Suplemento Mil Folhas

07-04-2001
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CARTA

Sábado, 7 de Abril de 2001

Sobre literaturas africanas

(a propósito de uma resenha de António Pinto Ribeiro)

Não me disporia a escrever um texto para o PÚBLICO (de que sou leitor diário) sem ser convidado e muito menos para fazer reparos a um texto publicado no suplemento "Mil Folhas", se não fossem gravíssimos os erros com que deparei, no âmbito das literaturas africanas de língua portuguesa. Já noutras ocasiões constatei que, no anterior suplemento [Leituras], o crítico António Tomás se equivocou várias vezes, mas não quis intervir. Desta vez, António Pinto Ribeiro assinou, em 17-2-2001, uma resenha ao livro (que, entretanto, conheci) "África & Brasil: Letras em Laços", publicado em São Paulo, sobre a literatura dos PALOP, escrito por ensaístas do Brasil, e no qual se procede a uma introdução satisfatória às literaturas africanas de língua portuguesa. Acontece que a resenha apresenta tantos erros e equívocos, que valerá a pena elucidar os interessados. Assim, nunca poderia "com rigor ser considerada a primeira obra da História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa", porque o próprio norte-americano Russel Hamilton, autor da considerada excelente "Introdução" já publicara, nos Estados Unidos, há muitos anos, um primeiro esboço do que poderia ser uma História dessas literaturas, que, depois das independências, refundiu, alargou, traduziu e publicou em dois volumes em Portugal. Esta, sim, poderia ser considerada com pretensões a primeira História das literaturas africanas, mas não é ainda suficiente. Já agora adianto que há-de sair, sim, uma História das literaturas africanas, com centenas de páginas (cerca de mil, dactilografadas), no final deste ano.

O livro de poemas "Espontaneidades da Minha Alma" (1849), ao contrário do que o articulista julga, é perfeitamente conhecido no meio como o primeiro a ser publicado na África lusófona, desde que outro norte-americano, Gerald Moser, hoje jubilado da Universidade, o deu a conhecer e está publicado. Qualquer aluno de Literaturas Africanas das nossas Faculdades já ouviu falar dele.

O autor faz uma grande confusão entre a Negritude, a "prática cultural de guerrilha" e um (chamado por ele) "período de transição", do que resulta pensar que Agostinho Neto e António Jacinto escreveram poemas de guerrilha, o que não é verdade, porque, no caso do primeiro, e do que está publicado, os textos são datados de 1945 a 1960 (a guerrilha começou em 1961), não se encontrando neles qualquer semântica da guerrilha, mas apenas da "sagrada esperança" e mesmo da "certeza" da independência, que são marcas diferentes. Poesia com armas, do angolano Costa Andrade, sim, é um livro de poemas de temática guerrilheira. Como é que Craveirinha pode ser um escritor de transição (transição de quê?) se os seus poemas são datados de 1945 até à actualidade, tendo passado por fases de Sócio-realismo, Negritude, Nacionalismo (mas não de guerrilha!) e continuando a escrever na época a que o articulista, seguindo alguns teóricos, com razão, chama de pós-colonialidade. Os outros podem ser de "transição", mas ele não, porque atravessou toda a segunda metade do século passado e está aí para durar. E Pepetela é também um escritor de transição,

com 30 anos de escrita e também Prémio Camões, como Craveirinha?

É arriscado escrever que Ruy Duarte de Carvalho, como outros, tem "preocupações de natureza histórica" (que grande escritor não as terá?), mas essa não é a vertente dominante, nem sequer muito marcada, da sua vasta produção, curiosamente mais estético-antropológica, precisamente o contrário de Manuel Rui, que não é, nunca será, um "escritor etnógrafo" (deve o articulista tê-lo trocado pelo anterior ou mesmo por Óscar Ribas, mas será que já ouviu ou leu este nome?). A brasileira Carmen Secco não radica a escrita de Mia Couto no nativismo (um conceito aplicado ao século XIX e princípio do XX - Couto publicou o primeiro livro em 1983) e não diz que sofreu as influências "em especial de Guimarães Rosa e Manoel de Barros", já que a primeira influência de Couto, quanto à criatividade linguística, foi de Luandino Vieira e depois houve outras, entre as quais de Rosa, mas Manoel de Barros é de duvidar - e muito - porque nem os brasileiros, até há pouco, tinham dado por ele. Duvido, aliás, que o articulista conheça a obra, poética, de Manoel de Barros.

Não há um grande contributo de mulheres no domínio da poesia, da prosa e do ensaio (a contabilidade, para além da qualidade, está sobreavaliada), sobretudo pela razão de que, por exemplo, no ensaio, até a escassez de homens é flagrante.

Finalmente, dizer que pouca atenção tem sido dada à produção cultural dos países de expressão portuguesa é andar distraído ou ter finalmente descoberto o que tem, no mínimo, século e meio de existência e ignorar o trabalho de pessoas dedicadas há décadas ao assunto. Falando de trabalho meritório, referir somente Ana Mafalda Leite, é reduzir drasticamente o naipe de estudiosos e divulgadores e não conhecer que, somente com livros e teses publicados em Portugal sobre literaturas africanas (para não referir também autores de artigos), há, pelo menos (refiro de memória alguns dos mais referidos e citados, uns mais do que outros), Manuel Ferreira, Alfredo Margarido, Inocência Mata, Elsa Rodrigues dos Santos, Alberto Carvalho, Francisco Soares, Salvato Trigo, Ana Maria Martinho, Fernando J. B. Martinho, José Carlos Venâncio, Mário António Fernandes de Oliveira, Maria Cristina Pacheco, Eugénio Lisboa, Maria Luísa Baptista, Leonel Cosme, Gabriel Mariano, Rosa Sil Monteiro, António Cândido Franco, Fernanda Cavacas, Manuel dos Santos Lima, Cândido Beirante, Aldónio Gomes, entre muitos outros. Uma última informação: a maior parte dos colaboradores brasileiros iniciou a sua actividade nesta área recentemente, em comparação com os que são referidos antes e que vivem em Portugal. O livro é meritório e importantíssimo, mas não podia ter sido apresentado ao público português dessa maneira. É que não basta ter acesso aos órgãos de comunicação social: é preciso saber do que se fala quando se escreve.

Pires Laranjeira

(Universidade de Coimbra)

CARTA

Sábado, 7 de Abril de 2001

Sobre literaturas africanas

(a propósito de uma resenha de António Pinto Ribeiro)

Não me disporia a escrever um texto para o PÚBLICO (de que sou leitor diário) sem ser convidado e muito menos para fazer reparos a um texto publicado no suplemento "Mil Folhas", se não fossem gravíssimos os erros com que deparei, no âmbito das literaturas africanas de língua portuguesa. Já noutras ocasiões constatei que, no anterior suplemento [Leituras], o crítico António Tomás se equivocou várias vezes, mas não quis intervir. Desta vez, António Pinto Ribeiro assinou, em 17-2-2001, uma resenha ao livro (que, entretanto, conheci) "África & Brasil: Letras em Laços", publicado em São Paulo, sobre a literatura dos PALOP, escrito por ensaístas do Brasil, e no qual se procede a uma introdução satisfatória às literaturas africanas de língua portuguesa. Acontece que a resenha apresenta tantos erros e equívocos, que valerá a pena elucidar os interessados. Assim, nunca poderia "com rigor ser considerada a primeira obra da História das Literaturas Africanas de Expressão Portuguesa", porque o próprio norte-americano Russel Hamilton, autor da considerada excelente "Introdução" já publicara, nos Estados Unidos, há muitos anos, um primeiro esboço do que poderia ser uma História dessas literaturas, que, depois das independências, refundiu, alargou, traduziu e publicou em dois volumes em Portugal. Esta, sim, poderia ser considerada com pretensões a primeira História das literaturas africanas, mas não é ainda suficiente. Já agora adianto que há-de sair, sim, uma História das literaturas africanas, com centenas de páginas (cerca de mil, dactilografadas), no final deste ano.

O livro de poemas "Espontaneidades da Minha Alma" (1849), ao contrário do que o articulista julga, é perfeitamente conhecido no meio como o primeiro a ser publicado na África lusófona, desde que outro norte-americano, Gerald Moser, hoje jubilado da Universidade, o deu a conhecer e está publicado. Qualquer aluno de Literaturas Africanas das nossas Faculdades já ouviu falar dele.

O autor faz uma grande confusão entre a Negritude, a "prática cultural de guerrilha" e um (chamado por ele) "período de transição", do que resulta pensar que Agostinho Neto e António Jacinto escreveram poemas de guerrilha, o que não é verdade, porque, no caso do primeiro, e do que está publicado, os textos são datados de 1945 a 1960 (a guerrilha começou em 1961), não se encontrando neles qualquer semântica da guerrilha, mas apenas da "sagrada esperança" e mesmo da "certeza" da independência, que são marcas diferentes. Poesia com armas, do angolano Costa Andrade, sim, é um livro de poemas de temática guerrilheira. Como é que Craveirinha pode ser um escritor de transição (transição de quê?) se os seus poemas são datados de 1945 até à actualidade, tendo passado por fases de Sócio-realismo, Negritude, Nacionalismo (mas não de guerrilha!) e continuando a escrever na época a que o articulista, seguindo alguns teóricos, com razão, chama de pós-colonialidade. Os outros podem ser de "transição", mas ele não, porque atravessou toda a segunda metade do século passado e está aí para durar. E Pepetela é também um escritor de transição,

com 30 anos de escrita e também Prémio Camões, como Craveirinha?

É arriscado escrever que Ruy Duarte de Carvalho, como outros, tem "preocupações de natureza histórica" (que grande escritor não as terá?), mas essa não é a vertente dominante, nem sequer muito marcada, da sua vasta produção, curiosamente mais estético-antropológica, precisamente o contrário de Manuel Rui, que não é, nunca será, um "escritor etnógrafo" (deve o articulista tê-lo trocado pelo anterior ou mesmo por Óscar Ribas, mas será que já ouviu ou leu este nome?). A brasileira Carmen Secco não radica a escrita de Mia Couto no nativismo (um conceito aplicado ao século XIX e princípio do XX - Couto publicou o primeiro livro em 1983) e não diz que sofreu as influências "em especial de Guimarães Rosa e Manoel de Barros", já que a primeira influência de Couto, quanto à criatividade linguística, foi de Luandino Vieira e depois houve outras, entre as quais de Rosa, mas Manoel de Barros é de duvidar - e muito - porque nem os brasileiros, até há pouco, tinham dado por ele. Duvido, aliás, que o articulista conheça a obra, poética, de Manoel de Barros.

Não há um grande contributo de mulheres no domínio da poesia, da prosa e do ensaio (a contabilidade, para além da qualidade, está sobreavaliada), sobretudo pela razão de que, por exemplo, no ensaio, até a escassez de homens é flagrante.

Finalmente, dizer que pouca atenção tem sido dada à produção cultural dos países de expressão portuguesa é andar distraído ou ter finalmente descoberto o que tem, no mínimo, século e meio de existência e ignorar o trabalho de pessoas dedicadas há décadas ao assunto. Falando de trabalho meritório, referir somente Ana Mafalda Leite, é reduzir drasticamente o naipe de estudiosos e divulgadores e não conhecer que, somente com livros e teses publicados em Portugal sobre literaturas africanas (para não referir também autores de artigos), há, pelo menos (refiro de memória alguns dos mais referidos e citados, uns mais do que outros), Manuel Ferreira, Alfredo Margarido, Inocência Mata, Elsa Rodrigues dos Santos, Alberto Carvalho, Francisco Soares, Salvato Trigo, Ana Maria Martinho, Fernando J. B. Martinho, José Carlos Venâncio, Mário António Fernandes de Oliveira, Maria Cristina Pacheco, Eugénio Lisboa, Maria Luísa Baptista, Leonel Cosme, Gabriel Mariano, Rosa Sil Monteiro, António Cândido Franco, Fernanda Cavacas, Manuel dos Santos Lima, Cândido Beirante, Aldónio Gomes, entre muitos outros. Uma última informação: a maior parte dos colaboradores brasileiros iniciou a sua actividade nesta área recentemente, em comparação com os que são referidos antes e que vivem em Portugal. O livro é meritório e importantíssimo, mas não podia ter sido apresentado ao público português dessa maneira. É que não basta ter acesso aos órgãos de comunicação social: é preciso saber do que se fala quando se escreve.

Pires Laranjeira

(Universidade de Coimbra)

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