O poder da pergunta

11-03-2001
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O Poder da Pergunta

Por EDUARDO CINTRA TORRES

Segunda-feira, 18 de Dezembro de 2000 Apesar da fervilhante actividade política, a última entrevista concedida por António Guterres foi a Judite de Sousa na RTP1 em 4 de Maio. O primeiro-ministro aparece diariamente nos telejornais parecendo que está a prestar declarações, mas não o faz na situação normal do entrevistado. Adoptou essa forma bem conhecida noutras democracias de falar à entrada ou à saída duma visita pública ou função oficial. Essa forma foi usada pela presidência de Ronald Reagan nos EUA pela mesma razão por que Guterres a adoptou: permite-lhe não só participar na política quotidiana de uma forma ligeira, mas também gerir por completo o tempo e a qualidade das respostas. Para quem acompanha os telenoticiários, o que fica é a presença simpática de Guterres e o seu comentariozinho político e não fica registado no consciente que o primeiro-ministro é, em termos de declarações aos jornalistas, um homem "em trânsito": ele fala quando sai do carro e à entrada dalgum lado; ele fala quando sai dalgum lado a caminho do carro; só responde a uma ou duas perguntas, aquelas que lhe interessam; e muitas vezes, em vez de responder a uma das questões que o conjunto de repórteres lhe coloca, prefere fazer uma pequena declaração, ultrapassando assim a pergunta e sendo ele o único gestor da sua agenda discursiva. Tem escapado aos repórteres este aspecto importante: é que, em função deste método estudado da gestão da palavra, os jornalistas ou não colocam nenhuma ou apenas uma única pergunta a Guterres, aquela que ele quer ouvir. Esta magnífica manipulação dos manipuladores das perguntas é acompanhada da restrição em dar entrevistas, o que já acontecia com o anterior primeiro-ministro. Trata-se de uma maneira de não se ser confrontado com perguntas em demasia, o que, em conjunção com o processo de declarações "em trânsito" (também usado por Cavaco Silva na sua última legislatura), permite construir uma relação com a imprensa e a opinião pública sem conflitos e perfeitamente regular no regime democrático. Este processo tem sido fulcral na forma como Guterres comunica com o país para além de todos os desastres políticos dos seus governos e para além dos seus próprios "amigos" no Governo. A gestão da palavra foi diferente por Cavaco Silva e Guterres, pois o primeiro, apesar de prestar menos informações "em trânsito", respondia com mais frequência a questões em conferências de imprensa. Guterres tem-se eximido às perguntas, de tal forma que quer ele quer os seus colegas criaram esse novo tipo de uso dos telejornais que é o de prestarem uma declaração curta sem se sujeitarem a perguntas. Desta forma, Guterres aparece mais vezes nos telejornais do que Cavaco, mas respondendo a menos perguntas. Todavia, parece o contrário. A escassez de entrevistas e debates políticos na TV pública desde 1996 inscreve-se nesta fuga ao escrutínio das perguntas. A entrevista de Guterres a Judite de Sousa saiu deste registo e por isso criou muitas perplexidades e críticas à jornalista, que teve de defender-se num artigo no PÚBLICO. Em resumo, Sousa teria sido agressiva e insistente com as perguntas, adoptando então o primeiro-ministro a atitude da "virgem ofendida" pelas perguntas. Vicente Jorge Silva resumiu bem como se processou a relação contratual entre os dois: "Se Judite foi demasiado interventiva e inábil, também é certo que Guterres procurou transformar todas as perguntas da jornalista num pretexto não para responder mas para discursar. Ora, uma entrevista é uma entrevista, não o palco para um discurso. E um jornalista é um jornalista, não um papagaio que debita perguntas e se cala o tempo todo que o entrevistado quiser." ("DN", 12-05-2000) A questão suscitada é das mais importantes para os jornalistas e para a relação do jornalismo com a política em democracia. Trata-se do quarto poder naquilo a que chamo o poder da pergunta. Em ocasiões recentes, assistimos a conflitos do mesmo tipo do que se verificou entre Guterres e a sua entrevistadora. Ao reaparecer em Setembro, no Jornal Nacional, Manuela Moura Guedes, cujo estilo é incomparavelmente mais agressivo que o de Judite de Sousa, viu-se confrontada com recusas de governantes em sentarem-se a seu lado no estúdio da TVI. Numa entrevista ao "DN", atribuiu-as a uma espécie de "complot" governativo contra o Jornal Nacional, o que seria estranho dada a avidez televisiva dos ministros. Eu julgo que os membros do Governo tinham era medo. Medo da pergunta - e, claro, da pergunta como Moura Guedes a faz. Outro caso passou-se em 2 de Outubro, quando Manuela Arcanjo denunciou nos telejornais as perguntas que, nas suas deslocações, lhe faziam repórteres sobre casos escaldantes. A ministra passou a recusar-se a responder a essas perguntas, no que saiu vencedora: em breve subia nesses estranhos termómetros de popularidade que os jornais publicam semanalmente. Mas há outro lado da questão: a ministra, ao recusar enfrentar o poder da pergunta, rejeitava um direito elementar da democracia - o poder da pergunta, precisamente! Arcanjo usou o poder mais típico do poder político, que é o poder do silêncio, ou do segredo. É um direito que lhe assiste. Interessante foi que os repórteres aceitaram neste caso o poder do silêncio e deram-se por vencidos. No caso da "fundação" criada por Armando Vara, quando o "Expresso" levantou a questão, isto é, quando usou o poder da pergunta, o então ministro chamou "reles" a quem o tinha feito. É possível que se dirigisse ao ex-ministro Fernando Gomes, mas, como não especificou, Vara acabou por chamar "reles" ao jornalismo por ter usado o poder da pergunta. O primeiro-ministro geriu o assunto pelos processos acima indicados (declarações "em trânsito" e declarações sem perguntas à saída de audiência com Jorge Sampaio), mas teve mesmo assim de enfrentar o poder da pergunta, que em democracia acontece noutra sede de poder, o Parlamento. De facto, sujeito ao poder da pergunta dos deputados da oposição, Guterres ficou definitivamente aflito, conforme se viu nos telejornais de 14 de Dezembro, e pôs provavelmente em risco a sua carreira política a prazo. Só no dia seguinte, perante uma derrocada provável de todo o Governo, se demitiram Vara e Luís Patrão (o mais arrogante político português num telejornal desde o 25 de Abril, como se viu na TVI, 10-12), porque era preciso salvar Guterres. O poder da pergunta passou neste caso da pergunta inicial do "Expresso" para as perguntas dos parlamentares, outra sede que lhe convém. Foi um caso exemplar da democracia em acção. O Governo não pôde, dessa vez, fugir às perguntas. Este tema continua no próximo Olho Vivo, que, por não haver PÚBLICO no dia de Natal, sairá terça-feira, 26. OUTROS TÍTULOS EM MEDIA Imprensa local pouco digital

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Para quem acompanha os telenoticiários, o que fica é a presença simpática de Guterres e o seu comentariozinho político e não fica registado no consciente que o primeiro-ministro é, em termos de declarações aos jornalistas, um homem "em trânsito": ele fala quando sai do carro e à entrada dalgum lado; ele fala quando sai dalgum lado a caminho do carro; só responde a uma ou duas perguntas, aquelas que lhe interessam; e muitas vezes, em vez de responder a uma das questões que o conjunto de repórteres lhe coloca, prefere fazer uma pequena declaração, ultrapassando assim a pergunta e sendo ele o único gestor da sua agenda discursiva. Tem escapado aos repórteres este aspecto importante: é que, em função deste método estudado da gestão da palavra, os jornalistas ou não colocam nenhuma ou apenas uma única pergunta a Guterres, aquela que ele quer ouvir. Esta magnífica manipulação dos manipuladores das perguntas é acompanhada da restrição em dar entrevistas, o que já acontecia com o anterior primeiro-ministro. Trata-se de uma maneira de não se ser confrontado com perguntas em demasia, o que, em conjunção com o processo de declarações "em trânsito" (também usado por Cavaco Silva na sua última legislatura), permite construir uma relação com a imprensa e a opinião pública sem conflitos e perfeitamente regular no regime democrático. Este processo tem sido fulcral na forma como Guterres comunica com o país para além de todos os desastres políticos dos seus governos e para além dos seus próprios "amigos" no Governo. A gestão da palavra foi diferente por Cavaco Silva e Guterres, pois o primeiro, apesar de prestar menos informações "em trânsito", respondia com mais frequência a questões em conferências de imprensa. Guterres tem-se eximido às perguntas, de tal forma que quer ele quer os seus colegas criaram esse novo tipo de uso dos telejornais que é o de prestarem uma declaração curta sem se sujeitarem a perguntas. Desta forma, Guterres aparece mais vezes nos telejornais do que Cavaco, mas respondendo a menos perguntas. Todavia, parece o contrário. A escassez de entrevistas e debates políticos na TV pública desde 1996 inscreve-se nesta fuga ao escrutínio das perguntas. A entrevista de Guterres a Judite de Sousa saiu deste registo e por isso criou muitas perplexidades e críticas à jornalista, que teve de defender-se num artigo no PÚBLICO. Em resumo, Sousa teria sido agressiva e insistente com as perguntas, adoptando então o primeiro-ministro a atitude da "virgem ofendida" pelas perguntas. Vicente Jorge Silva resumiu bem como se processou a relação contratual entre os dois: "Se Judite foi demasiado interventiva e inábil, também é certo que Guterres procurou transformar todas as perguntas da jornalista num pretexto não para responder mas para discursar. Ora, uma entrevista é uma entrevista, não o palco para um discurso. E um jornalista é um jornalista, não um papagaio que debita perguntas e se cala o tempo todo que o entrevistado quiser." ("DN", 12-05-2000) A questão suscitada é das mais importantes para os jornalistas e para a relação do jornalismo com a política em democracia. Trata-se do quarto poder naquilo a que chamo o poder da pergunta. Em ocasiões recentes, assistimos a conflitos do mesmo tipo do que se verificou entre Guterres e a sua entrevistadora. Ao reaparecer em Setembro, no Jornal Nacional, Manuela Moura Guedes, cujo estilo é incomparavelmente mais agressivo que o de Judite de Sousa, viu-se confrontada com recusas de governantes em sentarem-se a seu lado no estúdio da TVI. Numa entrevista ao "DN", atribuiu-as a uma espécie de "complot" governativo contra o Jornal Nacional, o que seria estranho dada a avidez televisiva dos ministros. Eu julgo que os membros do Governo tinham era medo. Medo da pergunta - e, claro, da pergunta como Moura Guedes a faz. Outro caso passou-se em 2 de Outubro, quando Manuela Arcanjo denunciou nos telejornais as perguntas que, nas suas deslocações, lhe faziam repórteres sobre casos escaldantes. A ministra passou a recusar-se a responder a essas perguntas, no que saiu vencedora: em breve subia nesses estranhos termómetros de popularidade que os jornais publicam semanalmente. Mas há outro lado da questão: a ministra, ao recusar enfrentar o poder da pergunta, rejeitava um direito elementar da democracia - o poder da pergunta, precisamente! Arcanjo usou o poder mais típico do poder político, que é o poder do silêncio, ou do segredo. É um direito que lhe assiste. Interessante foi que os repórteres aceitaram neste caso o poder do silêncio e deram-se por vencidos. No caso da "fundação" criada por Armando Vara, quando o "Expresso" levantou a questão, isto é, quando usou o poder da pergunta, o então ministro chamou "reles" a quem o tinha feito. É possível que se dirigisse ao ex-ministro Fernando Gomes, mas, como não especificou, Vara acabou por chamar "reles" ao jornalismo por ter usado o poder da pergunta. O primeiro-ministro geriu o assunto pelos processos acima indicados (declarações "em trânsito" e declarações sem perguntas à saída de audiência com Jorge Sampaio), mas teve mesmo assim de enfrentar o poder da pergunta, que em democracia acontece noutra sede de poder, o Parlamento. De facto, sujeito ao poder da pergunta dos deputados da oposição, Guterres ficou definitivamente aflito, conforme se viu nos telejornais de 14 de Dezembro, e pôs provavelmente em risco a sua carreira política a prazo. Só no dia seguinte, perante uma derrocada provável de todo o Governo, se demitiram Vara e Luís Patrão (o mais arrogante político português num telejornal desde o 25 de Abril, como se viu na TVI, 10-12), porque era preciso salvar Guterres. O poder da pergunta passou neste caso da pergunta inicial do "Expresso" para as perguntas dos parlamentares, outra sede que lhe convém. Foi um caso exemplar da democracia em acção. O Governo não pôde, dessa vez, fugir às perguntas. 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