O Portugal que resiste

09-03-2001
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Pré-publicação

O Portugal Que Resiste

Por PAULO CAETANO

Segunda-feira, 4 de Dezembro de 2000 No prefácio, Manuel Alegre escreve que "Portugal Ainda" é um acto de resistência. "O livro - diz - não se limita a registar passivamente imagens e lugares. É ele próprio uma viagem por um certo Portugal que resiste, subsiste e persiste em não se deixar matar". A viagem por "este" Portugal ocupou cerca de dois anos a Paulo Caetano, 34 anos, e a Rui Vasco, 38. O resultado é um álbum de reportagens em 14 capítulos. Pré-publicamos um pequeno excerto de "A Festa dos Demónios - Rituais de Iniciação em Montesinho". Os preparativos dos caretos começam na noite anterior e prolongam-se pela madrugada dentro. Há que ensaiar as comédias e experimentar os fatos, combinar partidas e estratégias. Tudo muito regado pelo tinto da região ou - sinal dos tempos - por uns uísques e umas vodkas. A antiga casa do padre, abandonada desde que o sacerdote deixou de residir na aldeia, é o ponto de encontro dos rapazes. Agora é uma espécie de habitação comunitária, onde se fazem grandes noitadas e se deixam os materiais para a festa. E é para aqui que, logo às primeiras horas da manhã, começam a confluir os moços solteiros. A algazarra é grande, apesar do cansaço e das olheiras evidentes. "Já acordaste, home?", lançam uns aos outros. Como era de se esperar, há sempre uns pormenores de última hora, uns imprevistos a resolver e a azáfama gera o caos nas pequenas divisões degradadas da casa. "E a burra? Ninguém lhe arranja uma cabeçada para a pôr na carroça?", pergunta um dos mordomos, enquanto experimenta o recém-chegado uniforme da GNR. "Alguém tem um baraço? Preciso de um baraço!", são as frases mais ouvidas. De um momento para o outro, parece que todos precisam de um cordel para atar qualquer coisa. Seja para prender as calças ou para segurar os chocalhos, os pedaços de corda e de fio têm uma procura enorme e rapidamente se esgotam. Todos os rapazes contribuem para o sucesso da festa e estão perfeitamente integrados. Quer morem na aldeia, estudem nas grandes cidades ou tenham emigrado com os seus pais para o estrangeiro. Nestes dias, estão irmanados pela tradição antiga destes povos serranos. À hora da missa, o nervosismo ataca: "Tá quase na hora. Temos de ir todos juntos". Então, em magote, descem as escadas de xisto e avançam até à velha igreja. Onde ficam de pé, junto à pia da água benta, num grupo compacto e divertido. De todos os pontos de Aveleda, surgem grupos apressados de pessoas. Os mais velhos, que continuam a sobreviver na aldeia, recebem nesta época festiva os filhos, as noras, os netos. Vindos de Lisboa, Porto ou dos subúrbios de Paris. E, num ápice, vislumbramos velhinhas de trajes negros e rosto enrugado, de braço dado com jovens de jeans e impermeáveis garridos. A igreja enche rapidamente, ao som da música sacra que brota de um gira-discos fanhoso. O presépio ocupa uma das paredes laterais e, num dos extremos, avista-se um bonito altar em talha dourada, com um fundo azul claro onde foram pendurados uns anjinhos. O tecto, esse, é de todo inesquecível: em ripas azulinhas de madeira e decorado com estrelas. E, bem no centro, um sol. "Com todos os anjos e arcanjos e todos os corpos celestes, proclamamos a uma só voz", brada o sacerdote para a assistência devota, entre rezas e cantorias religiosas. No final, após o peditório, os rapazes adiantam-se ao povo e formam uma fila ordeira. São os primeiros a beijar a estatueta do menino Jesus que o padre segura ao colo. Depois, arrancam para a chuva e abalam em direcção à casa. Está na hora das Festas. A hierarquia católica lidava mal com estas festividades e tentou, por todos os meios, condená-las. Santo Agostinho, por exemplo, mandou criticar todos aqueles que, a 1 de Janeiro, se vestiam com peles de cervos e cabras e deambularam pela floresta entregando-se a orgias, recriando um tempo em que quase nada distinguia o homem e os animais. "A Festa dos Rapazes em Baçal, Sacoias, Aveleda e Varge é semelhante nas suas modalidades e exibições, deixando perceber a mesma comunidade étnica e promanação histórica, denunciando nas suas origens primevas carácter mais antigo e acentuadamente pagão", escreveu o Abade. Certo é que esta Festa continua a ser essencial para a sobrevivência destas povoações perdidas na serra. "Toda a aldeia tem um enorme respeito pelos rapazes que são, aos seus olhos, a garantia de reprodução colectiva", defende Paula Godinho [professora de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas], que adianta: "As festividades reconstituem o todo da aldeia, esbatem as rivalidades e iniciam os moços nas suas responsabilidades. Todos concordam que o povo só existe com a sua mocidade. É a única forma de perpetuar a memória colectiva e garantir o futuro da aldeia". A verdade é que o ritual não morreu, apesar de algumas Festas se terem interrompido na década de 60, devido à sangria de jovens provocada pela migração e pela guerra colonial. E quando foi retomado, com o 25 de Abril de 1974, explodiu com mais força ainda. "Os moços falaram com os velhos e recriaram a Festa com a toda a fidelidade. E, quando chega a altura, regressam de onde quer que estejam: da Suíça, do Canadá, de França. Eu acredito que as Festas dos Rapazes não estão condenadas". * "Portugal Ainda" (ed. Bizâncio, 8.000$00) é lançado na terça-feira OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

DO EDITOR

Viciados nas compras

Compulsivos, excessivos, consumidos

Os dez mandamentos

Auto-diagnóstico em nove perguntas*

Gastar mas com juizinho

O Portugal que resiste

Fernando Mascarenhas

O Universo de Ray Bradbury

CRÓNICAS

Como sobreviver a um desastre aéreo

No céu

VOZES EM PORTUGUÊS

O arroto de Dona Elisa

MIRAGEM

O último voto

HERÓIS DA BANDA DESENHADA

Superman

CARTAS DA MAYA

Cartas da Maya

IMPRESSÃO DIGITAL

[10.] American Express, Unibanco, Oxygen

DESAFIOS

Uma ida ao circo

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O Portugal Que Resiste

Por PAULO CAETANO

Segunda-feira, 4 de Dezembro de 2000 No prefácio, Manuel Alegre escreve que "Portugal Ainda" é um acto de resistência. "O livro - diz - não se limita a registar passivamente imagens e lugares. É ele próprio uma viagem por um certo Portugal que resiste, subsiste e persiste em não se deixar matar". A viagem por "este" Portugal ocupou cerca de dois anos a Paulo Caetano, 34 anos, e a Rui Vasco, 38. O resultado é um álbum de reportagens em 14 capítulos. Pré-publicamos um pequeno excerto de "A Festa dos Demónios - Rituais de Iniciação em Montesinho". Os preparativos dos caretos começam na noite anterior e prolongam-se pela madrugada dentro. Há que ensaiar as comédias e experimentar os fatos, combinar partidas e estratégias. Tudo muito regado pelo tinto da região ou - sinal dos tempos - por uns uísques e umas vodkas. A antiga casa do padre, abandonada desde que o sacerdote deixou de residir na aldeia, é o ponto de encontro dos rapazes. Agora é uma espécie de habitação comunitária, onde se fazem grandes noitadas e se deixam os materiais para a festa. E é para aqui que, logo às primeiras horas da manhã, começam a confluir os moços solteiros. A algazarra é grande, apesar do cansaço e das olheiras evidentes. "Já acordaste, home?", lançam uns aos outros. Como era de se esperar, há sempre uns pormenores de última hora, uns imprevistos a resolver e a azáfama gera o caos nas pequenas divisões degradadas da casa. "E a burra? Ninguém lhe arranja uma cabeçada para a pôr na carroça?", pergunta um dos mordomos, enquanto experimenta o recém-chegado uniforme da GNR. "Alguém tem um baraço? Preciso de um baraço!", são as frases mais ouvidas. De um momento para o outro, parece que todos precisam de um cordel para atar qualquer coisa. Seja para prender as calças ou para segurar os chocalhos, os pedaços de corda e de fio têm uma procura enorme e rapidamente se esgotam. Todos os rapazes contribuem para o sucesso da festa e estão perfeitamente integrados. Quer morem na aldeia, estudem nas grandes cidades ou tenham emigrado com os seus pais para o estrangeiro. Nestes dias, estão irmanados pela tradição antiga destes povos serranos. À hora da missa, o nervosismo ataca: "Tá quase na hora. Temos de ir todos juntos". Então, em magote, descem as escadas de xisto e avançam até à velha igreja. Onde ficam de pé, junto à pia da água benta, num grupo compacto e divertido. De todos os pontos de Aveleda, surgem grupos apressados de pessoas. Os mais velhos, que continuam a sobreviver na aldeia, recebem nesta época festiva os filhos, as noras, os netos. Vindos de Lisboa, Porto ou dos subúrbios de Paris. E, num ápice, vislumbramos velhinhas de trajes negros e rosto enrugado, de braço dado com jovens de jeans e impermeáveis garridos. A igreja enche rapidamente, ao som da música sacra que brota de um gira-discos fanhoso. O presépio ocupa uma das paredes laterais e, num dos extremos, avista-se um bonito altar em talha dourada, com um fundo azul claro onde foram pendurados uns anjinhos. O tecto, esse, é de todo inesquecível: em ripas azulinhas de madeira e decorado com estrelas. E, bem no centro, um sol. "Com todos os anjos e arcanjos e todos os corpos celestes, proclamamos a uma só voz", brada o sacerdote para a assistência devota, entre rezas e cantorias religiosas. No final, após o peditório, os rapazes adiantam-se ao povo e formam uma fila ordeira. São os primeiros a beijar a estatueta do menino Jesus que o padre segura ao colo. Depois, arrancam para a chuva e abalam em direcção à casa. Está na hora das Festas. A hierarquia católica lidava mal com estas festividades e tentou, por todos os meios, condená-las. Santo Agostinho, por exemplo, mandou criticar todos aqueles que, a 1 de Janeiro, se vestiam com peles de cervos e cabras e deambularam pela floresta entregando-se a orgias, recriando um tempo em que quase nada distinguia o homem e os animais. "A Festa dos Rapazes em Baçal, Sacoias, Aveleda e Varge é semelhante nas suas modalidades e exibições, deixando perceber a mesma comunidade étnica e promanação histórica, denunciando nas suas origens primevas carácter mais antigo e acentuadamente pagão", escreveu o Abade. Certo é que esta Festa continua a ser essencial para a sobrevivência destas povoações perdidas na serra. "Toda a aldeia tem um enorme respeito pelos rapazes que são, aos seus olhos, a garantia de reprodução colectiva", defende Paula Godinho [professora de Antropologia da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas], que adianta: "As festividades reconstituem o todo da aldeia, esbatem as rivalidades e iniciam os moços nas suas responsabilidades. Todos concordam que o povo só existe com a sua mocidade. É a única forma de perpetuar a memória colectiva e garantir o futuro da aldeia". A verdade é que o ritual não morreu, apesar de algumas Festas se terem interrompido na década de 60, devido à sangria de jovens provocada pela migração e pela guerra colonial. E quando foi retomado, com o 25 de Abril de 1974, explodiu com mais força ainda. "Os moços falaram com os velhos e recriaram a Festa com a toda a fidelidade. E, quando chega a altura, regressam de onde quer que estejam: da Suíça, do Canadá, de França. Eu acredito que as Festas dos Rapazes não estão condenadas". * "Portugal Ainda" (ed. Bizâncio, 8.000$00) é lançado na terça-feira OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

DO EDITOR

Viciados nas compras

Compulsivos, excessivos, consumidos

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Gastar mas com juizinho

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