessa tutela, quando muito dirá a um ministro para ir conversar com outro ministro, o que provavelmente deixará tudo na mesma. Ora, do meu ponto de vista, o primeiro-ministro existe justamente para resolver esses problemas que nenhum ministro pode resolver sozinho. Quando eu tinha problemas com a cultura externa, com o património ou o audiovisual, o primeiro-ministro dizia, muito simplesmente, que com umas conversas as coisas se resolveriam. O primeiro-ministro não exercia o seu papel, essa é que é a verdade. Mas o que me desiludiu mais desde o início do segundo Governo de Guterres foi a ausência de metas, o que me era pedido era apenas para continuar as rotinas. P. - Portanto entrou reticente no Governo? R. - Em parte, talvez. O primeiro-ministro convidou-me logo no primeiro dia para continuar, eu aceitei, mediante condições que tinha exposto muito claramente. Uma das condições era, do ponto de vista de um ministério novo como era o da Cultura, uma progressão orçamental mínima num quadro de quatro anos, a outra era a das novas metas políticas. No quadro orçamental, houve garantias que não vieram a ser cumpridas; quanto às metas políticas, o primeiro-ministro achava que não era a altura de mexer em nada. O que era espantoso, estávamos no arranque de uma nova legislatura. Eu tive a noção, desde o princípio, de que aquele Governo não ia funcionar. Houve vários sinais. Por exemplo, o programa eleitoral foi mandado para a Assembleia, não por razões de coerência, como se disse na altura, mas porque não se conseguiu fazer o programa a partir do novo "patchwork" organizativo do Governo. Isso, que foi apresentado como uma grande prova de coerência, era já um sinal claro das dificuldades que iríamos ter, necessariamente. Também houve a questão dos ministros coordenadores, que nunca funcionaram... Entretanto, acumularam-se muitos problemas, o primeiro-ministro exibia a sua vocação europeia e, quando acaba a presidência, que correu bem, em Junho de 2000, decidi sair, depois de ter analisado à lupa - verdadeiramente à lupa, podem crer - esta desmobilização em relação às causas, ao país e ao futuro. Para mim, era muito claro que não iria haver um novo fôlego, que a letargia estava para ficar. Quando conversei com o primeiro-ministro sobre a minha vontade de sair... P. - Quando foi isso? R. - Tudo isto se passou na primeira semana de Junho de 2000. Senti então que a terceira fase a que me referi, a da decepção, não tinha retorno. As metas que tínhamos apontado para a nova legislatura tinham três vertentes, que eram a consolidação, o aprofundamento e a inovação, mas, nas condições que havia, íamos ficar pela consolidação e, desse ponto de vista, não me sentia mobilizado para continuar. Ao mesmo tempo, eu queria dar um sinal de como se pode entender o exercício da política, que quanto a mim deve ser um exercício de mobilização por determinadas causas, com desapego pelo próprio poder, mais centrado numa política de missão do que numa política "profissional". Sei que isto é controverso, mas o que me surpreendeu nessa conversa com o primeiro-ministro foram os argumentos que ele dava para a minha continuação, em que insistia muito. Eram argumentos extremamente frouxos, não havia nada que me dissesse que fosse mobilizador, era um retrato da ocupação do poder pelo poder, em certos momentos até parecia que quem queria sair era ele... P. - Está a dar uma imagem terrível do primeiro-ministro... R. - Quando me demiti, tinha já uma ideia política negativa do primeiro-ministro, mas quis mesmo reservar para mim todo o Verão para avaliar melhor, com ponderação, a situação. Pensava comigo próprio que, se calhar tinha sido muito exigente, que provavelmente até me tinha enganado nesta avaliação toda... Enfim, passei o mês de Agosto a pensar nestas hipóteses... Mas, desde Setembro, desde a "rentrée", que ficou claro que não, que tudo ia na linha das minhas suspeitas, bem pior até do que eu tinha antecipado. Guterres revelou-se cada vez mais como um homem sem visão nem determinação na condução do Governo, mas também - o que complica tudo - sem a competência e a coragem que as suas funções exigem. P. - Nunca é frontal? R. - Guterres tem uma característica que o debilita muito, que é pesada em política, é uma pessoa que não suporta que não gostem dele. É um traço quase infantil que, claramente, o impede de ser frontal. A sua obsessão com a popularidade tem uma origem psicológica, antes de ser política. É isto que, no fundo, explica o privilégio que ele dá à estratégia da vitimização, e explica também o modo como ele se esgueira pelas vias da compaixão... É tudo muito beato, lânguido demais e insuportavelmente desresponsabilizante. P. - Pode dar exemplos? R. - Houve múltiplas situações, que hoje todos vamos conhecendo, que são públicas... Veja-se o que aconteceu hoje [29 de Junho], por exemplo. Eu estava no Parlamento e nunca estive tão constrangido como quando olhava para a Manuela Arcanjo, por quem tenho a maior estima, no carro já tinha ouvido as notícias da remodelação e a confirmação de Correia de Campos como ministro da Saúde, e chego ao Parlamento e vejo que a Manuela Arcanjo está no exercício das suas funções na bancada do Governo. O que é que leva uma pessoa a sujeitar a isto alguém que com ele colaborara com dedicação e sacrifício? O quê? E o que aconteceu com a invenção e a extinção de certos ministérios, com a demissão de Fernando Gomes, são já muito os comportamentos que devem, de facto, fazer pensar. Mantendo isto, é claro, no registo exclusivamente político. P. - E em termos pessoais, como é que as coisas se passavam? R. - Pessoalmente, tive sempre as melhores relações com o primeiro-ministro, mas nunca para além daquelas que decorriam das nossas funções. P. - Mas não o conheceu no PS? R. - Conheci-o como a muitas outras pessoas na vida do PS, e só tivemos relações mais próximas a partir do momento em que ele me convidou para o Governo. P. - A quem apoiou, dentro do PS, nas várias eleições para líder? Apoiou Jaime Gama... R. - Apoiei Jaime Gama nas duas vezes em que ele foi candidato e não apoiei ninguém na disputa entre Guterres e Jorge Sampaio. P. - Quando aderiu ao PS? Participou na vida do partido? R. - Aderi em 1986 e tive sempre uma relação muito clara com o PS: sempre que a minha colaboração foi solicitada dei-a, mas nunca andei atrás do partido, nem a dar nem a pedir nada, tinha e tenho a minha vida profissional fora da política e longe do partido. P. - Mas não se lembra concretamente de como conheceu António Guterres? R. - Foi essencialmente nos Estados Gerais. É bom lembrar que ele conseguiu fazer algumas coisas notáveis neste país, que os Estados Gerais foram um dos processos mais notáveis de sempre do ponto de vista do amadurecimento de um programa político alternativo de governação. Guterres é um homem com uma excepcional capacidade de negociação, mesmo de federação, que foram, de resto, as características que fizeram dele secretário-geral do PS. É também um orador extremamente talentoso, e tudo isto fez dele uma pessoa que seduziu muita gente. Eu nunca teria ido para o Governo, pelo que não tinha nenhuma ambição especial, se não tivesse acreditado nele. Mas se digo que António Guterres foi para mim uma enorme desilusão política, também acrescento que foi a única. Trabalhei com muita gente, segui, por exemplo, Mário Soares, mas Soares nunca foi uma "ilusão" para mim, no sentido de ser alguém que me levasse a dar o salto, a comprometer-me mais a sério na política, a mudar a minha vida. Quando vim para o Governo, estava para ir ocupar uma cátedra na Universidade de Bruxelas, foram opções que tive de avaliar muito bem. O que é curioso é que hoje, dia 29 de Junho de 2001, todos dizem isso, que Guterres foi uma enorme desilusão. Há um ano era diferente, por isso achei que devia dar um sinal muito claro e assumir o que pensava. Foi isso que fiz saindo e, logo em Setembro, escrevendo uma carta aberta ao primeiro-ministro, porque as questões que eu levantava não tinham nada de pessoal, eram questões estritamente políticas, que revelam graves problemas na liderança do país. Tenho perguntado várias vezes: diz-se muito mal deste ou daquele ministro, mas quais são as orientações de Governo que o primeiro-ministro deu e que este ou aquele ministro não seguiu, não concretizou adequadamente, permitindo-nos dizer que ele é um mau ministro? Não há. O problema, em geral, não está nos ministros, está em António Guterres. Eu pertenço aos quatro por cento que não votaram nele no congresso do PS, se saí do Governo foi por pensar isto há um ano, digo-o com toda a tranquilidade. P. - Depois deste percurso contestatário desde que, em Outubro passado, começou a escrever no "Diário de Notícias", conseguiu reunir à sua volta alguns apoios, ou sente-se isolado? R. - Sabe, eu nunca me senti isolado. Quem escreve o que - e quando - eu escrevi, é óbvio que não é uma pessoa que anda "à procura" de apoios, antes pretende, precisamente, desafiar esse tipo de situações, dizendo aquilo que pensa. Julgo que há pessoas no PS que, pelo seu trajecto, ambição política - a ambição é muito importante nisto - se espera que, numa tal situação, se configurem como alternativas. P. - E não tem ambição política? R. - Mas o que é a ambição política? Para mim, a ambição política tem a ver com acreditar num conjunto de causas públicas e com pensar que se é capaz de as levar à prática através do exercício do poder. São coisas que, para mim, se situaram sempre de um modo muito pontual. É por isso que digo que não tenho ambição política no sentido mais corrente do termo. P. - O senhor adora a política... R. - Não é verdade, mas compreendo que possa dar essa impressão... Sabe porque é que eu não acumulei com a universidade, porque é que estou em exclusivo no Parlamento? Sinto que no momento em que eu retomar a minha vida na universidade a sério, como fazia até 1995, nem sou capaz de ir ao Parlamento (risos). Esqueço-me do Parlamento (risos). O problema é que eu faço tudo, por temperamento, de um modo muito determinado, muito convicto e, provavelmente, isso pode, num momento em que me empenho muito como o fiz no Ministério da Cultura, ou depois, neste período "pós-ministério", no Parlamento, isso pode dar essa impressão para o exterior, de que eu tenho uma grande ambição política, o que não é, de facto, verdade. Mas a experiência do Governo foi uma experiência fantástica. A possibilidade da acção, de mudar de facto as coisas, é algo de extraordinário. De resto, foi uma das razões porque eu decidi aceitar, sem hesitações, quando pressenti, de véspera, que ia ser convidado para o Ministério da Cultura. P. - Falou em estar na política como missão. Mas não acha que isso contraria um bocado a forma como saiu de ministro da Cultura? Não acha que se devia ter sacrificado um bocado mais? R. - Missão não significa para mim sacrifício, que é uma palavra de que não gosto. Mas, aceitando o termo, diria que me sacrifiquei muito em nome desses objectivos e que, quando saí, o "sacrifício" não foi nada pequeno. Mas a responsabilidade pela condução dos grandes desígnios é do primeiro-ministro. E não é possível (hoje, verificamos mais uma vez essa situação com as declarações de Manuela Arcanjo), não é possível pedirem-nos a concretização de desígnios e, ao mesmo tempo, não termos meios ou apoio político para os alcançarmos. Portanto, eu achei que não ia continuar nessa situação. Mas esta erosão não atingiu só a Cultura, pelo contrário, ela atingiu o coração do "élan" reformista da Nova Maioria. É nessa altura que a paixão da educação desapareceu completamente do discurso político e do discurso do próprio primeiro-ministro. É justamente então que voltam, digamos, os fantasmas do cavaquismo, que se dá o regresso do betão através do Euro 2004. Para mim, simbolicamente, mas não só, o Euro 2004 significou o começo do fim da Nova Maioria. Digo-o com muita tranquilidade e segurança: à medida que se fazia do Euro 2004 um desígnio nacional, com o Governo quase todo metido num estádio de futebol aos saltos pela candidatura de um coisa que, enfim, é pontual, que não mudará nada de substancial no que diz respeito ao desenvolvimento do país... P. - Foi o Governo e foi a oposição. R. - Sim, nessa altura, voltou, triunfante, o partido do betão, que é um partido importante e transpartidário. E desde aí os desígnios da qualificação, da exigência desapareceram do discurso completamente. Portanto, foi a leitura de todos estes aspectos, de um conjunto muito grande de sinais que convergiam no mau sentido que me deram vontade de romper com ela. P. - Que acção pensa ter nos próximos tempos? Trabalhar numa alternativa a António Guterres é uma delas, ficar no Parlamento, como já disse que tenciona ficar, é outra, mas aí a sua acção é limitadíssima. R. - Não sei se vou ficar no Parlamento, é uma coisa em que vou pensar no próximo Verão. As coisas estão em aberto. P. - Defende eleições antecipadas? R. - Eu penso que ter-se uma maioria relativa de 115 deputados representa um potencial político muito maior do que aquele que se aproveitou nestes dois anos. Provavelmente já é tarde para o fazer, não sei, ver-se-á a partir daqui. Mas a situação actual é de um grande impasse e, se não houver sinais claros de saída deste impasse, provavelmente caminhar-se-á para isso. No actual contexto, isso depende de duas coisas, ou o primeiro-ministro se demite, o que não é provável, ou o Presidente da República toma uma iniciativa, o que não é fácil. P. - Foi o ministro da Cultura que mais vezes apareceu na revista "Caras". Como é que começou a sua relação privilegiada com as chamadas "revistas cor-de-rosa"? R. - Tem de me apresentar essa contabilidade dos ministros que aparecem na "Caras". Como sabe, a cultura tem uma grande proximidade com eventos sociais, as inaugurações, as "vernissages", as estreias, e podem fechar-se as portas a essas situações ou não. Francamente, aquilo de que tenho pena em Portugal é que se leia tão pouco, tão poucos livros, são essas situações que merecem acções de fundo. Na situação que temos, não me parece que se deva fazer uma hierarquia muito brutal entre publicações, do género deve-se falar para o PÚBLICO ou aparecer na "Caras"? Num país com esta iliteracia, com tanta falta de atenção ao que mais importa, todos os meios são bons para fazer passar mensagens. Nunca apareci nessas revistas sem ser ligado às minhas funções. Posso dizer que, quer antes quer depois de ser ministro, tive convites para todas as situações e mais alguma, mas nunca apareci em momento algum que não fosse ligado ao meu trabalho, em visitas a museus, na estreia de espectáculos, em exposições, etc. No fundo, tratou-se apenas de desenvolver o potencial de uma proximidade - e identifiquei sempre nas críticas que isso suscita uma talvez surpreendente, mas óbvia, inveja. P. - Para si, todos os problemas radicam no facto de António Guterres ser um mau líder? R. - Hoje, os sistemas democráticos são muito personalizados, quer por força da sua própria arquitectónica política, quer pela pressão mediática. Tudo está concentrado numa pessoa, a responsabilidade de um chefe de Governo e de um líder partidário são enormes. A letargia do topo prejudicou muitos ministros que queriam de facto fazer coisas, limitou ambições reformadoras que foram bloqueadas pelo torpor da liderança. Um caso muito curioso foi o da Fundação para a Prevenção e Segurança. A posição do primeiro-ministro devia ter sido muito clara e não foi, passou-se para um plano quase patológico de falar de Roma, de traidores, etc., quando se devia reconhecer que Fernando Gomes é que tinha tido razão do ponto de vista da gestão do Estado e não Vara, por muito que custasse ao primeiro-ministro. Era essa a sua obrigação como homem de Estado e como primeiro-ministro. Hoje falamos muito de dificuldades económicas, da inflação, da divergência com a Europa, do crescimento que diminui, converge-se para uma síntese negra, mas não foi isso que foi complicado este ano, o que foi verdadeiramente complicado foi o lançamento de um novo ciclo em Setembro completamente oco, tão oco que ainda estamos à procura do seu conteúdo, um ano depois; mais tarde, foi a história do queijo Limiano, em vez de se avançar com negociações que podiam certamente ter viabilizado o orçamento, faz-se uma negociação que os portugueses consideraram, e bem, inaceitável, que foi aliciar um deputado. Para rematar tudo, fez-se o congresso que se fez. No período do pré-congresso lança-se uma grande mobilização para um congresso que se pretendia ser de relançamento. Mas houve o pré e houve o pós - e entre os dois foi tudo zero: de ideias, de iniciativas, de "élan". Do meu ponto de vista, este foi o "anno horribilis" do engenheiro António Guterres - e o país merecia melhor do que isto. P. - Ele já obteve duas maiorias, o retrato que se tem dele não é de uma pessoa inábil... R. - Se calhar, sobra-lhe mesmo em "habilidade" o que lhe falta em visão e determinação... P. - Há alguém dentro do PS que admire? R. - As minhas admirações são mais noutros campos, artístico, filosófico, científico... P. - Que opinião tem do líder do PSD? R. - Ele tem tido um percurso bastante persistente e uma estratégia que, neste momento, ameaça poder tornar-se numa estratégia de sucesso com as coisas a virem cair-lhe de maduras na mão. Arriscamo-nos a ter uma alternância sem efectiva diferença, seria melhor para o país que fosse o líder do PSD que assumisse estratégias alternativas às do PS, e isso ele quase não tem feito. Tem sido de uma enorme persistência política, com a clara obsessão de estar no sítio certo no momento adequado. P. - O que pensa do novo Governo? R. - Que o seu principal problema é o mesmo do anterior. P. - Como avalia o comportamento do primeiro-ministro nesta remodelação? R. - Já todas as avaliações foram feitas, e vão todas no mesmo sentido, seja em termos políticos, seja em termos éticos: "abyssus abyssum invocat" [o abismo atrai o abismo]. Até onde? OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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