Editorial

12-11-1999
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EDITORIAL

O centro da «crise»

A dramatização que ocorre em redor de uma figura destacada do Partido Socialista e da posição assumida por esta na votação que, mais uma vez, remeteu para as calendas a criação do concelho de Vizela, tem ocupado as primeiras da imprensa e vem revelando, à medida que se desenvolve e se mostram os apoios às posições em confronto e sob a maior parte dos argumentos expendidos, que a «crise» no seio do PS está para ficar.

O centro da «crise», porém, não é Vizela. Não é primeira vez que o Partido Socialista falta às suas promessas; nem Vizela é a única promessa em que o PS falha espectacularmente; nem a questão da disciplina de voto fez alguma vez arder tão fortemente as orelhas de uma qualquer direcção parlamentar socialista.

O facto, aliás, de se ter escolhido para alvo das críticas o deputado Manuel Alegre e deixado em paz Almeida Santos - por exemplo - não tem a ver com a questão formal do cargo que este exerce como Presidente da Assembleia da República, virtualmente ao abrigo de qualquer crítica, mas terá a ver, sim, com o acumular de tomadas de posição e declarações que Manuel Alegre tem vindo a produzir, protagonizando desse modo uma postura que se afasta da linha política oficial que Guterres chefia. Tem razão o deputado, ao falar dos ataques de que tem sido alvo, em afirmar que tais ataques não lhe serão dirigidos pessoalmente, mas sim àquilo que representa.

A origem da «crise» no interior do PS - e em seu redor, contando com todos os que, de algum modo, tendo votado socialista, pretendiam uma mudança à esquerda - é a tomada de consciência de que a política de Guterres, do seu Governo e da direcção do partido se orienta fortemente para a direita. A questão da revisão constitucional, cuja marcha forçada se está a concluir e promete, em resultado do acordo entre o PS e o PSD, à revelia das instâncias próprias da Assembleia da República, abrir perigosamente as portas a uma alteração profunda do regime político saído da Revolução de Abril, terá atingido como um calafrio alguns socialistas e actuado como detonador da «crise» latente que se verifica no partido de Guterres.

Por outro lado, pode dizer-se que, sobrevalorizando a questão de Vizela, cujas populações têm todo o direito a sentirem-se indignadas e em reclamarem a elevação da sua terra a concelho, sempre defendida pelo PCP, se vem desvalorizando o que de mais gravoso se tem passado na política portuguesa, cujo futuro o acordo de revisão PS/PSD pretende comprometer seriamente. Erigir Vizela em facto político primordial serve à maravilha aos que têm pretendido esconder o verdadeiro escândalo que é a revisão de direita que se pretende consumar.

A tomada de posição de numerosas personalidades, onde avultam nomes destacados da intelectualidade portuguesa, que vieram a público em defesa da democracia, dos direitos de cidadania e da Constituição - a que o nosso jornal dá hoje relevo -, pela abrangência ideológica da sua composição e pela advertência que faz ao partido maioritário, acusando-o de assumir como suas antigas exigências da direita e dos sectores mais conservadores da sociedade portuguesa, é um claro sinal do descontentamento quanto à orientação de direita que a direcção do Partido Socialista escolheu para singrar no poder.

Não foi certamente por acaso que tal tomada de posição mereceu o silêncio e a distracção dos mais importantes órgãos de comunicação social, onde persiste, entretanto, a querela que parece opôr exclusivamente Manuel Alegre à direcção do seu partido.

A participação de destacados socialistas em iniciativas de carácter unitário - como os antigos constituintes Helena Roseta, Marcelo Curto e Kalidás Barreto, que levantaram as suas vozes contra numerosos aspectos da revisão constitucional em curso, num debate promovido pela União dos Sindicatos de Lisboa - também mereceu silêncio, ou pelo menos bastante discrição, nos media.

A questão constitucional está - ou deveria estar e merecer a atenção de toda a comunicação social -, na ordem do dia. De facto, o que o concluio entre o PS e o PSD - com o PP em apêndice -, aglutinando toda a vontade da direita, pretende levar a cabo é coroar um longo processo de recuperação capitalista, latifundista e imperialista - expressão com que os comunistas caracterizaram o processo destrutivo das conquistas de Abril e que retomamos aqui, apesar de sabermos bem o quanto tal expressão irritou então os bem-pensantes que, desde Soares a Cavaco, apoiaram a destruição do que foram as traves mestras do regime democrático que Abril abriu.

O que a direita conseguiu - demorando mais de vinte anos, porque a esquerda (isto é, os trabalhadores, o povo, o PCP) se lhe opôs - não lhe basta. O final lógico deste processo de recuperação, iniciado pelo Partido Socialista há mais de duas décadas, é, de facto, a «reforma» do sistema político, que permita a eternização no poder dessa direita, hoje muito mais claramente identificada. O facto de o PS de Guterres colaborar nesta «reforma», pretendendo garantir o seu futuro na área do poder, em partilha com o PSD, prejudicando o sistema proporcional, com a perspectiva de afastar da representatividade democrática todos quantos se opõem à política de direita e ao enfeudamento às directivas de Maastricht, faz alinhar o PS, objectivamente, a par do PSD e do PP, no bloco que aspira a desnaturar o regime democrático e a não permitir que uma verdadeira alternativa, apostada no progresso e na justiça social, seja viável no País.

EDITORIAL

O centro da «crise»

A dramatização que ocorre em redor de uma figura destacada do Partido Socialista e da posição assumida por esta na votação que, mais uma vez, remeteu para as calendas a criação do concelho de Vizela, tem ocupado as primeiras da imprensa e vem revelando, à medida que se desenvolve e se mostram os apoios às posições em confronto e sob a maior parte dos argumentos expendidos, que a «crise» no seio do PS está para ficar.

O centro da «crise», porém, não é Vizela. Não é primeira vez que o Partido Socialista falta às suas promessas; nem Vizela é a única promessa em que o PS falha espectacularmente; nem a questão da disciplina de voto fez alguma vez arder tão fortemente as orelhas de uma qualquer direcção parlamentar socialista.

O facto, aliás, de se ter escolhido para alvo das críticas o deputado Manuel Alegre e deixado em paz Almeida Santos - por exemplo - não tem a ver com a questão formal do cargo que este exerce como Presidente da Assembleia da República, virtualmente ao abrigo de qualquer crítica, mas terá a ver, sim, com o acumular de tomadas de posição e declarações que Manuel Alegre tem vindo a produzir, protagonizando desse modo uma postura que se afasta da linha política oficial que Guterres chefia. Tem razão o deputado, ao falar dos ataques de que tem sido alvo, em afirmar que tais ataques não lhe serão dirigidos pessoalmente, mas sim àquilo que representa.

A origem da «crise» no interior do PS - e em seu redor, contando com todos os que, de algum modo, tendo votado socialista, pretendiam uma mudança à esquerda - é a tomada de consciência de que a política de Guterres, do seu Governo e da direcção do partido se orienta fortemente para a direita. A questão da revisão constitucional, cuja marcha forçada se está a concluir e promete, em resultado do acordo entre o PS e o PSD, à revelia das instâncias próprias da Assembleia da República, abrir perigosamente as portas a uma alteração profunda do regime político saído da Revolução de Abril, terá atingido como um calafrio alguns socialistas e actuado como detonador da «crise» latente que se verifica no partido de Guterres.

Por outro lado, pode dizer-se que, sobrevalorizando a questão de Vizela, cujas populações têm todo o direito a sentirem-se indignadas e em reclamarem a elevação da sua terra a concelho, sempre defendida pelo PCP, se vem desvalorizando o que de mais gravoso se tem passado na política portuguesa, cujo futuro o acordo de revisão PS/PSD pretende comprometer seriamente. Erigir Vizela em facto político primordial serve à maravilha aos que têm pretendido esconder o verdadeiro escândalo que é a revisão de direita que se pretende consumar.

A tomada de posição de numerosas personalidades, onde avultam nomes destacados da intelectualidade portuguesa, que vieram a público em defesa da democracia, dos direitos de cidadania e da Constituição - a que o nosso jornal dá hoje relevo -, pela abrangência ideológica da sua composição e pela advertência que faz ao partido maioritário, acusando-o de assumir como suas antigas exigências da direita e dos sectores mais conservadores da sociedade portuguesa, é um claro sinal do descontentamento quanto à orientação de direita que a direcção do Partido Socialista escolheu para singrar no poder.

Não foi certamente por acaso que tal tomada de posição mereceu o silêncio e a distracção dos mais importantes órgãos de comunicação social, onde persiste, entretanto, a querela que parece opôr exclusivamente Manuel Alegre à direcção do seu partido.

A participação de destacados socialistas em iniciativas de carácter unitário - como os antigos constituintes Helena Roseta, Marcelo Curto e Kalidás Barreto, que levantaram as suas vozes contra numerosos aspectos da revisão constitucional em curso, num debate promovido pela União dos Sindicatos de Lisboa - também mereceu silêncio, ou pelo menos bastante discrição, nos media.

A questão constitucional está - ou deveria estar e merecer a atenção de toda a comunicação social -, na ordem do dia. De facto, o que o concluio entre o PS e o PSD - com o PP em apêndice -, aglutinando toda a vontade da direita, pretende levar a cabo é coroar um longo processo de recuperação capitalista, latifundista e imperialista - expressão com que os comunistas caracterizaram o processo destrutivo das conquistas de Abril e que retomamos aqui, apesar de sabermos bem o quanto tal expressão irritou então os bem-pensantes que, desde Soares a Cavaco, apoiaram a destruição do que foram as traves mestras do regime democrático que Abril abriu.

O que a direita conseguiu - demorando mais de vinte anos, porque a esquerda (isto é, os trabalhadores, o povo, o PCP) se lhe opôs - não lhe basta. O final lógico deste processo de recuperação, iniciado pelo Partido Socialista há mais de duas décadas, é, de facto, a «reforma» do sistema político, que permita a eternização no poder dessa direita, hoje muito mais claramente identificada. O facto de o PS de Guterres colaborar nesta «reforma», pretendendo garantir o seu futuro na área do poder, em partilha com o PSD, prejudicando o sistema proporcional, com a perspectiva de afastar da representatividade democrática todos quantos se opõem à política de direita e ao enfeudamento às directivas de Maastricht, faz alinhar o PS, objectivamente, a par do PSD e do PP, no bloco que aspira a desnaturar o regime democrático e a não permitir que uma verdadeira alternativa, apostada no progresso e na justiça social, seja viável no País.

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