Exílio em Hollywood

02-12-2000
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Exílio em Hollywood

Luís Rodrigues

NÃO é preciso ir a todas para perceber que o acontecimento musical da semana foi a apresentação de The Hollywood Songbook de Hanns Eisler (1898-1962) por Luís Rodrigues e Nuno Vieira de Almeida no Salão das Oratórias do Teatro de S. Carlos no passado dia 25. Uma primeira audição em Portugal duma obra importante (1937-43), para mais no género difícil do «Lied», é sempre de saudar; quando, como neste caso, a realização é boa, o regozijo é enorme. A re-descoberta deste Cancioneiro de Eisler deve-se à recente gravação da Decca com Matthias Görne e Eric Schneider (parte da série da «Entartete Musik»). A propósito: o texto do programa do S. Carlos, assinado por Ivan Moody, é, com excepção do primeiro parágrafo, uma tradução integral, palavra a palavra, do texto de Albrecht Dümling que acompanha a gravação. A origem não é, obviamente, mencionada. Trata-se dum roubo e dum crime punível por lei. A que se chegou! O Hollywood Songbook é um cancioneiro de saudade, uma elegia quântica a várias pátrias distantes, um libelo de exílio. A atmosfera é terminal, com óbvias aproximações ao Winterreise de Franz Schubert. A maior parte dos 46 textos são poemas de Bertolt Brecht (28), mas há fragmentos de Friedrich Hölderlin, poesias de J. W. von Goethe, Joseph von Eichendorff, Berthold Viertel e do próprio Eisler, tranchas do Anacreonte de Eduard Mörike, pensamentos de Blaise Pascal, palavras da Bíblia. Muitos dos poemas de Brecht são poemas-coisas sobre coisas (no sentido dos «Dinggedichte» de Rainer Maria Rilke) - as coisas singelas com que partilhamos a nossa vida, em risco de se perderem esmagadas pela guerra ou pelo avanço das tecnologias. Para os intérpretes, uma das dificuldades interpretativas está neste carácter discreto e fragmentário, tanto mais que apenas seis das canções ultrapassam os dois minutos! Na gravação, Görne resolveu genialmente este problema, adoptando um tom coloquial, quase naturalmente falado, às vezes ciciado, mas sempre colorido por uma paleta admirável. Luís Rodrigues não é um miniaturista e não tem (ainda) ao seu alcance uma tal expressividade dinâmica (não lhe é fácil apianar depois dos fortes), mas encontrou a sua própria maneira, mais directa e cantada, igualmente honesta. Tem um timbre viril, a voz sobe bem, está de boa saúde e foi magnificamente acompanhado por Nuno Vieira de Almeida.

Nuno Vieira de Almeida

O Eisler deste Cancioneiro já não é o discípulo de Schoenberg nem o realista social a compor cancões para as massas de trabalhadores. É o microscopista (fora também aluno de Webern) que não desdenha o poder expressivo duma frase melódica. Cabem às introduções e codas do piano alguns dos apontamentos mais memoráveis (por exemplo, logo nas duas primeiras, «Der Sohn» ou no «Hotelzimmer 1942») e o papel do piano, aqui percutivo e obstinado, ali monótono e agarrado ao rame-rame da vida, hesitante e sincopado mais adiante, acolá dramático, é sempre fulcral. Vieira de Almeida dobrava por música as histórias dos poemas. O aparentemente simples mas na realidade difícil «Über den Selbstmord» (Sobre o suicídio) foi bastante bem construído (com Rodrigues a debitar o «das ist gefährlich» em expressivo «Sprechstimme» e a fazer bem o contraste insuportável entre as duas palavras finais, «Leben fort» - uma piano, a última fortíssimo). O ápice do ciclo são as «Fünf Elegien» sobre poemas de Brecht, retratando Los Angeles e Hollywood. O magneto artístico do cinema era irresistível, e aqui convergiram, nos anos 30, escritores e músicos, cineastas e actores. Fugidos na maior parte ao nazismo, viam em Hollywood o novo Eldorado: Thomas Mann e Franz Werfel, Arnold Schoenberg e Erich Korngold, Max Rheinhardt e Fritz Lang, Billy Wilder e Marlene Dietrich, etc - a lista é impressionante. Brecht e Eisler foram mais dois (outros, como Kurt Weill, fixaram-se na costa oriental). Na quarta elegia Brecht declara que Hollywood é, para os desafortunados e destitutos, um paraíso transformado em inferno (o que seria então a Alemanha nazi?). Eisler altera significativamente os textos de quando em vez, e aqui «Die Stadt Hollywood» passa a ser simplesmente «Diese Stadt». Luís Rodrigues e Vieira de Almeida deram-nos belas versões dos «Fragmentos» do Anacreonte e de Hölderlin. O segundo fragmento do poema de Mörike, sobre as saudades da pátria, foi particularmente bem conseguido, tal como o III e V de Hölderlin também encontraram o barítono em boa forma, usando a voz em pleno, tomando riscos (o II, «Andenken», leva-o ao limite do registo agudo). A parceria funcionou igualmente bem em coisas simples como o «Vom Sprengen des Gartens» (Como regar o jardim), eminentemente cantável, como uma quadra popular, ou mesmo o «Frühling» (belo falsete sobre «verschwimmt»/indistintos). Na II das «5 Elegias», Rodrigues brindou-nos com com um etéreo «Engeln» (os anjos que dão o nome à cidade, L.A.). O que falta? Rodagem, muita rodagem. O cantor ainda não sabe valorizar as consoantes alemãs e a pronúncia do inglês é também pouco idiomática. Impõe-se fazer circular este recital pelo país. Para que serve, afinal, um Teatro Nacional de Ópera onde o canto deve ser supremo, ou a recuperação de velhos teatros e cinemas por esse país fora? Não há público para Eisler e Brecht? Não brinquem, que o público faz-se. O Hollywood Songbook está mesmo a pedir contaminações com as outras artes, conversa com o público, etc, para cortar aquela convenção rotineira do intervalo, fumaças, fatos escuros e intérpretes muito sérios e compenetrados. Para mais, Nuno Vieira de Almeida já demonstrou que é capaz de animar criativamente os recitais e combinar formas. Lembram-se de Le Travail du Peintre e quejandos? Não há dinheiro? Bom, para que serve um ministério da cultura se não para encorajar os riscos? Vamos a isso. JORGE CALADO

Exílio em Hollywood

Luís Rodrigues

NÃO é preciso ir a todas para perceber que o acontecimento musical da semana foi a apresentação de The Hollywood Songbook de Hanns Eisler (1898-1962) por Luís Rodrigues e Nuno Vieira de Almeida no Salão das Oratórias do Teatro de S. Carlos no passado dia 25. Uma primeira audição em Portugal duma obra importante (1937-43), para mais no género difícil do «Lied», é sempre de saudar; quando, como neste caso, a realização é boa, o regozijo é enorme. A re-descoberta deste Cancioneiro de Eisler deve-se à recente gravação da Decca com Matthias Görne e Eric Schneider (parte da série da «Entartete Musik»). A propósito: o texto do programa do S. Carlos, assinado por Ivan Moody, é, com excepção do primeiro parágrafo, uma tradução integral, palavra a palavra, do texto de Albrecht Dümling que acompanha a gravação. A origem não é, obviamente, mencionada. Trata-se dum roubo e dum crime punível por lei. A que se chegou! O Hollywood Songbook é um cancioneiro de saudade, uma elegia quântica a várias pátrias distantes, um libelo de exílio. A atmosfera é terminal, com óbvias aproximações ao Winterreise de Franz Schubert. A maior parte dos 46 textos são poemas de Bertolt Brecht (28), mas há fragmentos de Friedrich Hölderlin, poesias de J. W. von Goethe, Joseph von Eichendorff, Berthold Viertel e do próprio Eisler, tranchas do Anacreonte de Eduard Mörike, pensamentos de Blaise Pascal, palavras da Bíblia. Muitos dos poemas de Brecht são poemas-coisas sobre coisas (no sentido dos «Dinggedichte» de Rainer Maria Rilke) - as coisas singelas com que partilhamos a nossa vida, em risco de se perderem esmagadas pela guerra ou pelo avanço das tecnologias. Para os intérpretes, uma das dificuldades interpretativas está neste carácter discreto e fragmentário, tanto mais que apenas seis das canções ultrapassam os dois minutos! Na gravação, Görne resolveu genialmente este problema, adoptando um tom coloquial, quase naturalmente falado, às vezes ciciado, mas sempre colorido por uma paleta admirável. Luís Rodrigues não é um miniaturista e não tem (ainda) ao seu alcance uma tal expressividade dinâmica (não lhe é fácil apianar depois dos fortes), mas encontrou a sua própria maneira, mais directa e cantada, igualmente honesta. Tem um timbre viril, a voz sobe bem, está de boa saúde e foi magnificamente acompanhado por Nuno Vieira de Almeida.

Nuno Vieira de Almeida

O Eisler deste Cancioneiro já não é o discípulo de Schoenberg nem o realista social a compor cancões para as massas de trabalhadores. É o microscopista (fora também aluno de Webern) que não desdenha o poder expressivo duma frase melódica. Cabem às introduções e codas do piano alguns dos apontamentos mais memoráveis (por exemplo, logo nas duas primeiras, «Der Sohn» ou no «Hotelzimmer 1942») e o papel do piano, aqui percutivo e obstinado, ali monótono e agarrado ao rame-rame da vida, hesitante e sincopado mais adiante, acolá dramático, é sempre fulcral. Vieira de Almeida dobrava por música as histórias dos poemas. O aparentemente simples mas na realidade difícil «Über den Selbstmord» (Sobre o suicídio) foi bastante bem construído (com Rodrigues a debitar o «das ist gefährlich» em expressivo «Sprechstimme» e a fazer bem o contraste insuportável entre as duas palavras finais, «Leben fort» - uma piano, a última fortíssimo). O ápice do ciclo são as «Fünf Elegien» sobre poemas de Brecht, retratando Los Angeles e Hollywood. O magneto artístico do cinema era irresistível, e aqui convergiram, nos anos 30, escritores e músicos, cineastas e actores. Fugidos na maior parte ao nazismo, viam em Hollywood o novo Eldorado: Thomas Mann e Franz Werfel, Arnold Schoenberg e Erich Korngold, Max Rheinhardt e Fritz Lang, Billy Wilder e Marlene Dietrich, etc - a lista é impressionante. Brecht e Eisler foram mais dois (outros, como Kurt Weill, fixaram-se na costa oriental). Na quarta elegia Brecht declara que Hollywood é, para os desafortunados e destitutos, um paraíso transformado em inferno (o que seria então a Alemanha nazi?). Eisler altera significativamente os textos de quando em vez, e aqui «Die Stadt Hollywood» passa a ser simplesmente «Diese Stadt». Luís Rodrigues e Vieira de Almeida deram-nos belas versões dos «Fragmentos» do Anacreonte e de Hölderlin. O segundo fragmento do poema de Mörike, sobre as saudades da pátria, foi particularmente bem conseguido, tal como o III e V de Hölderlin também encontraram o barítono em boa forma, usando a voz em pleno, tomando riscos (o II, «Andenken», leva-o ao limite do registo agudo). A parceria funcionou igualmente bem em coisas simples como o «Vom Sprengen des Gartens» (Como regar o jardim), eminentemente cantável, como uma quadra popular, ou mesmo o «Frühling» (belo falsete sobre «verschwimmt»/indistintos). Na II das «5 Elegias», Rodrigues brindou-nos com com um etéreo «Engeln» (os anjos que dão o nome à cidade, L.A.). O que falta? Rodagem, muita rodagem. O cantor ainda não sabe valorizar as consoantes alemãs e a pronúncia do inglês é também pouco idiomática. Impõe-se fazer circular este recital pelo país. Para que serve, afinal, um Teatro Nacional de Ópera onde o canto deve ser supremo, ou a recuperação de velhos teatros e cinemas por esse país fora? Não há público para Eisler e Brecht? Não brinquem, que o público faz-se. O Hollywood Songbook está mesmo a pedir contaminações com as outras artes, conversa com o público, etc, para cortar aquela convenção rotineira do intervalo, fumaças, fatos escuros e intérpretes muito sérios e compenetrados. Para mais, Nuno Vieira de Almeida já demonstrou que é capaz de animar criativamente os recitais e combinar formas. Lembram-se de Le Travail du Peintre e quejandos? Não há dinheiro? Bom, para que serve um ministério da cultura se não para encorajar os riscos? Vamos a isso. JORGE CALADO

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