Suplemento Pública

08-09-2001
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Amália Rodrigues

Segunda, 16 de Julho de 2001

Momento da homenagem nacional a Amália Rodrigues diante do Panteão Nacional, para onde foram trasladados domingo passado os restos mortais da fadista, menos de dois anos após o seu falecimento.

Adelino Gomes

O homem da moldura - Retirei-a da parede e corri para a rua, abraçado a ela para que todos a vejam e o futuro saiba que também eu compareci neste dia da homenagem nacional que o povo exigia.

O rapaz de olhar perdido - Um de nós já disse o que quisemos que todo o país soubesse ao correr os seis quilómetros do percurso funerário exibindo para as câmaras uma folha A4: "Amália do coração do povo".

O homem por detrás do homem da moldura - Doutores do orfeão da mais velha universidade de Portugal cantam versos da mulher que mal se sentou nos primeiros bancos da mais elementar das escolas.

A pessoa da fronte larga - A ouvirem-nos, a celebrarem-na, na primeira fila diante do catafalco, os titulares dos mais altos cargos do Estado.

O homem da popa - Vejo o presidente que se acerca do microfone.

O polícia de costas - É a hora. Ouçam-no, sobretudo vocês que ficaram ao largo, receosos da desmedida, da crónica lamechice nacional.

A multidão - Nada lhe escapou que fosse humilde. A sua voz foi um louvor a Deus, disse há pouco um padre que lhe há-de bater palmas no último adeus católico nos Prazeres. Uma gaivota voa sobre a música das palavras fadistas. E o padre a insistir que ela, a da estranha forma de vida, viveu a fé numa concepção muito própria de vida interior.

O da moldura - Ouçamos então o Presidente, que de nós recebeu ainda há pouco segundo mandato.

O do olhar perdido - A voz transformou-lhe a vida em destino.

O detrás da moldura - Ela fez da voz uma pátria, um bilhete de identidade, dela e nosso, um passaporte que a levou, que nos levou a todo o lado.

A da fronte larga - Quando escutamos Amália, quando ouvimos cantar poemas de Camões, O'Neill, Manuel Alegre, José Régio, Ary dos Santos, entre outros, damo-nos conta dos múltiplos e assombrosos recursos do seu talento, das metamorfoses do seu génio trágico.

O da popa - A sua biografia é a história da fidelidade ao coração, à voz, à vocação, ao fado.

O polícia - Nos momentos de glória ou nos momentos difíceis vimo-la sempre igual a si mesma. Livre, simples e subtil, cultivando uma irónica distância em relação a si própria mas com a consciência exacta de quem era e do que representava.

A da moldura - A obra que nos legou é ao mesmo tempo popular e erudita, antiga e moderna, portuguesa e universal.

O do olhar perdido - O povo reconheceu em Amália a altura de um símbolo colectivo.

A multidão - Venceste o desafio do equilíbrio frágil entre a dignidade de Estado e o arrebatamento popular. Disseste o que tinhas a dizer e nós precisávamos de ouvir. No teu falar, Sampaio, honraste a representação que em ti delegámos.

Amália Rodrigues

Segunda, 16 de Julho de 2001

Momento da homenagem nacional a Amália Rodrigues diante do Panteão Nacional, para onde foram trasladados domingo passado os restos mortais da fadista, menos de dois anos após o seu falecimento.

Adelino Gomes

O homem da moldura - Retirei-a da parede e corri para a rua, abraçado a ela para que todos a vejam e o futuro saiba que também eu compareci neste dia da homenagem nacional que o povo exigia.

O rapaz de olhar perdido - Um de nós já disse o que quisemos que todo o país soubesse ao correr os seis quilómetros do percurso funerário exibindo para as câmaras uma folha A4: "Amália do coração do povo".

O homem por detrás do homem da moldura - Doutores do orfeão da mais velha universidade de Portugal cantam versos da mulher que mal se sentou nos primeiros bancos da mais elementar das escolas.

A pessoa da fronte larga - A ouvirem-nos, a celebrarem-na, na primeira fila diante do catafalco, os titulares dos mais altos cargos do Estado.

O homem da popa - Vejo o presidente que se acerca do microfone.

O polícia de costas - É a hora. Ouçam-no, sobretudo vocês que ficaram ao largo, receosos da desmedida, da crónica lamechice nacional.

A multidão - Nada lhe escapou que fosse humilde. A sua voz foi um louvor a Deus, disse há pouco um padre que lhe há-de bater palmas no último adeus católico nos Prazeres. Uma gaivota voa sobre a música das palavras fadistas. E o padre a insistir que ela, a da estranha forma de vida, viveu a fé numa concepção muito própria de vida interior.

O da moldura - Ouçamos então o Presidente, que de nós recebeu ainda há pouco segundo mandato.

O do olhar perdido - A voz transformou-lhe a vida em destino.

O detrás da moldura - Ela fez da voz uma pátria, um bilhete de identidade, dela e nosso, um passaporte que a levou, que nos levou a todo o lado.

A da fronte larga - Quando escutamos Amália, quando ouvimos cantar poemas de Camões, O'Neill, Manuel Alegre, José Régio, Ary dos Santos, entre outros, damo-nos conta dos múltiplos e assombrosos recursos do seu talento, das metamorfoses do seu génio trágico.

O da popa - A sua biografia é a história da fidelidade ao coração, à voz, à vocação, ao fado.

O polícia - Nos momentos de glória ou nos momentos difíceis vimo-la sempre igual a si mesma. Livre, simples e subtil, cultivando uma irónica distância em relação a si própria mas com a consciência exacta de quem era e do que representava.

A da moldura - A obra que nos legou é ao mesmo tempo popular e erudita, antiga e moderna, portuguesa e universal.

O do olhar perdido - O povo reconheceu em Amália a altura de um símbolo colectivo.

A multidão - Venceste o desafio do equilíbrio frágil entre a dignidade de Estado e o arrebatamento popular. Disseste o que tinhas a dizer e nós precisávamos de ouvir. No teu falar, Sampaio, honraste a representação que em ti delegámos.

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