Suplemento Mil Folhas

07-09-2001
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Uma Poesia de Retorno

Por RITA TABORDA DUARTE

Sábado, 19 de Maio de 2001

"Livro do Português Errante", de Manuel Alegre representa um "eterno retorno", a muitos dos seus próprios lugares poéticos. Pressupondo um sujeito perdido num país miticamente recriado como lugar de partida e de adiado regresso.

A epígrafe do mais recente título de Manuel Alegre, "Livro do Português Errante", é retirada de "O Livro de Horas" de Rilke. Volvido um século sobre as palavras do poeta austríaco, as causas, motivações e expectativas do escritor português perante uma nova fractura finissecular serão, sem dúvida, diversas. No entanto, mantém-se actuante a mesma esperança angustiada dos versos que agora lembra no início do seu livro: "Vivo justamente ao expirar do século/(...) Sente-se o brilho duma nova página/ em que tudo pode acontecer".

Tendo em conta estas palavras iniciais que, embora remetam para uma exterioridade ao próprio texto, elaboram o contexto da obra, não será difícil pensar este novo livro como um duplo balanço tanto do próprio percurso poético do autor, como de um repensar do mundo, que em Alegre é sobretudo Portugal como refiguração mítica e construção poética.

Mas a presença de Rilke (mantida pelo menos desde as obras mais recentes) não se efectua somente por esta espécie de orientação inicial de leitura, mas por todo um modo de questionar a religiosidade, que não se faz pela ausência de Deus, mas pelo seu confronto, a partir de jogos de ironia no plano da linguagem e da discursibilidade. Aliás, o primeiro conjunto de poemas é dedicado quase exclusivamente a este processo que torna o Poeta como uma espécie de deus das palavras. É exemplo o poema "Metáforas": "As metáforas devoram as metáforas/ mas nunca ninguém dirá/ aqui/ ou/ ali./ porque o teu reino é no adverso e no inverso/ e só aí/ o vento o verbo um verso". Mas é de notar também a presença de outros com um carácter lúdico mais acentuado, como "O Buraco da Agulha" ("Vou de camelo pelo buraco de uma agulha/ vou de camelo e não encontro o reino"). Ou "A Perigosa Mão de Deus", que inclui indícios de contemporaneidade na referência a "Memorial do Convento" de José Saramago ("Deus é maneta/diz Saramago/ só tem a mão direita/ à direita da qual todos se sentam."), e recupera nas entrelinhas a noção de poeta.

Todo este conjunto poético enforma uma obra que recupera um passado para a partir daí compreender (ou não) um presente e traçar a previsão (desencantada) de um futuro. Por isso, talvez, as inevitáveis pontes do livro com alguns dos mais marcantes poemas de Alegre. Como o inevitável paralelo entre os "Poemas do Português Errante" (sete ao todo) e a sequência dos "Sonetos do Português Errante" de"Atlântico" (editado em 1981), ou esta "Canção do Tempo que Passa" cuja evidente ressonância da tão celebrada "Trova do Vento que Passa", imortalizada musicalmente por Adriano Correia de Oliveira não se faz só ao nível da semelhança de sonoridades, mas de um subtil (quase imperceptível) diálogo entre os dois textos.

Das mais diversas formas, o livro representa um "eterno retorno" (título de um poema). Um retorno a muitos dos seus próprios lugares poéticos, que implica a noção de errância, um sujeito perdido num país miticamente recriado como lugar de partida e de adiado regresso ("Lisboa é esta praça e esta viagem /esta partida mesma se parada"). Por isso se justifica e compreende a reiterada presença (que tem vindo a percorrer a poesia de Manuel Alegre) da figura de Ulisses, na qual muitas vezes se transfigura este sujeito poético em permanente busca de Ítaca, como lugar de repouso. Por outro lado, o retorno à insegurança, o pressentir de medos ocultos, de fantasmas ainda presentes, a incerteza face a uma História que nunca é só passado e que deixa um "gosto amargo do Mundo/ bebe-se um trago e fica um travo", como nos diz o poema " O Cravo e o Travo" que culmina na pergunta: " Se a História é interdita e não nos resta sequer a escrita/ que farei eu com este cravo?"

A marca distintiva da poesia de Manuel Alegre será a presença de uma voz que parece anteceder a poesia, um discurso declamatório com marcas de oralidade muito evidentes, e que se efectua sobretudo por um jogo repetitivo a orientar a cadência rítmica, mesmo musical, dos poemas. Eduardo Lourenço, no prefácio à obra comemorativa dos trinta anos da poesia do autor, escreve: "Não foi por acaso que muito cedo a poesia de Manuel Alegre se encarnou em música e canto. Por instinto inscreveu tendencialmente os seus poemas no horizonte simbólico e onírico da oralidade." No entanto, neste último livro, o retorno formal a algumas técnicas estílísticas que dão voz (quase no sentido literal) aos poemas são elevadas a um versilibrismo esgotado, como a exagerada repetição de vocábulos, a quase permanente estrutura anafórica, a rima interna, o uso excessivo de rima pobre, o jogo paronomásico, os sucessivos efeitos enumerativos, ou a estrutura paradoxal ou oximórica, que por vezes fazem quedar os poemas num procedimento quase exclusivamente rítmico.

Este esgotamento estilístico revela-se também em ecos de alguns versos anteriores, e que de certa forma são aqui refundidos ou recuperados na sua sonoridade. É o caso, por exemplo, do segundo poema de "Coração Polar" do anterior livro, "Senhora das Tempestades", onde encontramos a expressão "esse país onde tudo existe e não existe", cujo efeito é retomado nesta obra em parte do verso do "Sexto Poema do Português Errante": "(..) do país onde existes e não existes".

Uma Poesia de Retorno

Por RITA TABORDA DUARTE

Sábado, 19 de Maio de 2001

"Livro do Português Errante", de Manuel Alegre representa um "eterno retorno", a muitos dos seus próprios lugares poéticos. Pressupondo um sujeito perdido num país miticamente recriado como lugar de partida e de adiado regresso.

A epígrafe do mais recente título de Manuel Alegre, "Livro do Português Errante", é retirada de "O Livro de Horas" de Rilke. Volvido um século sobre as palavras do poeta austríaco, as causas, motivações e expectativas do escritor português perante uma nova fractura finissecular serão, sem dúvida, diversas. No entanto, mantém-se actuante a mesma esperança angustiada dos versos que agora lembra no início do seu livro: "Vivo justamente ao expirar do século/(...) Sente-se o brilho duma nova página/ em que tudo pode acontecer".

Tendo em conta estas palavras iniciais que, embora remetam para uma exterioridade ao próprio texto, elaboram o contexto da obra, não será difícil pensar este novo livro como um duplo balanço tanto do próprio percurso poético do autor, como de um repensar do mundo, que em Alegre é sobretudo Portugal como refiguração mítica e construção poética.

Mas a presença de Rilke (mantida pelo menos desde as obras mais recentes) não se efectua somente por esta espécie de orientação inicial de leitura, mas por todo um modo de questionar a religiosidade, que não se faz pela ausência de Deus, mas pelo seu confronto, a partir de jogos de ironia no plano da linguagem e da discursibilidade. Aliás, o primeiro conjunto de poemas é dedicado quase exclusivamente a este processo que torna o Poeta como uma espécie de deus das palavras. É exemplo o poema "Metáforas": "As metáforas devoram as metáforas/ mas nunca ninguém dirá/ aqui/ ou/ ali./ porque o teu reino é no adverso e no inverso/ e só aí/ o vento o verbo um verso". Mas é de notar também a presença de outros com um carácter lúdico mais acentuado, como "O Buraco da Agulha" ("Vou de camelo pelo buraco de uma agulha/ vou de camelo e não encontro o reino"). Ou "A Perigosa Mão de Deus", que inclui indícios de contemporaneidade na referência a "Memorial do Convento" de José Saramago ("Deus é maneta/diz Saramago/ só tem a mão direita/ à direita da qual todos se sentam."), e recupera nas entrelinhas a noção de poeta.

Todo este conjunto poético enforma uma obra que recupera um passado para a partir daí compreender (ou não) um presente e traçar a previsão (desencantada) de um futuro. Por isso, talvez, as inevitáveis pontes do livro com alguns dos mais marcantes poemas de Alegre. Como o inevitável paralelo entre os "Poemas do Português Errante" (sete ao todo) e a sequência dos "Sonetos do Português Errante" de"Atlântico" (editado em 1981), ou esta "Canção do Tempo que Passa" cuja evidente ressonância da tão celebrada "Trova do Vento que Passa", imortalizada musicalmente por Adriano Correia de Oliveira não se faz só ao nível da semelhança de sonoridades, mas de um subtil (quase imperceptível) diálogo entre os dois textos.

Das mais diversas formas, o livro representa um "eterno retorno" (título de um poema). Um retorno a muitos dos seus próprios lugares poéticos, que implica a noção de errância, um sujeito perdido num país miticamente recriado como lugar de partida e de adiado regresso ("Lisboa é esta praça e esta viagem /esta partida mesma se parada"). Por isso se justifica e compreende a reiterada presença (que tem vindo a percorrer a poesia de Manuel Alegre) da figura de Ulisses, na qual muitas vezes se transfigura este sujeito poético em permanente busca de Ítaca, como lugar de repouso. Por outro lado, o retorno à insegurança, o pressentir de medos ocultos, de fantasmas ainda presentes, a incerteza face a uma História que nunca é só passado e que deixa um "gosto amargo do Mundo/ bebe-se um trago e fica um travo", como nos diz o poema " O Cravo e o Travo" que culmina na pergunta: " Se a História é interdita e não nos resta sequer a escrita/ que farei eu com este cravo?"

A marca distintiva da poesia de Manuel Alegre será a presença de uma voz que parece anteceder a poesia, um discurso declamatório com marcas de oralidade muito evidentes, e que se efectua sobretudo por um jogo repetitivo a orientar a cadência rítmica, mesmo musical, dos poemas. Eduardo Lourenço, no prefácio à obra comemorativa dos trinta anos da poesia do autor, escreve: "Não foi por acaso que muito cedo a poesia de Manuel Alegre se encarnou em música e canto. Por instinto inscreveu tendencialmente os seus poemas no horizonte simbólico e onírico da oralidade." No entanto, neste último livro, o retorno formal a algumas técnicas estílísticas que dão voz (quase no sentido literal) aos poemas são elevadas a um versilibrismo esgotado, como a exagerada repetição de vocábulos, a quase permanente estrutura anafórica, a rima interna, o uso excessivo de rima pobre, o jogo paronomásico, os sucessivos efeitos enumerativos, ou a estrutura paradoxal ou oximórica, que por vezes fazem quedar os poemas num procedimento quase exclusivamente rítmico.

Este esgotamento estilístico revela-se também em ecos de alguns versos anteriores, e que de certa forma são aqui refundidos ou recuperados na sua sonoridade. É o caso, por exemplo, do segundo poema de "Coração Polar" do anterior livro, "Senhora das Tempestades", onde encontramos a expressão "esse país onde tudo existe e não existe", cujo efeito é retomado nesta obra em parte do verso do "Sexto Poema do Português Errante": "(..) do país onde existes e não existes".

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