Um quadro negro

24-04-2001
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Em França, a língua portuguesa está claramente em recessão. É lá que um grupo de deputados inicia uma visita por vários países da Europa

Entretanto, os deputados estão a recolher dados junto de sindicatos, ministérios com tutela nesta área, governos autónomos e entidades que suportam o ensino da língua no estrangeiro. O grupo de trabalho apresentará, provavelmente em Junho, um relatório à AR, que será precedido de um debate sobre o tema.

Sem política da língua

Na raiz desta iniciativa está, segundo Luiz Fagundes Duarte, deputado do PS e membro do grupo de trabalho, a percepção de que «Portugal nunca desenvolveu uma política do ensino da língua no estrangeiro».

Mas não só: «Portugal nunca foi capaz de definir, e muito menos de pôr em prática, uma política do Estado para a Língua Portuguesa», disse Fagundes Duarte, num encontro do Sindicato dos Professores no Estrangeiro em Maio deste ano, em Paris.

Antes da partida para a capital francesa, o deputado fez ao EXPRESSO um diagnóstico sumário e geral de informações recolhidas até ao momento: «Há falta de materiais didácticos, professores sem qualificação, as comunidades queixam-se de falta de apoio». Impressões que o próprio já avançara em Paris: «Nunca se construíram gramáticas, dicionários e manuais de aprendizagem; nunca se formaram, a sério, e nunca se valorizaram professores; nunca se criaram verdadeiros centros culturais que promovam a língua como um universo cultural».

Esta última questão é fundamental, a avaliar pelo que diz João Machado, membro do conselho da comunidade portuguesa de França, quando se refere ao papel do português: «O estatuto da língua de emigrante leva os directores das escolas a afastarem a ideia de que o português possa ser uma língua viva necessária para o futuro profissional dos alunos». José Cesário, deputado do PSD que propôs a criação do grupo de trabalho, afirma: «Falamos de um sector esquecido pelo Estado há décadas e que representa oito milhões de contos num orçamento de mais de 1300 milhões de contos».

Fagundes Duarte afirma que nunca foi possível saber com rigor em que condições o ensino do português é feito no mundo, quantas pessoas falam ou aprendem a língua fora de Portugal, em quantos países e em quantas escolas, saber se o número dos que querem aprender diminui, aumenta ou se mantém, que materiais didácticos e bibliotecas existem, qual é a situação laboral dos docentes e que estatuto lhes é reconhecido no país de acolhimento.

Na verdade, mais do que saber com rigor, «nunca houve a mínima ideia do que se passa».

O peso dos números

Ana Benavente, secretária de Estado da Educação - que tutela a área do ensino do português no estrangeiro nos anos do secundário -, considera um «exagero» as críticas feitas à falta de materiais didácticos porque «há bastante trabalho feito». Mas concorda que, de um modo geral, o modelo do ensino da língua é «um pouco desolador».

A secretaria de Estado das Comunidades também está a proceder a um inquérito sobre o ensino junto das comunidades portuguesas no mundo. João Machado, em França - um país que é um barómetro nesta questão devido ao milhão de portugueses ali radicados - faz um relatório assustador, no seguimento do inquérito: «A situação da nossa língua tornou-se numa caricatura», diz, e avança números para o ensino secundário: em 99, havia 11.425 alunos a aprender português, mas 1 milhão 735 mil a aprender espanhol, 135 mil o italiano e 16 mil o russo. «O Governo francês limita-se a fechar os cursos 'inviáveis' no secundário. Os professores perderam as ilusões. (...) Em regiões como Champigny-sur-Marne, bastião da comunidade portuguesa, a nossa língua começa a tornar-se rara».

Em menos de duas décadas verificou-se um decréscimo de 80% nos alunos a aprender português em França: 55.300 em 1983, contra os 11.525 no ano passado. Mas, perante esta descida abrupta, «nas regiões onde os professores são activos, inovadores e militantes da língua, o número de alunos aumenta rapidamente», afirma João Machado. Recorde-se que, em França, o português só é ensinado por professores portugueses até à quarta classe. De acordo com dados do ME, a rede oficial tinha, em todo o mundo, 2732 cursos, 671 professores e 60 mil alunos, no ano lectivo passado.

João Machado confirma as palavras dos deputados. Fala da «ausência de uma verdadeira política sobre o ensino na emigração dos sucessivos governos portugueses», que veio acelerar «um processo 'natural' de desaparecimento do português».

Diz que os professores nunca tiveram formação específica e que o Instituto Camões, «vocacionado para promover a nossa língua e cultura, nunca saiu da cepa torta (...) Durante 10 anos, salvo rara excepção, nunca nada de vulto ousou ou realizou». Por outro lado, «sempre foi extremamente difícil obter uma estatística da situação do ensino em França».

O responsável destaca, ainda, o desaproveitamento dos «media» portugueses, RTPI e rádios: «Não informam, não aconselham e, sobretudo, não alertam a nossa comunidade para o estado do ensino em França». Mas os problemas do ensino do português no estrangeiro são comuns a outros países.

Um caso exemplar

Teresa Soares foi recentemente colocada na Suíça depois de 20 anos a leccionar na Alemanha - os 70 alunos que tinha ficaram, de repente, sem aulas de português. É uma das professoras envolvida num processo que dura há dois anos. Em três estados (Renânia/Vestefália, Hessen e Baixa Saxónia), 23 professores portugueses deixaram de ser pagos pelo ME desde então.

Nesses estados, os professores de português, apesar de destacados e parcialmente pagos pelo ME, estavam integrados na rede alemã de ensino e tinham contrato com as autoridades alemãs, que lhes pagavam parte do salário.

O ME instruiu os professores a rescindir os contratos com as autoridades alemãs, com o objectivo de abrir os lugares a concurso, tal como acontece em todos os países da Europa e nas áreas consulares de Estugarda e Hamburgo. Um despacho do ME, de 98, reconhece que os cursos de língua e cultura portuguesas são «da iniciativa e total responsabilidade do Estado português». Ao mesmo tempo, diz que o ensino do português no estrangeiro «não se confina a este modelo» e que há «outras realidades de ensino cuja dinâmica, orientações e encargos decorrem de entidades locais». Nesse despacho, o ME «autorizou» a requisição dos professores pelas autoridades locais «sem quaisquer encargos para o Estado português». O que não seria possível: os professores não podiam ser requisitados porque tinham e têm contrato com os ministérios dos estados alemães. Mas passaram a ganhar apenas o complemento de salário que estes lhes pagam. Teresa Soares afirma ter deixado de receber, nestes dois anos, mais de sete mil contos.

Para esta professora, o que está em causa é a «progressiva destruição do ensino do português e a desresponsabilização do Estado, que quer reduzir as despesas nesta área». Ana Benavente afirma que se deve lutar para que, cada vez mais, sejam as autoridades locais a pagar o ensino da língua portuguesa.

ANTÓNIO HENRIQUES

Em França, a língua portuguesa está claramente em recessão. É lá que um grupo de deputados inicia uma visita por vários países da Europa

Entretanto, os deputados estão a recolher dados junto de sindicatos, ministérios com tutela nesta área, governos autónomos e entidades que suportam o ensino da língua no estrangeiro. O grupo de trabalho apresentará, provavelmente em Junho, um relatório à AR, que será precedido de um debate sobre o tema.

Sem política da língua

Na raiz desta iniciativa está, segundo Luiz Fagundes Duarte, deputado do PS e membro do grupo de trabalho, a percepção de que «Portugal nunca desenvolveu uma política do ensino da língua no estrangeiro».

Mas não só: «Portugal nunca foi capaz de definir, e muito menos de pôr em prática, uma política do Estado para a Língua Portuguesa», disse Fagundes Duarte, num encontro do Sindicato dos Professores no Estrangeiro em Maio deste ano, em Paris.

Antes da partida para a capital francesa, o deputado fez ao EXPRESSO um diagnóstico sumário e geral de informações recolhidas até ao momento: «Há falta de materiais didácticos, professores sem qualificação, as comunidades queixam-se de falta de apoio». Impressões que o próprio já avançara em Paris: «Nunca se construíram gramáticas, dicionários e manuais de aprendizagem; nunca se formaram, a sério, e nunca se valorizaram professores; nunca se criaram verdadeiros centros culturais que promovam a língua como um universo cultural».

Esta última questão é fundamental, a avaliar pelo que diz João Machado, membro do conselho da comunidade portuguesa de França, quando se refere ao papel do português: «O estatuto da língua de emigrante leva os directores das escolas a afastarem a ideia de que o português possa ser uma língua viva necessária para o futuro profissional dos alunos». José Cesário, deputado do PSD que propôs a criação do grupo de trabalho, afirma: «Falamos de um sector esquecido pelo Estado há décadas e que representa oito milhões de contos num orçamento de mais de 1300 milhões de contos».

Fagundes Duarte afirma que nunca foi possível saber com rigor em que condições o ensino do português é feito no mundo, quantas pessoas falam ou aprendem a língua fora de Portugal, em quantos países e em quantas escolas, saber se o número dos que querem aprender diminui, aumenta ou se mantém, que materiais didácticos e bibliotecas existem, qual é a situação laboral dos docentes e que estatuto lhes é reconhecido no país de acolhimento.

Na verdade, mais do que saber com rigor, «nunca houve a mínima ideia do que se passa».

O peso dos números

Ana Benavente, secretária de Estado da Educação - que tutela a área do ensino do português no estrangeiro nos anos do secundário -, considera um «exagero» as críticas feitas à falta de materiais didácticos porque «há bastante trabalho feito». Mas concorda que, de um modo geral, o modelo do ensino da língua é «um pouco desolador».

A secretaria de Estado das Comunidades também está a proceder a um inquérito sobre o ensino junto das comunidades portuguesas no mundo. João Machado, em França - um país que é um barómetro nesta questão devido ao milhão de portugueses ali radicados - faz um relatório assustador, no seguimento do inquérito: «A situação da nossa língua tornou-se numa caricatura», diz, e avança números para o ensino secundário: em 99, havia 11.425 alunos a aprender português, mas 1 milhão 735 mil a aprender espanhol, 135 mil o italiano e 16 mil o russo. «O Governo francês limita-se a fechar os cursos 'inviáveis' no secundário. Os professores perderam as ilusões. (...) Em regiões como Champigny-sur-Marne, bastião da comunidade portuguesa, a nossa língua começa a tornar-se rara».

Em menos de duas décadas verificou-se um decréscimo de 80% nos alunos a aprender português em França: 55.300 em 1983, contra os 11.525 no ano passado. Mas, perante esta descida abrupta, «nas regiões onde os professores são activos, inovadores e militantes da língua, o número de alunos aumenta rapidamente», afirma João Machado. Recorde-se que, em França, o português só é ensinado por professores portugueses até à quarta classe. De acordo com dados do ME, a rede oficial tinha, em todo o mundo, 2732 cursos, 671 professores e 60 mil alunos, no ano lectivo passado.

João Machado confirma as palavras dos deputados. Fala da «ausência de uma verdadeira política sobre o ensino na emigração dos sucessivos governos portugueses», que veio acelerar «um processo 'natural' de desaparecimento do português».

Diz que os professores nunca tiveram formação específica e que o Instituto Camões, «vocacionado para promover a nossa língua e cultura, nunca saiu da cepa torta (...) Durante 10 anos, salvo rara excepção, nunca nada de vulto ousou ou realizou». Por outro lado, «sempre foi extremamente difícil obter uma estatística da situação do ensino em França».

O responsável destaca, ainda, o desaproveitamento dos «media» portugueses, RTPI e rádios: «Não informam, não aconselham e, sobretudo, não alertam a nossa comunidade para o estado do ensino em França». Mas os problemas do ensino do português no estrangeiro são comuns a outros países.

Um caso exemplar

Teresa Soares foi recentemente colocada na Suíça depois de 20 anos a leccionar na Alemanha - os 70 alunos que tinha ficaram, de repente, sem aulas de português. É uma das professoras envolvida num processo que dura há dois anos. Em três estados (Renânia/Vestefália, Hessen e Baixa Saxónia), 23 professores portugueses deixaram de ser pagos pelo ME desde então.

Nesses estados, os professores de português, apesar de destacados e parcialmente pagos pelo ME, estavam integrados na rede alemã de ensino e tinham contrato com as autoridades alemãs, que lhes pagavam parte do salário.

O ME instruiu os professores a rescindir os contratos com as autoridades alemãs, com o objectivo de abrir os lugares a concurso, tal como acontece em todos os países da Europa e nas áreas consulares de Estugarda e Hamburgo. Um despacho do ME, de 98, reconhece que os cursos de língua e cultura portuguesas são «da iniciativa e total responsabilidade do Estado português». Ao mesmo tempo, diz que o ensino do português no estrangeiro «não se confina a este modelo» e que há «outras realidades de ensino cuja dinâmica, orientações e encargos decorrem de entidades locais». Nesse despacho, o ME «autorizou» a requisição dos professores pelas autoridades locais «sem quaisquer encargos para o Estado português». O que não seria possível: os professores não podiam ser requisitados porque tinham e têm contrato com os ministérios dos estados alemães. Mas passaram a ganhar apenas o complemento de salário que estes lhes pagam. Teresa Soares afirma ter deixado de receber, nestes dois anos, mais de sete mil contos.

Para esta professora, o que está em causa é a «progressiva destruição do ensino do português e a desresponsabilização do Estado, que quer reduzir as despesas nesta área». Ana Benavente afirma que se deve lutar para que, cada vez mais, sejam as autoridades locais a pagar o ensino da língua portuguesa.

ANTÓNIO HENRIQUES

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