EXPRESSO: Opinião

15-01-2002
marcar artigo

Medo de governar

José António Saraiva

Governo reunido esta semana à beira-Tejo: o que preocupa o PS é gerir o poder

«Se um Governo muda de política quando muda um ministro, se adopta num mesmo mandato modelos diferentes de organização, se avança e recua nas decisões ao sabor das sondagens e das contestações populares - então para que serve a estabilidade?»

O COMPORTAMENTO pouco frontal de António Guterres no caso da taxa de alcoolemia fez-me recordar uma frase de Mário Soares dita no Verão passado: «Governar é escolher e escolher é desagradar».

Curiosamente, seis anos antes, nesta coluna, eu tinha escrito praticamente o mesmo: «Governar é decidir e decidir é dividir».

O problema de Guterres é que, não querendo desperdiçar um único voto, prefere não decidir para não desagradar a ninguém.

E mesmo quando, num assomo de coragem, resolve tomar uma decisão, acaba invariavelmente por recuar aos primeiros sinais de contestação.

Os exemplos são inúmeros.

Lembro-me do dia em que Elisa Ferreira, então ministra do Ambiente, anunciou com grande solenidade os dois locais onde se iria fazer a co-incineração.

Os protestos das populações não se fizeram esperar.

Para apaziguar os ânimos, António Guterres foi então a Coimbra, onde a agitação era enorme.

Quando todos esperavam que o primeiro-ministro aproveitasse a presença ali para dar força à decisão e reforçar a autoridade da ministra, Guterres fez exactamente o contrário: recuou, anunciando que iria nomear uma «comissão científica independente» para estudar o assunto.

Confesso que me senti confundido.

Uma comissão para estudar o assunto?

Mas então, antes de tomar a decisão, o Governo não fizera os estudos necessários?

Ou a «comissão» era um mero pretexto para adiar o problema, para não o resolver, para evitar o confronto?

Desde essa altura, a história tem-se vindo a repetir: sempre que uma decisão do Governo sofre contestação, Guterres dispõe-se a recuar.

Foi assim com a lei da liberdade religiosa - que está parada não se sabe onde.

Com a criação das salas de chuto - que ficaram na gaveta.

Com a reforma fiscal - que tem andado para trás.

Com a taxa de alcoolemia.

Mas não só nisto a política do Governo é ziguezagueante, desorientando toda a gente.

Quem não se lembra da nova organização do Governo, com a criação de ministros-coordenadores, inventada por Guterres em 1999 e rapidamente abandonada em 2000?

E que dizer das políticas adoptadas nas Finanças, na Saúde ou na Cultura, que são invariavelmente postas em causa sempre que o ministro muda?

Quem esqueceu as duras críticas de Manuela Arcanjo a Maria de Belém (que o actual ministro, Correia de Campos, está a reabilitar)?

Quem esqueceu os ataques de Sousa Franco a Pina Moura (que, por sua vez, se distancia agora de Oliveira Martins)?

Quem não recorda as farpas lançadas por José Sasportes a Manuel Maria Carrilho?

Para já não falar do estranho caso das contas do Estado, que determinaram até agora dois orçamentos rectificativos e só não obrigarão a um terceiro se o Governo, por vergonha, baralhar os números.

A estabilidade governativa, que eu tenho continuamente defendido, tem como primeiro objectivo permitir o desenvolvimento de políticas coerentes durante um determinado período de tempo.

Mas se um Governo muda de política quando muda um ministro, se adopta num mesmo mandato modelos diferentes de organização, se avança e recua nas decisões ao sabor das sondagens e das contestações populares - então para que serve a estabilidade?

Se não há para os vários sectores uma ideia, um objectivo a atingir, de que serve um Governo estar seis anos no poder?

Verdadeiramente revelador da natureza desta maioria é o facto de as raras decisões tomadas com rapidez e convicção terem sido não para fazer mas para não fazer.

Estou a pensar nas desistências da construção da barragem de Foz Côa e da conclusão do í, não houve recuos.

Mas se a decisão tivesse sido a contrária, se fosse avançar com as obras em vez de as suspender, estaríamos provavelmente ainda hoje às voltas com os projectos, envolvidos em discussões intermináveis, mergulhados em pareceres contraditórios de comissões independentes.

O PS, como uma vez escrevi, tem medo de governar.

O que verdadeiramente o preocupa é gerir o poder.

jsaraiva@mail.expresso.pt

Medo de governar

José António Saraiva

Governo reunido esta semana à beira-Tejo: o que preocupa o PS é gerir o poder

«Se um Governo muda de política quando muda um ministro, se adopta num mesmo mandato modelos diferentes de organização, se avança e recua nas decisões ao sabor das sondagens e das contestações populares - então para que serve a estabilidade?»

O COMPORTAMENTO pouco frontal de António Guterres no caso da taxa de alcoolemia fez-me recordar uma frase de Mário Soares dita no Verão passado: «Governar é escolher e escolher é desagradar».

Curiosamente, seis anos antes, nesta coluna, eu tinha escrito praticamente o mesmo: «Governar é decidir e decidir é dividir».

O problema de Guterres é que, não querendo desperdiçar um único voto, prefere não decidir para não desagradar a ninguém.

E mesmo quando, num assomo de coragem, resolve tomar uma decisão, acaba invariavelmente por recuar aos primeiros sinais de contestação.

Os exemplos são inúmeros.

Lembro-me do dia em que Elisa Ferreira, então ministra do Ambiente, anunciou com grande solenidade os dois locais onde se iria fazer a co-incineração.

Os protestos das populações não se fizeram esperar.

Para apaziguar os ânimos, António Guterres foi então a Coimbra, onde a agitação era enorme.

Quando todos esperavam que o primeiro-ministro aproveitasse a presença ali para dar força à decisão e reforçar a autoridade da ministra, Guterres fez exactamente o contrário: recuou, anunciando que iria nomear uma «comissão científica independente» para estudar o assunto.

Confesso que me senti confundido.

Uma comissão para estudar o assunto?

Mas então, antes de tomar a decisão, o Governo não fizera os estudos necessários?

Ou a «comissão» era um mero pretexto para adiar o problema, para não o resolver, para evitar o confronto?

Desde essa altura, a história tem-se vindo a repetir: sempre que uma decisão do Governo sofre contestação, Guterres dispõe-se a recuar.

Foi assim com a lei da liberdade religiosa - que está parada não se sabe onde.

Com a criação das salas de chuto - que ficaram na gaveta.

Com a reforma fiscal - que tem andado para trás.

Com a taxa de alcoolemia.

Mas não só nisto a política do Governo é ziguezagueante, desorientando toda a gente.

Quem não se lembra da nova organização do Governo, com a criação de ministros-coordenadores, inventada por Guterres em 1999 e rapidamente abandonada em 2000?

E que dizer das políticas adoptadas nas Finanças, na Saúde ou na Cultura, que são invariavelmente postas em causa sempre que o ministro muda?

Quem esqueceu as duras críticas de Manuela Arcanjo a Maria de Belém (que o actual ministro, Correia de Campos, está a reabilitar)?

Quem esqueceu os ataques de Sousa Franco a Pina Moura (que, por sua vez, se distancia agora de Oliveira Martins)?

Quem não recorda as farpas lançadas por José Sasportes a Manuel Maria Carrilho?

Para já não falar do estranho caso das contas do Estado, que determinaram até agora dois orçamentos rectificativos e só não obrigarão a um terceiro se o Governo, por vergonha, baralhar os números.

A estabilidade governativa, que eu tenho continuamente defendido, tem como primeiro objectivo permitir o desenvolvimento de políticas coerentes durante um determinado período de tempo.

Mas se um Governo muda de política quando muda um ministro, se adopta num mesmo mandato modelos diferentes de organização, se avança e recua nas decisões ao sabor das sondagens e das contestações populares - então para que serve a estabilidade?

Se não há para os vários sectores uma ideia, um objectivo a atingir, de que serve um Governo estar seis anos no poder?

Verdadeiramente revelador da natureza desta maioria é o facto de as raras decisões tomadas com rapidez e convicção terem sido não para fazer mas para não fazer.

Estou a pensar nas desistências da construção da barragem de Foz Côa e da conclusão do í, não houve recuos.

Mas se a decisão tivesse sido a contrária, se fosse avançar com as obras em vez de as suspender, estaríamos provavelmente ainda hoje às voltas com os projectos, envolvidos em discussões intermináveis, mergulhados em pareceres contraditórios de comissões independentes.

O PS, como uma vez escrevi, tem medo de governar.

O que verdadeiramente o preocupa é gerir o poder.

jsaraiva@mail.expresso.pt

marcar artigo