Em defesa dos eléctricos de Lisboa

16-03-2002
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Prática contraria declarações oficiais

sobre os eléctricos em Lisboa

Turismo ou morte?

A administração da Carris, nomeada pelo Governo PS e com actuação concertada com responsáveis do PS na Câmara de Lisboa, quer avançar mais depressa na liquidação da rede de eléctricos. À falta de coragem para exporem as suas reais intenções, lançam a ideia de que os eléctricos só servem para passear turistas.

A polémica em torno do futuro dos eléctricos já vem de longe, teve um ponto extremo na tentativa de encerrar a carreira 18, durante o ano passado, e foi reacendida há dias, quando o presidente do conselho de administração da Carris reafirmou, num programa de televisão, que os utentes dos transportes devem pagar mais por um serviço com que estão muito insatisfeitos. Mais uma vez, Helder de Oliveira não se atreveu a reclamar publicamente o pagamento pelo Governo das indemnizações compensatórias, a preços actualizados.

Estes factos mereceram o pronto protesto do PCP, num comunicado da célula dos comunistas na Carris (ver pág. 8). Ao «Avante!», os camaradas António Morais, José Cordeiro e Vítor Pereira – membros do organismo de direcção do Sector de Transportes da Organização Regional de Lisboa do Partido.

«O Governo, a Câmara Municipal de Lisboa e a administração da Carris deviam tomar medidas para melhorar os transportes públicos na cidade», reclama António Morais. Controlador de tráfego, com 35 anos de trabalho na empresa, salienta que o défice não se deve apenas aos custos elevados de manutenção dos eléctricos mais antigos, «tem também a ver com os novos». Dá o exemplo da carreira 15, que liga a Praça da Figueira a Algés, e que poderia fazer o dobro das viagens, se tivesse a via livre.

José Cordeiro, que trabalha na Carris há 33 anos e é motorista, aponta a contradição entre o diagnóstico da administração e as medidas tomadas. «O problema dos eléctricos é a velocidade comercial, mas meteram o autocarro 60 pelo percurso do eléctrico 18, o que foi sobrecarregar ainda mais a via; assim, não dão velocidade comercial aos eléctricos» – protesta Cordeiro, que faz parte da Comissão de Trabalhadores da Carris.

Vítor Pereira – que, além de trabalhador da Carris há 19 anos, com a profissão de motorista, é também vogal da Junta de Freguesia da Ajuda – nota ainda que das medidas tomadas faz parte o corte do trajecto do «18» onde o eléctrico não perdia tempo. «Parece que é a Carris que define a política de transportes para Lisboa», desabafa, referindo que, apesar dos protestos populares ou de órgãos autárquicos (como uma moção aprovada na Assembleia Municipal, com apoio de todos os partidos), a empresa avança com cortes nos percursos, diminuição na frequência dos autocarros e eléctricos, redução das carreiras e alterações de horários (sobretudo nocturnos), que prejudicam muitos moradores. «A administração da Carris pede parecer ao vereador Machado Rodrigues, este pede às juntas de freguesia para se pronunciarem, mas isso tudo acaba por servir só para compor o ramalhete» das decisões da empresa, pois os pareceres não têm poder vinculativo.

Dirigente da Festru/CGTP, tal como Vítor Pereira, António Morais aponta o caso do Olival Basto como um caminho seguro para as populações defenderem os seus direitos. Ali foi há meses conquistado o alargamento das carreiras de autocarros 7, 36 e 101. Foi também a luta das populações da Ajuda e de Alcântara que impediu a liquidação do «18».

É igualmente esse o caminho defendido pelos comunistas junto dos trabalhadores da Carris, que exigem modificações sérias na política e na gestão da empresa e recusam pagar os custos de opções políticas que já fizeram prejuízos bastantes na antiga Rodoviária Nacional – exemplo sempre presente quando se fala de ataques a empresas prestadoras de serviços públicos essenciais para as entregar a interesses privados. Também poderá ser a preparação da privatização o objectivo que faz correr quem manda na Carris. Nesse quadro, o interesse turístico seria apenas um passo para que os eléctricos de Lisboa deixassem de estar ao serviço da população.

Números calados Por muito esforço que se faça, os números da Carris não falam por si: nem apontam responsabilidades pelo actual estado da empresa, nem mostram alguns «pormenores» que não são de menosprezar.

Segundo o presidente do Conselho de Administração, a Carris registou em 1999 um défice global de 16 milhões de contos antes de indemnizações compensatórias e de resultados extraordinários. Pelas contas da Festru/CGTP, as referidas indemnizações compensatórias foram, naquele ano, de cerca de 4 milhões de contos, mas, como os valores não são actualizados desde 1986, ficaram por pagar mais 11 milhões.

Daquele défice, refere ainda a administração, a exploração dos eléctricos (históricos e modernos) é responsável por 2,4 milhões de contos; o restante, cerca de 85 por cento, é atribuído à exploração de autocarros.

No mesmo ano, a Carris transportou 355 milhões de passageiros: 329 em autocarros (92,7 por cento) e 22 em eléctricos (6,2 por cento), restando 4 milhões que utilizaram elevadores e ascensores. Em média, cada passageiro propiciou à empresa uma receita de 36$20, nos eléctricos, e 37$72, nos autocarros; o custo médio do transporte foi, respectivamente, de 140 e 60 escudos.

«Se não existisse» a rede de eléctricos, como diz a administração, o défice anual poderia ser inferior em cerca de 2 milhões de contos. Também calcula que, por cada quilómetro/hora que consiga acrescentar à velocidade comercial, poderia poupar cerca de um milhão de contos. No entanto, não se nota uma preocupação tão forte com medidas e propostas que aumentem realmente a velocidade comercial. O que parece importar, sobretudo, é a redução do pessoal e dos encargos salariais, o corte nas carreiras e o aumento do tempo de espera dos passageiros.

Intenções escondidas...

com declarações de fora

Governo, administração da Carris e responsáveis municipais são os detentores das responsabilidades determinantes na definição e concretização de uma política de transportes para a cidade de Lisboa. Não é por assumirem todos a pertença ao partido «rosa» que os utentes e os trabalhadores da Carris sofrem no dia-a-dia os efeitos de uma situação caracterizada em tons bastante negros.

A diferença está, sobretudo, na contradição entre o «rosa» das intenções declaradas e o «negro» das decisões tomadas. Mesmo assim, algumas declarações públicas têm confirmado que há motivos para sérias preocupações.

Mais cultura

do que serviço

Os argumentos da administração foram expostos com significativa clareza num comunicado de Fevereiro do ano passado e, no final de Novembro, num ofício distribuído aos grupos parlamentares.

Para o CA, o encerramento da carreira 18 e outras medidas encetadas justificam-se «face à carência de meios financeiros que possam satisfazer os custos com meios cujo objecto é de natureza eminentemente cultural e turística». Uns parágrafos antes, já tinha escrito que «a exploração, na perspectiva da sobrevivência dos eléctricos históricos, deverá ser encarada como defesa de um elemento portador da história e da emoção da Cidade, para a qual contribui mais como elemento de cultura e de lazer, do que como forma eficiente de assegurar o transporte dos cidadãos». A intenção é sublinhada como a alegada situação «a nível europeu, onde, face aos custos de exploração envolvidos e aos proveitos diminutos conseguidos, as redes de eléctrico histórico só permanecem como atracção turística, exigindo que os respectivos utilizadores paguem tarifas que nada têm a ver com as que são pagas pelos normais utilizadores das redes de transporte público urbano».

A administração da Carris insurge-se contra «alguns», que «confundiram eléctricos históricos com eléctricos articulados», mas faz esta confusão logo no início do seu comunicado, ao afirmar que «Lisboa dispõe, desde 1901, de uma rede de eléctricos que hoje apelidamos de eléctricos históricos», quando a linha inaugurada em 31 de Agosto de 1901 foi precisamente a ligação do Cais do Sodré a Algés, hoje parte da carreira 15, a única onde circulam os eléctricos articulados.

No comunicado que divulgou em Fevereiro, a Carris atribui à rede de «eléctricos históricos» a responsabilidade por «um agravamento substancial» do défice anual da empresa e refere que são precisos «investimentos significativos na linha». Além de acabar com o «18» – no quadro de uma redução da rede «para dimensões que sejam compatíveis com encargos razoáveis de exploração e privilegiando como área de intervenção o centro histórico da Cidade» –, a administração de Helder de Oliveira quer ainda «solicitar à comunidade, à sociedade civil, uma maior contribuição financeira, para que esta se empenhe na prática na defesa do que considera um património colectivo de indiscutível valor histórico, cultural e artístico».

Em carta ao presidente da Junta de Freguesia de Alcântara, o homem que Jorge Coelho colocou à frente da Carris vai ainda mais longe, questionando: «que legitimidade poderão ter os protestos de amor, quando não se está disponível para fazer qualquer sacrifício pela "cousa amada"?».

Se isto era dito em Agosto, no final de Novembro, em ofício ao secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Helder de Oliveira afirma já, preto no branco, que «a sociedade civil não deveria apenas reivindicar a continuidade do eléctrico», mas «também contribuir activamente e especificamente para a sua defesa, promovendo para tanto propostas que permitam um ligeiro acréscimo do tarifário do transporte público, destinado a financiar parcialmente o "déficit" do eléctrico».

«Avante!» Nº 1416 - 18.Janeiro.2001

Prática contraria declarações oficiais

sobre os eléctricos em Lisboa

Turismo ou morte?

A administração da Carris, nomeada pelo Governo PS e com actuação concertada com responsáveis do PS na Câmara de Lisboa, quer avançar mais depressa na liquidação da rede de eléctricos. À falta de coragem para exporem as suas reais intenções, lançam a ideia de que os eléctricos só servem para passear turistas.

A polémica em torno do futuro dos eléctricos já vem de longe, teve um ponto extremo na tentativa de encerrar a carreira 18, durante o ano passado, e foi reacendida há dias, quando o presidente do conselho de administração da Carris reafirmou, num programa de televisão, que os utentes dos transportes devem pagar mais por um serviço com que estão muito insatisfeitos. Mais uma vez, Helder de Oliveira não se atreveu a reclamar publicamente o pagamento pelo Governo das indemnizações compensatórias, a preços actualizados.

Estes factos mereceram o pronto protesto do PCP, num comunicado da célula dos comunistas na Carris (ver pág. 8). Ao «Avante!», os camaradas António Morais, José Cordeiro e Vítor Pereira – membros do organismo de direcção do Sector de Transportes da Organização Regional de Lisboa do Partido.

«O Governo, a Câmara Municipal de Lisboa e a administração da Carris deviam tomar medidas para melhorar os transportes públicos na cidade», reclama António Morais. Controlador de tráfego, com 35 anos de trabalho na empresa, salienta que o défice não se deve apenas aos custos elevados de manutenção dos eléctricos mais antigos, «tem também a ver com os novos». Dá o exemplo da carreira 15, que liga a Praça da Figueira a Algés, e que poderia fazer o dobro das viagens, se tivesse a via livre.

José Cordeiro, que trabalha na Carris há 33 anos e é motorista, aponta a contradição entre o diagnóstico da administração e as medidas tomadas. «O problema dos eléctricos é a velocidade comercial, mas meteram o autocarro 60 pelo percurso do eléctrico 18, o que foi sobrecarregar ainda mais a via; assim, não dão velocidade comercial aos eléctricos» – protesta Cordeiro, que faz parte da Comissão de Trabalhadores da Carris.

Vítor Pereira – que, além de trabalhador da Carris há 19 anos, com a profissão de motorista, é também vogal da Junta de Freguesia da Ajuda – nota ainda que das medidas tomadas faz parte o corte do trajecto do «18» onde o eléctrico não perdia tempo. «Parece que é a Carris que define a política de transportes para Lisboa», desabafa, referindo que, apesar dos protestos populares ou de órgãos autárquicos (como uma moção aprovada na Assembleia Municipal, com apoio de todos os partidos), a empresa avança com cortes nos percursos, diminuição na frequência dos autocarros e eléctricos, redução das carreiras e alterações de horários (sobretudo nocturnos), que prejudicam muitos moradores. «A administração da Carris pede parecer ao vereador Machado Rodrigues, este pede às juntas de freguesia para se pronunciarem, mas isso tudo acaba por servir só para compor o ramalhete» das decisões da empresa, pois os pareceres não têm poder vinculativo.

Dirigente da Festru/CGTP, tal como Vítor Pereira, António Morais aponta o caso do Olival Basto como um caminho seguro para as populações defenderem os seus direitos. Ali foi há meses conquistado o alargamento das carreiras de autocarros 7, 36 e 101. Foi também a luta das populações da Ajuda e de Alcântara que impediu a liquidação do «18».

É igualmente esse o caminho defendido pelos comunistas junto dos trabalhadores da Carris, que exigem modificações sérias na política e na gestão da empresa e recusam pagar os custos de opções políticas que já fizeram prejuízos bastantes na antiga Rodoviária Nacional – exemplo sempre presente quando se fala de ataques a empresas prestadoras de serviços públicos essenciais para as entregar a interesses privados. Também poderá ser a preparação da privatização o objectivo que faz correr quem manda na Carris. Nesse quadro, o interesse turístico seria apenas um passo para que os eléctricos de Lisboa deixassem de estar ao serviço da população.

Números calados Por muito esforço que se faça, os números da Carris não falam por si: nem apontam responsabilidades pelo actual estado da empresa, nem mostram alguns «pormenores» que não são de menosprezar.

Segundo o presidente do Conselho de Administração, a Carris registou em 1999 um défice global de 16 milhões de contos antes de indemnizações compensatórias e de resultados extraordinários. Pelas contas da Festru/CGTP, as referidas indemnizações compensatórias foram, naquele ano, de cerca de 4 milhões de contos, mas, como os valores não são actualizados desde 1986, ficaram por pagar mais 11 milhões.

Daquele défice, refere ainda a administração, a exploração dos eléctricos (históricos e modernos) é responsável por 2,4 milhões de contos; o restante, cerca de 85 por cento, é atribuído à exploração de autocarros.

No mesmo ano, a Carris transportou 355 milhões de passageiros: 329 em autocarros (92,7 por cento) e 22 em eléctricos (6,2 por cento), restando 4 milhões que utilizaram elevadores e ascensores. Em média, cada passageiro propiciou à empresa uma receita de 36$20, nos eléctricos, e 37$72, nos autocarros; o custo médio do transporte foi, respectivamente, de 140 e 60 escudos.

«Se não existisse» a rede de eléctricos, como diz a administração, o défice anual poderia ser inferior em cerca de 2 milhões de contos. Também calcula que, por cada quilómetro/hora que consiga acrescentar à velocidade comercial, poderia poupar cerca de um milhão de contos. No entanto, não se nota uma preocupação tão forte com medidas e propostas que aumentem realmente a velocidade comercial. O que parece importar, sobretudo, é a redução do pessoal e dos encargos salariais, o corte nas carreiras e o aumento do tempo de espera dos passageiros.

Intenções escondidas...

com declarações de fora

Governo, administração da Carris e responsáveis municipais são os detentores das responsabilidades determinantes na definição e concretização de uma política de transportes para a cidade de Lisboa. Não é por assumirem todos a pertença ao partido «rosa» que os utentes e os trabalhadores da Carris sofrem no dia-a-dia os efeitos de uma situação caracterizada em tons bastante negros.

A diferença está, sobretudo, na contradição entre o «rosa» das intenções declaradas e o «negro» das decisões tomadas. Mesmo assim, algumas declarações públicas têm confirmado que há motivos para sérias preocupações.

Mais cultura

do que serviço

Os argumentos da administração foram expostos com significativa clareza num comunicado de Fevereiro do ano passado e, no final de Novembro, num ofício distribuído aos grupos parlamentares.

Para o CA, o encerramento da carreira 18 e outras medidas encetadas justificam-se «face à carência de meios financeiros que possam satisfazer os custos com meios cujo objecto é de natureza eminentemente cultural e turística». Uns parágrafos antes, já tinha escrito que «a exploração, na perspectiva da sobrevivência dos eléctricos históricos, deverá ser encarada como defesa de um elemento portador da história e da emoção da Cidade, para a qual contribui mais como elemento de cultura e de lazer, do que como forma eficiente de assegurar o transporte dos cidadãos». A intenção é sublinhada como a alegada situação «a nível europeu, onde, face aos custos de exploração envolvidos e aos proveitos diminutos conseguidos, as redes de eléctrico histórico só permanecem como atracção turística, exigindo que os respectivos utilizadores paguem tarifas que nada têm a ver com as que são pagas pelos normais utilizadores das redes de transporte público urbano».

A administração da Carris insurge-se contra «alguns», que «confundiram eléctricos históricos com eléctricos articulados», mas faz esta confusão logo no início do seu comunicado, ao afirmar que «Lisboa dispõe, desde 1901, de uma rede de eléctricos que hoje apelidamos de eléctricos históricos», quando a linha inaugurada em 31 de Agosto de 1901 foi precisamente a ligação do Cais do Sodré a Algés, hoje parte da carreira 15, a única onde circulam os eléctricos articulados.

No comunicado que divulgou em Fevereiro, a Carris atribui à rede de «eléctricos históricos» a responsabilidade por «um agravamento substancial» do défice anual da empresa e refere que são precisos «investimentos significativos na linha». Além de acabar com o «18» – no quadro de uma redução da rede «para dimensões que sejam compatíveis com encargos razoáveis de exploração e privilegiando como área de intervenção o centro histórico da Cidade» –, a administração de Helder de Oliveira quer ainda «solicitar à comunidade, à sociedade civil, uma maior contribuição financeira, para que esta se empenhe na prática na defesa do que considera um património colectivo de indiscutível valor histórico, cultural e artístico».

Em carta ao presidente da Junta de Freguesia de Alcântara, o homem que Jorge Coelho colocou à frente da Carris vai ainda mais longe, questionando: «que legitimidade poderão ter os protestos de amor, quando não se está disponível para fazer qualquer sacrifício pela "cousa amada"?».

Se isto era dito em Agosto, no final de Novembro, em ofício ao secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, Helder de Oliveira afirma já, preto no branco, que «a sociedade civil não deveria apenas reivindicar a continuidade do eléctrico», mas «também contribuir activamente e especificamente para a sua defesa, promovendo para tanto propostas que permitam um ligeiro acréscimo do tarifário do transporte público, destinado a financiar parcialmente o "déficit" do eléctrico».

«Avante!» Nº 1416 - 18.Janeiro.2001

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