EXPRESSO: Artigo

16-11-2001
marcar artigo

Guilherme de Oliveira Martins O melhor amigo que se pode ter

Uf! Que dia comprido! Estivemos com o ministro das Finanças de manhã até à noite e percebemos por que é que António Guterres diz que ele «é o melhor amigo que se pode ter, a melhor pessoa para trabalhar, um amigo íntimo» em que confia «inteiramente».

Texto de Maria João Avillez

Fotografias de Luiz Carvalho Poucas horas antes de tomar posse como ministro das Finanças, Guilherme d'Oliveira Martins, 49 anos, ouviu dois conselhos. O primeiro dado por um político avisado e experiente, cuja intuição nunca o deixou ficar mal: «Você ponha os olhos no dr. Salazar. Olhe que eu, que não sou suspeito, sei o que lhe digo. Contenção e autoridade, lembre-se de Salazar.» O outro conselho visava a ditadura mediática dos tempos que correm e quem o dava era um grande gestor: «Não se impressione com sondagens nem governe a olhar para elas. E ainda menos se aflija com os jornais e com aquelas 'setas' que põem as pessoas ora para baixo ora para cima...» Poucas horas antes de tomar posse como ministro das Finanças, Guilherme d'Oliveira Martins, 49 anos, ouviu dois conselhos. O primeiro dado por um político avisado e experiente, cuja intuição nunca o deixou ficar mal: «Você ponha os olhos no dr. Salazar. Olhe que eu, que não sou suspeito, sei o que lhe digo. Contenção e autoridade, lembre-se de Salazar.» O outro conselho visava a ditadura mediática dos tempos que correm e quem o dava era um grande gestor: «Não se impressione com sondagens nem governe a olhar para elas. E ainda menos se aflija com os jornais e com aquelas 'setas' que põem as pessoas ora para baixo ora para cima...» Não se sabe que caso fará o ministro destas sábias regras para uma boa governação. Mas eu sei que a sua vida não é fácil. Apesar de poder sempre contar com algumas das características que definem a sua maneira de ser - disciplina, paciência, pontualidade, serenidade -, que no seu específico caso se transformam automaticamente em ferramentas de trabalho, a tarefa que tem pela frente é ciclópica. Convencer o país, as oposições, a classe empresarial, os sindicatos, a sociedade civil, o povo, os portugueses de que assinou um bom Orçamento para 2002. Depois, fazê-lo aprovar no hemiciclo de S. Bento, mediante uma soma de votos cuja paternidade está ainda, pelo menos à hora a que escrevo, no segredo dos deuses. Em seguida, fazê-lo cumprir. E, «last but not least», dar-lhe o «qb» de saúde - que o mesmo é dizer de exequibilidade - de modo a não ter de produzir um orçamento rectificativo ainda no decurso desta «saison» político-parlamentar. E, se dermos ouvidos às dúvidas, reticências ou certezas «negativas» que escutei em todo o lado durante as muitas horas em que acompanhei o titular das Finanças através da sua agenda de trabalho, a tarefa não é ciclópica - é impossível. Mas quando o encontro, de manhã cedo, sorridente e em boa forma física, na sua casa - um acolhedor segundo andar numa rua da Lapa que consegue o milagre de abrigar mais de 10 mil livros -, tudo o que me poderia passar pela cabeça era que o documento fora já aprovado, sob o aplauso das oposições, tal a jovialidade do meu interlocutor. Mas quando o encontro, de manhã cedo, sorridente e em boa forma física, na sua casa - um acolhedor segundo andar numa rua da Lapa que consegue o milagre de abrigar mais de 10 mil livros -, tudo o que me poderia passar pela cabeça era que o documento fora já aprovado, sob o aplauso das oposições, tal a jovialidade do meu interlocutor. Esta «forma mentis» e a saúde física que a emoldura são afinal o resultado de uma avisada mistura entre alguns truques e dois ou três saudáveis princípios que se têm revelado «preciosos»: subir as escadas a pé sem nunca recorrer aos elevadores; dormir bem mesmo que pouco; «desligar» dos problemas sempre que chega a casa; ler todos os dias; andar a pé aos fins-de-semana; usar o garfo e o copo com parcimónia... E sobretudo, claro, esse ponto número 1 da sua Constituição pessoal: «Ter o trabalho de casa sempre em dia!» São oito horas e quinze minutos, e Guilherme d'Oliveira Martins já consultou alguns jornais estrangeiros na Internet, embora ele seja de uma colheita geracional que prefere «sempre lê-los em papel». A sua mulher, Manuela, camisa branca e calças cinzentas, está pronta para sair, a caminho do Centro Científico e Cultural de Macau, onde dirige os Serviços de Cultura e Museologia. Os filhos - Guilherme, Maria e Ana - também já partiram para as suas actividades profissionais. Guilherme e Maria são assistentes em Direito, Ana estuda Arquitectura. Segundos depois, o carro voa até ali perto. O dia está glorioso e convida a demorar o olhar nas belíssimas palmeiras e nas buganvílias da residência oficial do primeiro-ministro, onde Guilherme d'Oliveira Martins tem uma das suas moradas - um pequeno gabinete ao fundo do pátio de entrada -, aqui como ministro da Presidência. De manhã bem cedo, antes das oito, o ministro despede-se com um beijo de Manuela e inicia um longo dia de trabalho Está sempre às oito da manhã sentado à secretária do gabinete, e - supremo luxo! - o tempo é todo seu até às dez! O que lhe permite pôr em prática os três «s» que definem essas duas horas de liberdade e que simultaneamente o «armam» para os espinhos do dia: silêncio, sossego, solidão. A única coisa que muda é a geografia, pois as jornadas não são iguais umas às outras. Para além das pesadas solicitações das Finanças, há o resto, que é muito, nesta sua dupla tutela. Há as tarefas específicas da Presidência do Conselho de Ministros; há o encontro semanal de «coordenação política», no gabinete de António Guterres, às segundas-feiras de manhã; há a reunião de todos os secretários de Estados, tutelada e dirigida pelo ministro da Presidência, às terças de manhã; há as reuniões de coordenação - com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, José Magalhães - de toda a actividade parlamentar do Executivo, como idas ao hemiciclo, organização de interpelações, agendamento de debates, etc. Está sempre às oito da manhã sentado à secretária do gabinete, e - supremo luxo! - o tempo é todo seu até às dez! O que lhe permite pôr em prática os três «s» que definem essas duas horas de liberdade e que simultaneamente o «armam» para os espinhos do dia: silêncio, sossego, solidão. A única coisa que muda é a geografia, pois as jornadas não são iguais umas às outras. Para além das pesadas solicitações das Finanças, há o resto, que é muito, nesta sua dupla tutela. Há as tarefas específicas da Presidência do Conselho de Ministros; há o encontro semanal de «coordenação política», no gabinete de António Guterres, às segundas-feiras de manhã; há a reunião de todos os secretários de Estados, tutelada e dirigida pelo ministro da Presidência, às terças de manhã; há as reuniões de coordenação - com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, José Magalhães - de toda a actividade parlamentar do Executivo, como idas ao hemiciclo, organização de interpelações, agendamento de debates, etc. E, claro, há o Terreiro do Paço dessas Finanças que Oliveira Martins tutela há quatro meses, vasto labirinto que ele conhece «de cor» - e cuja história «teve o gosto» de publicar em livro, saído em 1988. Foi lá que iniciou a sua vida profissional e foi lá que voltou, há um bom par de anos, para exercer as funções de chefe de gabinete do então ministro Sousa Franco. Costuma até lembrar aos mais distraídos que «é dali e foi ali que começou». Mas agora pertence-lhe o melhor e mais luminoso gabinete - valha-lhe isso! -, por onde entra hoje, sublime e azul, uma nesga do Tejo. E, claro, há o Terreiro do Paço dessas Finanças que Oliveira Martins tutela há quatro meses, vasto labirinto que ele conhece «de cor» - e cuja história «teve o gosto» de publicar em livro, saído em 1988. Foi lá que iniciou a sua vida profissional e foi lá que voltou, há um bom par de anos, para exercer as funções de chefe de gabinete do então ministro Sousa Franco. Costuma até lembrar aos mais distraídos que «é dali e foi ali que começou». Mas agora pertence-lhe o melhor e mais luminoso gabinete - valha-lhe isso! -, por onde entra hoje, sublime e azul, uma nesga do Tejo. Mas não antecipemos. Em S. Bento, é recebido pelo seu chefe de gabinete, Rui Grilo - 27 anos e já algum currículo político -, e por duas secretárias. Guilherme d'Oliveira Martins cumprimenta todos com um aperto de mão e um largo sorriso. Vê-lo-ei cumprir este gesto vezes sem conta, ao longo do dia e para onde quer que vá. Para cada um - colaboradores, secretárias, contínuos, funcionários -, uma mão estendida: «Tem passado bem?» Conhece toda a gente, nenhuma cara lhe é estranha, trata cada pessoa pelo seu nome próprio, fora e dentro das fronteiras do universo político. A família, em 80, no baptizado de Ana, a mais nova dos três filhos do casa Mas daqui a pouco é hora da apresentação do OGE à Comissão de Economia e Finanças da Assembleia da República. Rui Grilo faz entrar os três secretários de Estado das Finanças, que o ministro convocara para «afinar os últimos pormenores». Chamam-se Rudolfo Lavrador, Rui Coimbra e Rogério Fernandes. O ministro assume que foi ele «quem os escolheu» - embora também se diga que lhe foram «impostos» de cima - e chama-lhes «os meninos de oiro». (Mais tarde, hei-de ouvir o próprio primeiro-ministro apelidá-los, diante de mim, de «meus meninos»...) O trio é simpático, jovem - demasiado jovem? -, uma espécie de três mosqueteiros que acreditam no êxito da sua empreitada, porque acima de tudo confiam - demasiado? - em si mesmos. Apetece quase dizer-lhes que, por este andar, podem tropeçar em sempre desaconselháveis excessos de confiança. Adivinho-os mobilizados por Oliveira Martins, que visivelmente respeitam tanto quanto admiram. Ficaram felizes com as «novidades» introduzidas pelo ministro, como essa de todos os dias 15 de cada mês dar publicamente conta das contas do Estado. Em nome do «rigor» e da «transparência», claro. Mas daqui a pouco é hora da apresentação do OGE à Comissão de Economia e Finanças da Assembleia da República. Rui Grilo faz entrar os três secretários de Estado das Finanças, que o ministro convocara para «afinar os últimos pormenores». Chamam-se Rudolfo Lavrador, Rui Coimbra e Rogério Fernandes. O ministro assume que foi ele «quem os escolheu» - embora também se diga que lhe foram «impostos» de cima - e chama-lhes «os meninos de oiro». (Mais tarde, hei-de ouvir o próprio primeiro-ministro apelidá-los, diante de mim, de «meus meninos»...) O trio é simpático, jovem - demasiado jovem? -, uma espécie de três mosqueteiros que acreditam no êxito da sua empreitada, porque acima de tudo confiam - demasiado? - em si mesmos. Apetece quase dizer-lhes que, por este andar, podem tropeçar em sempre desaconselháveis excessos de confiança. Adivinho-os mobilizados por Oliveira Martins, que visivelmente respeitam tanto quanto admiram. Ficaram felizes com as «novidades» introduzidas pelo ministro, como essa de todos os dias 15 de cada mês dar publicamente conta das contas do Estado. Em nome do «rigor» e da «transparência», claro. «Em respeito pelo contribuinte, todos os meses, em conferência de imprensa, anunciamos os números da execução orçamental. Faça sol ou faça chuva...» (Subentendido, sejam boas ou más as notícias a dar.) Mas - «nuance» - o titular das Finanças admite que prefere dizer «empenhamento» em vez de «voluntarismo» para classificar o «modo» da sua acção e, subitamente, ei-lo que ressuscita a fábula da «Lebre e da Tartaruga» para se confessar ferozmente adepto da tartaruga... Embora também confie - talvez a pensar para com os seus botões naquele conselho amigo que o mandava aprender com o dr. Salazar - que «sim, é verdade que assumo estar neste caminho com o pulso um pouco duro». «Em respeito pelo contribuinte, todos os meses, em conferência de imprensa, anunciamos os números da execução orçamental. Faça sol ou faça chuva...» (Subentendido, sejam boas ou más as notícias a dar.) Mas - «nuance» - o titular das Finanças admite que prefere dizer «empenhamento» em vez de «voluntarismo» para classificar o «modo» da sua acção e, subitamente, ei-lo que ressuscita a fábula da «Lebre e da Tartaruga» para se confessar ferozmente adepto da tartaruga... Embora também confie - talvez a pensar para com os seus botões naquele conselho amigo que o mandava aprender com o dr. Salazar - que «sim, é verdade que assumo estar neste caminho com o pulso um pouco duro». Às nove e trinta, todo este cortejo se apressa pelo caminho ladeado de densa vegetação que nos conduzirá dos jardins da residência para o Parlamento. Maravilhoso jardim - testemunha muda dos segredos de outros regimes e governos - que permanece hoje, na sua idílica graça e verde pujança, um dos mais belos parques de Lisboa. Mas já o loquaz José Magalhães nos aguarda numa das largas varandas de pedra do imenso edifício que abriga o Parlamento. Afinal, são os deputados da Comissão de Economia que tardam. Cravinho há-de chegar atrasado, e Medeiros Ferreira também, mas Manuela Ferreira Leite, presidente da Comissão, não se comove e dá início aos trabalhos «desta complexa maratona». O ministro explica com detalhe e rigor o documento que contém as próximas contas do Estado. Profere palavras fortes, fundamenta as suas opções, explicita-as, promete, tranquiliza. Antes, recordara com ênfase aos presentes que, «como deputado, estivera sempre naquela mesma Comissão». Talvez como garantia suplementar para os convencer de estar agora «muito empenhado numa agenda reformadora para a consolidação das finanças públicas e para a simplificação do sistema fiscal»... Mas já o loquaz José Magalhães nos aguarda numa das largas varandas de pedra do imenso edifício que abriga o Parlamento. Afinal, são os deputados da Comissão de Economia que tardam. Cravinho há-de chegar atrasado, e Medeiros Ferreira também, mas Manuela Ferreira Leite, presidente da Comissão, não se comove e dá início aos trabalhos «desta complexa maratona». O ministro explica com detalhe e rigor o documento que contém as próximas contas do Estado. Profere palavras fortes, fundamenta as suas opções, explicita-as, promete, tranquiliza. Antes, recordara com ênfase aos presentes que, «como deputado, estivera sempre naquela mesma Comissão». Talvez como garantia suplementar para os convencer de estar agora «muito empenhado numa agenda reformadora para a consolidação das finanças públicas e para a simplificação do sistema fiscal»... A sala era como se respondesse com «palavras leva-as o vento», enquanto com uma correcção que nunca excluiu a convicção o ministro insistia em alguns pontos de honra: o controlo da despesa pública; a convergência real com os nossos parceiros da União Europeia («uma preocupação fundamental que nunca podemos perder de vista...»); a continuidade fiscal sem perda de vista da eficiência e da equidade fiscais. E sempre contrapondo «a prudência ao optimismo» e «o rigor ao irrealismo», num «cenário de mobilização das pessoas»: «A economia europeia, e nela a economia portuguesa, tem fundamentos que permitem olharmos o futuro sem cair em lógicas pessimistas. Temos, sim, é de ser realistas, hora a hora, realistas. Não tivemos dúvidas em apresentar o cenário macroeconómico provisório para as grandes opções do Plano e em rever esse mesmo cenário quando apresentámos aqui o Orçamento de Estado.» A sala era como se respondesse com «palavras leva-as o vento», enquanto com uma correcção que nunca excluiu a convicção o ministro insistia em alguns pontos de honra: o controlo da despesa pública; a convergência real com os nossos parceiros da União Europeia («uma preocupação fundamental que nunca podemos perder de vista...»); a continuidade fiscal sem perda de vista da eficiência e da equidade fiscais. E sempre contrapondo «a prudência ao optimismo» e «o rigor ao irrealismo», num «cenário de mobilização das pessoas»: «A economia europeia, e nela a economia portuguesa, tem fundamentos que permitem olharmos o futuro sem cair em lógicas pessimistas. Temos, sim, é de ser realistas, hora a hora, realistas. Não tivemos dúvidas em apresentar o cenário macroeconómico provisório para as grandes opções do Plano e em rever esse mesmo cenário quando apresentámos aqui o Orçamento de Estado.» Beijo a Manuela Ferreira Leite, presidente da Comissão Parlamentar de Economia Mas se, durante cinco laboriosas horas, a saraivada não poupou a equipa das Finanças, nunca vi no rosto de Guilherme d'Oliveira Martins aquelas duas ou três gotas de suor que costumam assinalar os seus raros momentos de tensão ou que anunciam as suas raríssimas tempestades. Como ocorreu duas ou três vezes quando titulava a Educação, mas não mais. Tal como alguns amigos ou colaboradores mais antigos me tinham afiançado e pude comprovar, «o Guilherme nunca se altera e ainda menos se exaspera». Mas se, durante cinco laboriosas horas, a saraivada não poupou a equipa das Finanças, nunca vi no rosto de Guilherme d'Oliveira Martins aquelas duas ou três gotas de suor que costumam assinalar os seus raros momentos de tensão ou que anunciam as suas raríssimas tempestades. Como ocorreu duas ou três vezes quando titulava a Educação, mas não mais. Tal como alguns amigos ou colaboradores mais antigos me tinham afiançado e pude comprovar, «o Guilherme nunca se altera e ainda menos se exaspera». Por isso, hoje, quando o deputado popular Pires de Lima, abrindo as hostilidades, lhe atirou com «a desfaçatez das propostas ali ouvidas»; quando Lino de Carvalho, do PCP, disse ser preciso acrescentar um novo capítulo ao OGE, intitulado «Orçamento sem Credibilidade»; ou ainda quando o social-democrata Rui Rio lhe garantiu que «ou há perda de poder de compra dos salários ou este OGE não é cumprido», Oliveira Martins ouviu mas não pestanejou. Nem sequer quando o mesmo Rui Rio, face às intenções de contenção expressas no OGE, disparou que «fazer cortes sem reformas não serve para nada!», Oliveira Martins se afligiu. Nem quando, finalmente, ali se invocou com veemência «o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes», comparando o OGE ao «milagre das rosas», ou quando as oposições desesperaram face à elástica bondade da aritmética destas contas, o ministro desarmou. Foto de família, em casa, em 1987 Uma prova de fogo revista por um diálogo de surdos. No final da «complexa maratona», espanto-me: o titular das Finanças, pelo contrário, achou que a manhã lhe tinha corrido bem. E mesmo que «a artilharia política tenha ficado guardada para a discussão parlamentar no hemiciclo, a artilharia técnica foi toda ali lançada». Pelos vistos, não o assustou. Uma prova de fogo revista por um diálogo de surdos. No final da «complexa maratona», espanto-me: o titular das Finanças, pelo contrário, achou que a manhã lhe tinha corrido bem. E mesmo que «a artilharia política tenha ficado guardada para a discussão parlamentar no hemiciclo, a artilharia técnica foi toda ali lançada». Pelos vistos, não o assustou. Mas já a agenda se impõe, e um dos segredos deste homem meticuloso é não falhar nem saltar nenhum dos compromissos do dia. Corre-se para o Hotel Ritz, onde o aguarda o Fórum de Administradores de Empresas, liderado por Leal Martinho, presidente do Instituto dos Seguros de Portugal. Após uma salada engolida a correr - não houve tempo para mais -, o ministro salta para o palanque, afina o microfone e começa a falar. Ou, melhor, a tranquilizar os espíritos: «Conheço os entraves e as burocracias do meu Ministério, conheço a lentidão da 'casa'. Trabalhei muitos anos nas Finanças, estudei-as, venho de lá... E sabem que o optimismo não é a minha atitude...» Depois, repetem-se os argumentos. Só o auditório - onde se vêem Miguel Beleza, Medina Carreira, Jardim Gonçalves, José Morais Cabral, Nogueira de Brito, entre uma centena de outros - difere nesta plateia de atentos comensais. Com os três secretários de Estado, de gravatas às riscas Mas uma vez mais constato aquilo que é timbre de Oliveira Martins. E que constitui uma identidade, pessoal e intransmissível, que forçosamente tem de ser aqui invocada, se se pretende a nitidez da radiografia. É que Guilherme d'Oliveira Martins apela a um imediato consenso sobre a idoneidade dos seus propósitos e a seriedade da sua postura cívica e moral, convocando de caminho as imediatas, ou melhor, as automáticas boas intenções das mais diversificadas assembleias. Opositores ou adversários, pares ou correligionários, amigos ou conhecidos vestem-se de uma espécie de pré-disposição para acreditar que ele está «a dizer a verdade». Mas uma vez mais constato aquilo que é timbre de Oliveira Martins. E que constitui uma identidade, pessoal e intransmissível, que forçosamente tem de ser aqui invocada, se se pretende a nitidez da radiografia. É que Guilherme d'Oliveira Martins apela a um imediato consenso sobre a idoneidade dos seus propósitos e a seriedade da sua postura cívica e moral, convocando de caminho as imediatas, ou melhor, as automáticas boas intenções das mais diversificadas assembleias. Opositores ou adversários, pares ou correligionários, amigos ou conhecidos vestem-se de uma espécie de pré-disposição para acreditar que ele está «a dizer a verdade». É certo que o Governo está desacreditado e que o primeiro-ministro - apesar das sacrossantas sondagens - já pouco convence. É verdade que, tal como esta manhã aconteceu no Parlamento, as propostas do OGE também não excitaram nem convenceram esta poderosa sala do Ritz. E é sobretudo ainda mais certo que este parece ser o mais espinhoso desafio que Oliveira Martins jamais teve pela frente. Ao almoço com Jardim Gonçalves Tão espinhoso e incerto ele é que começa a ouvir-se, aqui e ali, mais alto ou mais baixo, que «a conciliação tem um limite», que «o ministro exagera nos seus vácuos consensos», preferindo-os sempre «às firmes escolhas». Ou que «a seriedade do seu carácter pode sair ferida de uma prova destas»... Por isso mesmo, caberá perguntar se, tal como até aqui, Oliveira Martins vai continuar a beneficiar desse suplemento de crédito que tem cimentado o seu caminho cívico e político, para depois perguntar até quando... Tão espinhoso e incerto ele é que começa a ouvir-se, aqui e ali, mais alto ou mais baixo, que «a conciliação tem um limite», que «o ministro exagera nos seus vácuos consensos», preferindo-os sempre «às firmes escolhas». Ou que «a seriedade do seu carácter pode sair ferida de uma prova destas»... Por isso mesmo, caberá perguntar se, tal como até aqui, Oliveira Martins vai continuar a beneficiar desse suplemento de crédito que tem cimentado o seu caminho cívico e político, para depois perguntar até quando... Pouco passa das quinze horas quando a eficiente Edite Coelho - ex-autarca e actual chefe da assessoria de imprensa do titular das Finanças -, sentada na parte da frente do BMW preto e falando incessantemente por um telemóvel que nunca largará, avisa que o primeiro-ministro já está em S. Bento. De novo passamos o portão verde da residência oficial. Os três filhos em Boliqueime No seu gabinete, aberto para o sol desta tarde de Verão e «dominado» por uma impressionante Menez que o chefe do Executivo me diz ser «da sua maior estimação», António Guterres não tropeça nas palavras: «Quer que lhe fale do Guilherme? É muito simples: é o melhor amigo que se pode ter; é seguramente a melhor pessoa para trabalhar. É um amigo íntimo ('Desde quando é que nos conhecemos? Foi na Sedes, não foi, pá?'), no qual confio inteiramente. No que toca às tarefas do Governo, é o meu braço direito, talvez o mesmo que o Jorge Coelho em relação ao partido. E... (pausa) tenho a certeza de ser uma pessoa que, quando morrer, vai direita para o céu.» No seu gabinete, aberto para o sol desta tarde de Verão e «dominado» por uma impressionante Menez que o chefe do Executivo me diz ser «da sua maior estimação», António Guterres não tropeça nas palavras: «Quer que lhe fale do Guilherme? É muito simples: é o melhor amigo que se pode ter; é seguramente a melhor pessoa para trabalhar. É um amigo íntimo ('Desde quando é que nos conhecemos? Foi na Sedes, não foi, pá?'), no qual confio inteiramente. No que toca às tarefas do Governo, é o meu braço direito, talvez o mesmo que o Jorge Coelho em relação ao partido. E... (pausa) tenho a certeza de ser uma pessoa que, quando morrer, vai direita para o céu.» Depois deste atestado tão eloquentemente sincero, resta-me respirar fundo. António Guterres, bem-disposto - as últimas sondagens fizeram voltar-lhe a cor ao rosto (o que lá vai, lá vai?) -, afiança-me que «tudo vai bem», que «o pior já passou», e nem ilude de resto esse «pior». E está tão confiante que nem sequer «vê razão nenhuma para o Orçamento não passar o exame parlamentar». Não é verdade que «as oposições são as primeiras a querer que ele passe?»... Depois deste atestado tão eloquentemente sincero, resta-me respirar fundo. António Guterres, bem-disposto - as últimas sondagens fizeram voltar-lhe a cor ao rosto (o que lá vai, lá vai?) -, afiança-me que «tudo vai bem», que «o pior já passou», e nem ilude de resto esse «pior». E está tão confiante que nem sequer «vê razão nenhuma para o Orçamento não passar o exame parlamentar». Não é verdade que «as oposições são as primeiras a querer que ele passe?»... Entretanto, aguarda as eleições autárquicas com «serenidade» e, de caminho, elogia o PP (diz-me quem elogias, dir-te-ei porque o fazes?). Elogia o Partido Popular na pessoa do dr. Portas, pelo seu contributo na aprovação de leis de «uma enorme sensibilidade e importância políticas para o país, como foram a das Forças Armadas e a da Imigração». E, quando quero saber em que se irá traduzir politicamente a sua admiração pela capacidade patriótica do PP, logo ele atalha: «Agora vai deixar-me trabalhar um bocadinho com o Guilherme, não vai?» Guilherme, Maria (ambos assistentes em Direito) e Ana (estudante de Arquitectura): os três filhos do casal, de férias em Amesterdão, em 1999 Saio com um livro debaixo do braço, «O Palacete de S. Bento», que ali me foi oferecido. (Fiquei a saber coisas que não sabia, como por exemplo que a casa, construída em 1877 num parque de dois hectares, foi mandada erguer por um «brasileiro de torna viagem», Joaquim Machado Cayres - português nascido em Braga que emigrou para terras brasileiras e lá fez fortuna -, só vindo a ser morada de chefe do Governo em 1937.) Saio com um livro debaixo do braço, «O Palacete de S. Bento», que ali me foi oferecido. (Fiquei a saber coisas que não sabia, como por exemplo que a casa, construída em 1877 num parque de dois hectares, foi mandada erguer por um «brasileiro de torna viagem», Joaquim Machado Cayres - português nascido em Braga que emigrou para terras brasileiras e lá fez fortuna -, só vindo a ser morada de chefe do Governo em 1937.) Meia hora depois, cumprindo aquele são princípio que a si mesmo se impôs («uma coisa de cada vez, porque o 'stress' é estar-se sempre a pensar na próxima coisa...»), Oliveira Martins agarra o novo compromisso da sua agenda. Destino: um vasto gabinete do Ministério das Finanças. Não o seu, mas um outro, no segundo andar, onde reúne a Unidade de Coordenação contra a Evasão e a Fraude Fiscal e Aduaneira (UCLEFA), uma comissão presidida pelo próprio titular das Finanças. Objectivo? Lutar contra tais «flagelos», para um dia acabar com eles. Agarrado à pasta, Oliveira Martins sossega os seus interlocutores: «Conheço os entraves e as burocracias do meu Ministério. Conheço a lentidão da casa» Este órgão do Conselho Superior de Finanças é integrado por representantes de diversos organismos do Estado (Direcções-Gerais, Polícias, Inspecções, etc.). São 16 pessoas ali sentadas à roda de uma mesa em forma de ferradura, numa sala com vista para o rio e com telas de Pedro Chorão, Jorge Martins e Ângelo de Sousa nas paredes. Este órgão do Conselho Superior de Finanças é integrado por representantes de diversos organismos do Estado (Direcções-Gerais, Polícias, Inspecções, etc.). São 16 pessoas ali sentadas à roda de uma mesa em forma de ferradura, numa sala com vista para o rio e com telas de Pedro Chorão, Jorge Martins e Ângelo de Sousa nas paredes. O ministro ouve atentamente cada um, à vez, fazer os diversos pontos de situação e cruzar informações com vista ao «desenvolvimento de acções concertadas na luta contra as fraudes tributárias». E, no final, deixa um alento e simultaneamente um aviso: «O sentido da minha presença aqui é dar prioridade máxima ao trabalho desta Comissão. Mas é preciso aperfeiçoar a legislação que permita o controlo efectivo de todas as situações que levam à evasão fiscal...» A tarde já esmorece, mas a agenda ainda vai a meio. Guilherme d'Oliveira Martins desce um andar («Finalmente», diz o ministro, com a alegria de quem chega a «casa») e entra no seu próprio gabinete. A assessora de imprensa e a secretária, Ana Gomes, trazem chá e um tabuleiro com aquelas bolachas marca «ministro»: sortidas e demasiado doces. Mas desta vez vêm também sanduíches, igualmente sortidas, porque o ministro, «coitado», quase não almoçou. E quem melhor do que as secretárias para velar pela boa «manutenção» do «chefe» bem amado? Mas - «dommage» - esta tarde não está Luísa Sousa Coutinho, 30 anos, a mais nova mas aqui a mais «antiga»: colabora com Guilherme d'Oliveira Martins desde os tempos da Sedes, já lá vão mais de 12 anos, e nunca trabalhou noutro lado. A assessora de imprensa e a secretária, Ana Gomes, trazem chá e um tabuleiro com aquelas bolachas marca «ministro»: sortidas e demasiado doces. Mas desta vez vêm também sanduíches, igualmente sortidas, porque o ministro, «coitado», quase não almoçou. E quem melhor do que as secretárias para velar pela boa «manutenção» do «chefe» bem amado? Mas - «dommage» - esta tarde não está Luísa Sousa Coutinho, 30 anos, a mais nova mas aqui a mais «antiga»: colabora com Guilherme d'Oliveira Martins desde os tempos da Sedes, já lá vão mais de 12 anos, e nunca trabalhou noutro lado. O ministro senta-se, serve-se de uma sanduíche, bebe um golo de chá. Depois mostra uma minúscula agenda, que tira de um bolso - cada dia já passado tem um traço sobre cada solicitação. «É um dos meus segredos, nunca deixar nada para o dia seguinte. À medida que cumpro cada compromisso faço um risco por cima. É psicológico, assim não fico com eles a perturbarem-me a memória. E as coisas vão-se fazendo, cada uma de sua vez. Está a ver aqui o dia de hoje?» Estou a ver: faltam riscar três linhas, as três últimas deste dia. Guilherme e Manuela em Amesterdão, em 1999 Terminado o chá, Guilherme d'Oliveira Martins levanta-se, abre o seu computador, procura qualquer coisa. É uma impressiva e nostálgica fotografia de Veneza tirada por Rui Grilo, o seu chefe de gabinete da Presidência do Conselho de Ministros. Oliveira Martins é também ele fotógrafo amador, embora o que lhe esteja mais no jeito - e no dotado traço - seja a banda desenhada, de que é fã e que «pratica», desenhando e escrevendo os textos. «É que não é com números e cifrões que se faz a vida...» Terminado o chá, Guilherme d'Oliveira Martins levanta-se, abre o seu computador, procura qualquer coisa. É uma impressiva e nostálgica fotografia de Veneza tirada por Rui Grilo, o seu chefe de gabinete da Presidência do Conselho de Ministros. Oliveira Martins é também ele fotógrafo amador, embora o que lhe esteja mais no jeito - e no dotado traço - seja a banda desenhada, de que é fã e que «pratica», desenhando e escrevendo os textos. «É que não é com números e cifrões que se faz a vida...» Mas eis que o chefe de gabinete, José Castel-Branco, faz entrar o professor Fernando Teixeira Santos, presidente da Comissão do Mercado de Valores Imobiliários. Nova reunião - periódica, aliás -, para avaliar «da boa saúde dos mercados financeiros». Uma hora depois - é quase noite -, os «mosqueteiros» entram mais uma vez em cena. Sorriem, são corteses - dou comigo a pensar que podiam ter gravatas mais bonitas -, sentam-se à roda da grande mesa situada num dos lados do gabinete. O ministro só dá o dia por terminado quando todas as tarefas agendadas foram cumpridas Tal como o dia, o Tejo já perdeu luminosidade, e o azul quase só se adivinha no espelho da água. Guilherme d'Oliveira Martins, Rogério Fernandes, Rui Coimbra e Rudolfo Lavrador abrem os respectivos cadernos, puxam das canetas, falam baixo. Estarão assim durante mais de uma hora, numa espécie de julgamento do dia, de «compte rendu» do que ouviram, do que deve ser «mexido» ou «reanalisado». E não me escondem uma imensa satisfação com os números que acabam de obter (e que hão-de ser divulgados daqui a dias pelo Instituto Nacional de Estatística), que provam que Portugal, «afinal», cresceu mais este ano do que a média europeia. Tal como o dia, o Tejo já perdeu luminosidade, e o azul quase só se adivinha no espelho da água. Guilherme d'Oliveira Martins, Rogério Fernandes, Rui Coimbra e Rudolfo Lavrador abrem os respectivos cadernos, puxam das canetas, falam baixo. Estarão assim durante mais de uma hora, numa espécie de julgamento do dia, de «compte rendu» do que ouviram, do que deve ser «mexido» ou «reanalisado». E não me escondem uma imensa satisfação com os números que acabam de obter (e que hão-de ser divulgados daqui a dias pelo Instituto Nacional de Estatística), que provam que Portugal, «afinal», cresceu mais este ano do que a média europeia. E, quando já passa bastante das nove horas da noite, entra - para ficar - o último senhor do dia: é José Castel-Branco, que avança munido da grande pasta preta para o sagrado «despacho». Sagrado porque, salvo emergência ou catástrofe de última hora, este ritual nunca «transita» para o dia seguinte. É outro segredo de como bem gerir uma agenda pesada. Até à votação do OGE, não há trégua nem pausa. Talvez, quando muito, um pouco de tempo «roubado aos domingos» para o ensaio que Oliveira Martins se comprometeu a escrever sobre dois nomes das letras portuguesas: «Nemésio e Régio, Caminhos Cruzados». Porque, com ele, os tempos livres - eufemismo - são sempre partilhados com os livros, a escrita, a leitura, a investigação, o estudo. E com a família, claro. Manuela, os filhos, Guilherme, Maria e Ana, ponto fulcral de todos os equilíbrios e afectos, ponto nevrálgico de onde tudo parte e porto de abrigo onde Guilherme d'Oliveira Martins sempre regressa ao fim de dias como este. Amanhã é outro dia. Cada coisa de sua vez. 38

Por Guilherme Família É para mim fundamental o apoio da família. É na «tribo» que encontro a base fundamental de apoio. É o melhor lugar de refúgio. Não dispenso o serão, os fins-de-semana, as férias (cada vez mais pequenas) e a Páscoa numa cidade fora do país. Gostamos muito de proteger a família da exposição pública. Estou casado há quase 26 anos com a Manuela. O Guilherme e a Maria já são assistentes universitários em Direito, e a Ana está no 4º ano de Arquitectura. Além do núcleo fundamental, tenho uma família muito grande e dispersa de que gosto de estar próximo. Deus e Igreja Deus. Tenho fé, o que é tudo menos uma adesão sem dúvida e sem exigência. S. Paulo diria: «Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas então veremos face a face» (Cor. 13.12). Sempre que releio o «Sermão da Montanha» encontro novos motivos para continuar sem ceder à facilidade. Igreja. Quando se está na vida política, tem de ficar claro que a laicidade, a liberdade religiosa e a separação das esferas são respeitadas. O cristianismo não propõe um projecto político, mas responsabilidades especiais de rectidão. A Igreja é um corpo místico, devendo, por isso, ser um factor de Paz e de Liberdade. Escola Infância? Tenho uma imagem simpática desse tempo distante. Fui muito marcado pela leitura, pela escrita e pelo vício incorrigível dos livros. Frequentei a Escola Primária Nº 6, em Campo de Ourique, e o Liceu de Pedro Nunes - aí fiz amizades e ainda hoje recordo esses tempos. Lembro-me, por exemplo, do deslumbramento ao ler a «Odisseia», na versão de João de Barros, aos 10 anos, e de passar os sábados às voltas com as enciclopédias do meu avô. Tive óptimos professores, mas os melhores educadores foram os meus pais. O exemplo pessoal foi fundamental. A minha mãe tinha uma paciência infinita para a Matemática e as Ciências, e recordo bem ter aprendido, por exemplo, os mistérios e segredos da mitologia grega ou as biografias de Cimabue, de Dante ou de Rembrandt com o meu pai. Visitámos (somos três irmãos) todos os museus que havia para visitar, sempre em visitas guiadas em família... Cultura Em casa dos meus avós paternos a literatura, a arte ou a poesia eram temas quotidianos. Cultivava-se Antero, Eça, Camilo, mas também Nemésio ou Régio. Recordo-me de ouvir relatos fantásticos de viagens às grandes capitais europeias (como a visita ao Hermitage por um primo afastado que eu sempre identifiquei com o conde Pedro de «Guerra e Paz») ou de uma expedição épica do meu avô ao Recife para falar sobre a batalha de Guararapes... Os mais novos entusiasmavam-se pelo existencialismo (Kierkegaard, Chestov), pelo modernismo (Orpheu, Pessoa, Sá-Carneiro), pelos artistas (Botelho, Bernardo Marques, M. H. Vieira da Silva), pelo cinema e pelos novos poetas portugueses (Sophia, Jorge de Sena, O'Neill, Cinatti, Tomaz Kim)... Tudo isto era o dia-a-dia. Política O meu quarto avô foi Ministro do Reino depois da Revolução de 1820, o meu tio-bisavô Joaquim Pedro teve o percurso que se sabe. O fenómeno político atraiu-me sempre do lado da reflexão e das ideias. Nunca pensei em ter carreira política, ela foi surgindo. Sempre julguei que, antes de tudo, devia ter uma profissão e preservar a minha independência económica. Sou advogado, tive uma actividade docente na área das Finanças Públicas, dedico o tempo de lazer à história e à filosofia políticas. Mas a política é acção, por isso sinto um grande orgulho em ter contribuído, no Ministério da Educação, para o lançamento da rede de educação pré-escolar e para a consolidação das escolas profissionais. E agora estou muito empenhado numa agenda reformadora para a consolidação das finanças públicas e para a simplificação do sistema fiscal. Vida Consolidar uma cultura de direitos e deveres - eis o grande desafio que se nos põe. A dignidade humana tem de estar no centro universalista das nossas preocupações e dos nossos combates - contra a exclusão, o egoísmo e a indiferença. Como ligar liberdade e igualdade? Como compreender que igualdade e diferença são faces da mesma moeda? O meu querido amigo António Alçada Baptista costuma dizer: «O valor fundamental é a liberdade, e todas as tentativas de, a pretexto de outros valores, se suprir a liberdade levam a implantar as tiranias, as polícias políticas, as censuras e tudo o mais que não permite que as pessoas vivam dignamente.» Serviço e vocação É difícil falar do tema do serviço público. Hoje penso que o desprestígio da vida política (que não é de agora, basta lermos Tucídides ou Plutarco) deve-se à perda de um sentido claro de cidadania e de serviço público. Como Péguy diria, tudo começa em mística e acaba em política. Mas política, serviço público e sentido cívico têm de se ligar. Admiro, por isso, figuras como Gladstone, Disraeli, o nosso Braamcamp (que um dia pagou do seu bolso uma dívida do Estado), Churchill ou Roosevelt, porque dignificaram a política com entusiasmo e espírito de serviço. Continuo fiel a uma vocação mais centrada em princípios e valores, mas é muito difícil manter a acção política nesses limites. Vou persistindo. António Sérgio, Jaime Cortesão e Raul Proença ensinavam que a liberdade se conquista confrontando ideias e preservando as relações humanas. Acredito nos combates de ideias e nas suas virtualidades. Por isso, procuro sempre fugir à fulanização e ao imediatismo.

COMENTÁRIOS AO ARTIGO

3 comentários 1 a 3

11 de Novembro de 2001 às 21:47

Mosar Savali ( vilassa@hotmail.com )

Já diz o adágio “quem vê caras não vê corações”! Muito bem escrito, dá-nos este artigo uma nova dimensão do Ministro das Finanças. Não estivesse a Maria João Avilez acima de qualquer suspeita poder-se-ia suspeitar de campanha promocional. Nada disso, o homem até acredita nos números que apresenta ... Sr. Ministro, se gosta de fábulas conto-lhe a da convergência europeia: vai uma formiga (Portugal) e um elefante (Europa) a correr no deserto; comenta a formiga para o elefante – “olha para trás e vê a poeirada que estamos a fazer!”

11 de Novembro de 2001 às 04:35

borrego ( mariaferreira@netc.pt )

Como artigo pode considerar-se espectacular, bem escrito e de leitura agradável, querendo dar a imagem de uma personagem perfeita rodeada de pessoas perfeitas só que, infelizmente, Guilherme de Oliveira Martins como Ministro tem sido prejudicial quanto baste, ou será que tem uma varinha de condão para fabricar receitas que possam pagar uma administração pública e local completamente incontrolada, em que as dividas se acumulam de ano para ano? Será que ignora que os subsídios da CEE que deveriam ser aplicados em rentabilizar o País são gastos em obras mal administradas e em permanente derrapagem? E a enorme confusão que reina entre esses mesmos subsídios, dinheiros privados e dos contribuintes será que também tem uma punção mágica que os consiga separar? Como pode continuar a manter a disciplina e a serenidade desconhecendo os valores reais das inúmeras parcelas constantes do orçamento? Aparentemente pode parecer perfeito mas na realidade tem sido um autêntico desastre.

10 de Novembro de 2001 às 18:56

surpreso

Na escrita da M.J.

Avilez eles são sempre

uns amores.Nós só queriamos que ele tratasse bem das finanças publicas,que

é para isso que lhe

pagamos...

ENVIAR COMENTÁRIO

Guilherme de Oliveira Martins O melhor amigo que se pode ter

Uf! Que dia comprido! Estivemos com o ministro das Finanças de manhã até à noite e percebemos por que é que António Guterres diz que ele «é o melhor amigo que se pode ter, a melhor pessoa para trabalhar, um amigo íntimo» em que confia «inteiramente».

Texto de Maria João Avillez

Fotografias de Luiz Carvalho Poucas horas antes de tomar posse como ministro das Finanças, Guilherme d'Oliveira Martins, 49 anos, ouviu dois conselhos. O primeiro dado por um político avisado e experiente, cuja intuição nunca o deixou ficar mal: «Você ponha os olhos no dr. Salazar. Olhe que eu, que não sou suspeito, sei o que lhe digo. Contenção e autoridade, lembre-se de Salazar.» O outro conselho visava a ditadura mediática dos tempos que correm e quem o dava era um grande gestor: «Não se impressione com sondagens nem governe a olhar para elas. E ainda menos se aflija com os jornais e com aquelas 'setas' que põem as pessoas ora para baixo ora para cima...» Poucas horas antes de tomar posse como ministro das Finanças, Guilherme d'Oliveira Martins, 49 anos, ouviu dois conselhos. O primeiro dado por um político avisado e experiente, cuja intuição nunca o deixou ficar mal: «Você ponha os olhos no dr. Salazar. Olhe que eu, que não sou suspeito, sei o que lhe digo. Contenção e autoridade, lembre-se de Salazar.» O outro conselho visava a ditadura mediática dos tempos que correm e quem o dava era um grande gestor: «Não se impressione com sondagens nem governe a olhar para elas. E ainda menos se aflija com os jornais e com aquelas 'setas' que põem as pessoas ora para baixo ora para cima...» Não se sabe que caso fará o ministro destas sábias regras para uma boa governação. Mas eu sei que a sua vida não é fácil. Apesar de poder sempre contar com algumas das características que definem a sua maneira de ser - disciplina, paciência, pontualidade, serenidade -, que no seu específico caso se transformam automaticamente em ferramentas de trabalho, a tarefa que tem pela frente é ciclópica. Convencer o país, as oposições, a classe empresarial, os sindicatos, a sociedade civil, o povo, os portugueses de que assinou um bom Orçamento para 2002. Depois, fazê-lo aprovar no hemiciclo de S. Bento, mediante uma soma de votos cuja paternidade está ainda, pelo menos à hora a que escrevo, no segredo dos deuses. Em seguida, fazê-lo cumprir. E, «last but not least», dar-lhe o «qb» de saúde - que o mesmo é dizer de exequibilidade - de modo a não ter de produzir um orçamento rectificativo ainda no decurso desta «saison» político-parlamentar. E, se dermos ouvidos às dúvidas, reticências ou certezas «negativas» que escutei em todo o lado durante as muitas horas em que acompanhei o titular das Finanças através da sua agenda de trabalho, a tarefa não é ciclópica - é impossível. Mas quando o encontro, de manhã cedo, sorridente e em boa forma física, na sua casa - um acolhedor segundo andar numa rua da Lapa que consegue o milagre de abrigar mais de 10 mil livros -, tudo o que me poderia passar pela cabeça era que o documento fora já aprovado, sob o aplauso das oposições, tal a jovialidade do meu interlocutor. Mas quando o encontro, de manhã cedo, sorridente e em boa forma física, na sua casa - um acolhedor segundo andar numa rua da Lapa que consegue o milagre de abrigar mais de 10 mil livros -, tudo o que me poderia passar pela cabeça era que o documento fora já aprovado, sob o aplauso das oposições, tal a jovialidade do meu interlocutor. Esta «forma mentis» e a saúde física que a emoldura são afinal o resultado de uma avisada mistura entre alguns truques e dois ou três saudáveis princípios que se têm revelado «preciosos»: subir as escadas a pé sem nunca recorrer aos elevadores; dormir bem mesmo que pouco; «desligar» dos problemas sempre que chega a casa; ler todos os dias; andar a pé aos fins-de-semana; usar o garfo e o copo com parcimónia... E sobretudo, claro, esse ponto número 1 da sua Constituição pessoal: «Ter o trabalho de casa sempre em dia!» São oito horas e quinze minutos, e Guilherme d'Oliveira Martins já consultou alguns jornais estrangeiros na Internet, embora ele seja de uma colheita geracional que prefere «sempre lê-los em papel». A sua mulher, Manuela, camisa branca e calças cinzentas, está pronta para sair, a caminho do Centro Científico e Cultural de Macau, onde dirige os Serviços de Cultura e Museologia. Os filhos - Guilherme, Maria e Ana - também já partiram para as suas actividades profissionais. Guilherme e Maria são assistentes em Direito, Ana estuda Arquitectura. Segundos depois, o carro voa até ali perto. O dia está glorioso e convida a demorar o olhar nas belíssimas palmeiras e nas buganvílias da residência oficial do primeiro-ministro, onde Guilherme d'Oliveira Martins tem uma das suas moradas - um pequeno gabinete ao fundo do pátio de entrada -, aqui como ministro da Presidência. De manhã bem cedo, antes das oito, o ministro despede-se com um beijo de Manuela e inicia um longo dia de trabalho Está sempre às oito da manhã sentado à secretária do gabinete, e - supremo luxo! - o tempo é todo seu até às dez! O que lhe permite pôr em prática os três «s» que definem essas duas horas de liberdade e que simultaneamente o «armam» para os espinhos do dia: silêncio, sossego, solidão. A única coisa que muda é a geografia, pois as jornadas não são iguais umas às outras. Para além das pesadas solicitações das Finanças, há o resto, que é muito, nesta sua dupla tutela. Há as tarefas específicas da Presidência do Conselho de Ministros; há o encontro semanal de «coordenação política», no gabinete de António Guterres, às segundas-feiras de manhã; há a reunião de todos os secretários de Estados, tutelada e dirigida pelo ministro da Presidência, às terças de manhã; há as reuniões de coordenação - com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, José Magalhães - de toda a actividade parlamentar do Executivo, como idas ao hemiciclo, organização de interpelações, agendamento de debates, etc. Está sempre às oito da manhã sentado à secretária do gabinete, e - supremo luxo! - o tempo é todo seu até às dez! O que lhe permite pôr em prática os três «s» que definem essas duas horas de liberdade e que simultaneamente o «armam» para os espinhos do dia: silêncio, sossego, solidão. A única coisa que muda é a geografia, pois as jornadas não são iguais umas às outras. Para além das pesadas solicitações das Finanças, há o resto, que é muito, nesta sua dupla tutela. Há as tarefas específicas da Presidência do Conselho de Ministros; há o encontro semanal de «coordenação política», no gabinete de António Guterres, às segundas-feiras de manhã; há a reunião de todos os secretários de Estados, tutelada e dirigida pelo ministro da Presidência, às terças de manhã; há as reuniões de coordenação - com o secretário de Estado dos Assuntos Parlamentares, José Magalhães - de toda a actividade parlamentar do Executivo, como idas ao hemiciclo, organização de interpelações, agendamento de debates, etc. E, claro, há o Terreiro do Paço dessas Finanças que Oliveira Martins tutela há quatro meses, vasto labirinto que ele conhece «de cor» - e cuja história «teve o gosto» de publicar em livro, saído em 1988. Foi lá que iniciou a sua vida profissional e foi lá que voltou, há um bom par de anos, para exercer as funções de chefe de gabinete do então ministro Sousa Franco. Costuma até lembrar aos mais distraídos que «é dali e foi ali que começou». Mas agora pertence-lhe o melhor e mais luminoso gabinete - valha-lhe isso! -, por onde entra hoje, sublime e azul, uma nesga do Tejo. E, claro, há o Terreiro do Paço dessas Finanças que Oliveira Martins tutela há quatro meses, vasto labirinto que ele conhece «de cor» - e cuja história «teve o gosto» de publicar em livro, saído em 1988. Foi lá que iniciou a sua vida profissional e foi lá que voltou, há um bom par de anos, para exercer as funções de chefe de gabinete do então ministro Sousa Franco. Costuma até lembrar aos mais distraídos que «é dali e foi ali que começou». Mas agora pertence-lhe o melhor e mais luminoso gabinete - valha-lhe isso! -, por onde entra hoje, sublime e azul, uma nesga do Tejo. Mas não antecipemos. Em S. Bento, é recebido pelo seu chefe de gabinete, Rui Grilo - 27 anos e já algum currículo político -, e por duas secretárias. Guilherme d'Oliveira Martins cumprimenta todos com um aperto de mão e um largo sorriso. Vê-lo-ei cumprir este gesto vezes sem conta, ao longo do dia e para onde quer que vá. Para cada um - colaboradores, secretárias, contínuos, funcionários -, uma mão estendida: «Tem passado bem?» Conhece toda a gente, nenhuma cara lhe é estranha, trata cada pessoa pelo seu nome próprio, fora e dentro das fronteiras do universo político. A família, em 80, no baptizado de Ana, a mais nova dos três filhos do casa Mas daqui a pouco é hora da apresentação do OGE à Comissão de Economia e Finanças da Assembleia da República. Rui Grilo faz entrar os três secretários de Estado das Finanças, que o ministro convocara para «afinar os últimos pormenores». Chamam-se Rudolfo Lavrador, Rui Coimbra e Rogério Fernandes. O ministro assume que foi ele «quem os escolheu» - embora também se diga que lhe foram «impostos» de cima - e chama-lhes «os meninos de oiro». (Mais tarde, hei-de ouvir o próprio primeiro-ministro apelidá-los, diante de mim, de «meus meninos»...) O trio é simpático, jovem - demasiado jovem? -, uma espécie de três mosqueteiros que acreditam no êxito da sua empreitada, porque acima de tudo confiam - demasiado? - em si mesmos. Apetece quase dizer-lhes que, por este andar, podem tropeçar em sempre desaconselháveis excessos de confiança. Adivinho-os mobilizados por Oliveira Martins, que visivelmente respeitam tanto quanto admiram. Ficaram felizes com as «novidades» introduzidas pelo ministro, como essa de todos os dias 15 de cada mês dar publicamente conta das contas do Estado. Em nome do «rigor» e da «transparência», claro. Mas daqui a pouco é hora da apresentação do OGE à Comissão de Economia e Finanças da Assembleia da República. Rui Grilo faz entrar os três secretários de Estado das Finanças, que o ministro convocara para «afinar os últimos pormenores». Chamam-se Rudolfo Lavrador, Rui Coimbra e Rogério Fernandes. O ministro assume que foi ele «quem os escolheu» - embora também se diga que lhe foram «impostos» de cima - e chama-lhes «os meninos de oiro». (Mais tarde, hei-de ouvir o próprio primeiro-ministro apelidá-los, diante de mim, de «meus meninos»...) O trio é simpático, jovem - demasiado jovem? -, uma espécie de três mosqueteiros que acreditam no êxito da sua empreitada, porque acima de tudo confiam - demasiado? - em si mesmos. Apetece quase dizer-lhes que, por este andar, podem tropeçar em sempre desaconselháveis excessos de confiança. Adivinho-os mobilizados por Oliveira Martins, que visivelmente respeitam tanto quanto admiram. Ficaram felizes com as «novidades» introduzidas pelo ministro, como essa de todos os dias 15 de cada mês dar publicamente conta das contas do Estado. Em nome do «rigor» e da «transparência», claro. «Em respeito pelo contribuinte, todos os meses, em conferência de imprensa, anunciamos os números da execução orçamental. Faça sol ou faça chuva...» (Subentendido, sejam boas ou más as notícias a dar.) Mas - «nuance» - o titular das Finanças admite que prefere dizer «empenhamento» em vez de «voluntarismo» para classificar o «modo» da sua acção e, subitamente, ei-lo que ressuscita a fábula da «Lebre e da Tartaruga» para se confessar ferozmente adepto da tartaruga... Embora também confie - talvez a pensar para com os seus botões naquele conselho amigo que o mandava aprender com o dr. Salazar - que «sim, é verdade que assumo estar neste caminho com o pulso um pouco duro». «Em respeito pelo contribuinte, todos os meses, em conferência de imprensa, anunciamos os números da execução orçamental. Faça sol ou faça chuva...» (Subentendido, sejam boas ou más as notícias a dar.) Mas - «nuance» - o titular das Finanças admite que prefere dizer «empenhamento» em vez de «voluntarismo» para classificar o «modo» da sua acção e, subitamente, ei-lo que ressuscita a fábula da «Lebre e da Tartaruga» para se confessar ferozmente adepto da tartaruga... Embora também confie - talvez a pensar para com os seus botões naquele conselho amigo que o mandava aprender com o dr. Salazar - que «sim, é verdade que assumo estar neste caminho com o pulso um pouco duro». Às nove e trinta, todo este cortejo se apressa pelo caminho ladeado de densa vegetação que nos conduzirá dos jardins da residência para o Parlamento. Maravilhoso jardim - testemunha muda dos segredos de outros regimes e governos - que permanece hoje, na sua idílica graça e verde pujança, um dos mais belos parques de Lisboa. Mas já o loquaz José Magalhães nos aguarda numa das largas varandas de pedra do imenso edifício que abriga o Parlamento. Afinal, são os deputados da Comissão de Economia que tardam. Cravinho há-de chegar atrasado, e Medeiros Ferreira também, mas Manuela Ferreira Leite, presidente da Comissão, não se comove e dá início aos trabalhos «desta complexa maratona». O ministro explica com detalhe e rigor o documento que contém as próximas contas do Estado. Profere palavras fortes, fundamenta as suas opções, explicita-as, promete, tranquiliza. Antes, recordara com ênfase aos presentes que, «como deputado, estivera sempre naquela mesma Comissão». Talvez como garantia suplementar para os convencer de estar agora «muito empenhado numa agenda reformadora para a consolidação das finanças públicas e para a simplificação do sistema fiscal»... Mas já o loquaz José Magalhães nos aguarda numa das largas varandas de pedra do imenso edifício que abriga o Parlamento. Afinal, são os deputados da Comissão de Economia que tardam. Cravinho há-de chegar atrasado, e Medeiros Ferreira também, mas Manuela Ferreira Leite, presidente da Comissão, não se comove e dá início aos trabalhos «desta complexa maratona». O ministro explica com detalhe e rigor o documento que contém as próximas contas do Estado. Profere palavras fortes, fundamenta as suas opções, explicita-as, promete, tranquiliza. Antes, recordara com ênfase aos presentes que, «como deputado, estivera sempre naquela mesma Comissão». Talvez como garantia suplementar para os convencer de estar agora «muito empenhado numa agenda reformadora para a consolidação das finanças públicas e para a simplificação do sistema fiscal»... A sala era como se respondesse com «palavras leva-as o vento», enquanto com uma correcção que nunca excluiu a convicção o ministro insistia em alguns pontos de honra: o controlo da despesa pública; a convergência real com os nossos parceiros da União Europeia («uma preocupação fundamental que nunca podemos perder de vista...»); a continuidade fiscal sem perda de vista da eficiência e da equidade fiscais. E sempre contrapondo «a prudência ao optimismo» e «o rigor ao irrealismo», num «cenário de mobilização das pessoas»: «A economia europeia, e nela a economia portuguesa, tem fundamentos que permitem olharmos o futuro sem cair em lógicas pessimistas. Temos, sim, é de ser realistas, hora a hora, realistas. Não tivemos dúvidas em apresentar o cenário macroeconómico provisório para as grandes opções do Plano e em rever esse mesmo cenário quando apresentámos aqui o Orçamento de Estado.» A sala era como se respondesse com «palavras leva-as o vento», enquanto com uma correcção que nunca excluiu a convicção o ministro insistia em alguns pontos de honra: o controlo da despesa pública; a convergência real com os nossos parceiros da União Europeia («uma preocupação fundamental que nunca podemos perder de vista...»); a continuidade fiscal sem perda de vista da eficiência e da equidade fiscais. E sempre contrapondo «a prudência ao optimismo» e «o rigor ao irrealismo», num «cenário de mobilização das pessoas»: «A economia europeia, e nela a economia portuguesa, tem fundamentos que permitem olharmos o futuro sem cair em lógicas pessimistas. Temos, sim, é de ser realistas, hora a hora, realistas. Não tivemos dúvidas em apresentar o cenário macroeconómico provisório para as grandes opções do Plano e em rever esse mesmo cenário quando apresentámos aqui o Orçamento de Estado.» Beijo a Manuela Ferreira Leite, presidente da Comissão Parlamentar de Economia Mas se, durante cinco laboriosas horas, a saraivada não poupou a equipa das Finanças, nunca vi no rosto de Guilherme d'Oliveira Martins aquelas duas ou três gotas de suor que costumam assinalar os seus raros momentos de tensão ou que anunciam as suas raríssimas tempestades. Como ocorreu duas ou três vezes quando titulava a Educação, mas não mais. Tal como alguns amigos ou colaboradores mais antigos me tinham afiançado e pude comprovar, «o Guilherme nunca se altera e ainda menos se exaspera». Mas se, durante cinco laboriosas horas, a saraivada não poupou a equipa das Finanças, nunca vi no rosto de Guilherme d'Oliveira Martins aquelas duas ou três gotas de suor que costumam assinalar os seus raros momentos de tensão ou que anunciam as suas raríssimas tempestades. Como ocorreu duas ou três vezes quando titulava a Educação, mas não mais. Tal como alguns amigos ou colaboradores mais antigos me tinham afiançado e pude comprovar, «o Guilherme nunca se altera e ainda menos se exaspera». Por isso, hoje, quando o deputado popular Pires de Lima, abrindo as hostilidades, lhe atirou com «a desfaçatez das propostas ali ouvidas»; quando Lino de Carvalho, do PCP, disse ser preciso acrescentar um novo capítulo ao OGE, intitulado «Orçamento sem Credibilidade»; ou ainda quando o social-democrata Rui Rio lhe garantiu que «ou há perda de poder de compra dos salários ou este OGE não é cumprido», Oliveira Martins ouviu mas não pestanejou. Nem sequer quando o mesmo Rui Rio, face às intenções de contenção expressas no OGE, disparou que «fazer cortes sem reformas não serve para nada!», Oliveira Martins se afligiu. Nem quando, finalmente, ali se invocou com veemência «o milagre da multiplicação dos pães e dos peixes», comparando o OGE ao «milagre das rosas», ou quando as oposições desesperaram face à elástica bondade da aritmética destas contas, o ministro desarmou. Foto de família, em casa, em 1987 Uma prova de fogo revista por um diálogo de surdos. No final da «complexa maratona», espanto-me: o titular das Finanças, pelo contrário, achou que a manhã lhe tinha corrido bem. E mesmo que «a artilharia política tenha ficado guardada para a discussão parlamentar no hemiciclo, a artilharia técnica foi toda ali lançada». Pelos vistos, não o assustou. Uma prova de fogo revista por um diálogo de surdos. No final da «complexa maratona», espanto-me: o titular das Finanças, pelo contrário, achou que a manhã lhe tinha corrido bem. E mesmo que «a artilharia política tenha ficado guardada para a discussão parlamentar no hemiciclo, a artilharia técnica foi toda ali lançada». Pelos vistos, não o assustou. Mas já a agenda se impõe, e um dos segredos deste homem meticuloso é não falhar nem saltar nenhum dos compromissos do dia. Corre-se para o Hotel Ritz, onde o aguarda o Fórum de Administradores de Empresas, liderado por Leal Martinho, presidente do Instituto dos Seguros de Portugal. Após uma salada engolida a correr - não houve tempo para mais -, o ministro salta para o palanque, afina o microfone e começa a falar. Ou, melhor, a tranquilizar os espíritos: «Conheço os entraves e as burocracias do meu Ministério, conheço a lentidão da 'casa'. Trabalhei muitos anos nas Finanças, estudei-as, venho de lá... E sabem que o optimismo não é a minha atitude...» Depois, repetem-se os argumentos. Só o auditório - onde se vêem Miguel Beleza, Medina Carreira, Jardim Gonçalves, José Morais Cabral, Nogueira de Brito, entre uma centena de outros - difere nesta plateia de atentos comensais. Com os três secretários de Estado, de gravatas às riscas Mas uma vez mais constato aquilo que é timbre de Oliveira Martins. E que constitui uma identidade, pessoal e intransmissível, que forçosamente tem de ser aqui invocada, se se pretende a nitidez da radiografia. É que Guilherme d'Oliveira Martins apela a um imediato consenso sobre a idoneidade dos seus propósitos e a seriedade da sua postura cívica e moral, convocando de caminho as imediatas, ou melhor, as automáticas boas intenções das mais diversificadas assembleias. Opositores ou adversários, pares ou correligionários, amigos ou conhecidos vestem-se de uma espécie de pré-disposição para acreditar que ele está «a dizer a verdade». Mas uma vez mais constato aquilo que é timbre de Oliveira Martins. E que constitui uma identidade, pessoal e intransmissível, que forçosamente tem de ser aqui invocada, se se pretende a nitidez da radiografia. É que Guilherme d'Oliveira Martins apela a um imediato consenso sobre a idoneidade dos seus propósitos e a seriedade da sua postura cívica e moral, convocando de caminho as imediatas, ou melhor, as automáticas boas intenções das mais diversificadas assembleias. Opositores ou adversários, pares ou correligionários, amigos ou conhecidos vestem-se de uma espécie de pré-disposição para acreditar que ele está «a dizer a verdade». É certo que o Governo está desacreditado e que o primeiro-ministro - apesar das sacrossantas sondagens - já pouco convence. É verdade que, tal como esta manhã aconteceu no Parlamento, as propostas do OGE também não excitaram nem convenceram esta poderosa sala do Ritz. E é sobretudo ainda mais certo que este parece ser o mais espinhoso desafio que Oliveira Martins jamais teve pela frente. Ao almoço com Jardim Gonçalves Tão espinhoso e incerto ele é que começa a ouvir-se, aqui e ali, mais alto ou mais baixo, que «a conciliação tem um limite», que «o ministro exagera nos seus vácuos consensos», preferindo-os sempre «às firmes escolhas». Ou que «a seriedade do seu carácter pode sair ferida de uma prova destas»... Por isso mesmo, caberá perguntar se, tal como até aqui, Oliveira Martins vai continuar a beneficiar desse suplemento de crédito que tem cimentado o seu caminho cívico e político, para depois perguntar até quando... Tão espinhoso e incerto ele é que começa a ouvir-se, aqui e ali, mais alto ou mais baixo, que «a conciliação tem um limite», que «o ministro exagera nos seus vácuos consensos», preferindo-os sempre «às firmes escolhas». Ou que «a seriedade do seu carácter pode sair ferida de uma prova destas»... Por isso mesmo, caberá perguntar se, tal como até aqui, Oliveira Martins vai continuar a beneficiar desse suplemento de crédito que tem cimentado o seu caminho cívico e político, para depois perguntar até quando... Pouco passa das quinze horas quando a eficiente Edite Coelho - ex-autarca e actual chefe da assessoria de imprensa do titular das Finanças -, sentada na parte da frente do BMW preto e falando incessantemente por um telemóvel que nunca largará, avisa que o primeiro-ministro já está em S. Bento. De novo passamos o portão verde da residência oficial. Os três filhos em Boliqueime No seu gabinete, aberto para o sol desta tarde de Verão e «dominado» por uma impressionante Menez que o chefe do Executivo me diz ser «da sua maior estimação», António Guterres não tropeça nas palavras: «Quer que lhe fale do Guilherme? É muito simples: é o melhor amigo que se pode ter; é seguramente a melhor pessoa para trabalhar. É um amigo íntimo ('Desde quando é que nos conhecemos? Foi na Sedes, não foi, pá?'), no qual confio inteiramente. No que toca às tarefas do Governo, é o meu braço direito, talvez o mesmo que o Jorge Coelho em relação ao partido. E... (pausa) tenho a certeza de ser uma pessoa que, quando morrer, vai direita para o céu.» No seu gabinete, aberto para o sol desta tarde de Verão e «dominado» por uma impressionante Menez que o chefe do Executivo me diz ser «da sua maior estimação», António Guterres não tropeça nas palavras: «Quer que lhe fale do Guilherme? É muito simples: é o melhor amigo que se pode ter; é seguramente a melhor pessoa para trabalhar. É um amigo íntimo ('Desde quando é que nos conhecemos? Foi na Sedes, não foi, pá?'), no qual confio inteiramente. No que toca às tarefas do Governo, é o meu braço direito, talvez o mesmo que o Jorge Coelho em relação ao partido. E... (pausa) tenho a certeza de ser uma pessoa que, quando morrer, vai direita para o céu.» Depois deste atestado tão eloquentemente sincero, resta-me respirar fundo. António Guterres, bem-disposto - as últimas sondagens fizeram voltar-lhe a cor ao rosto (o que lá vai, lá vai?) -, afiança-me que «tudo vai bem», que «o pior já passou», e nem ilude de resto esse «pior». E está tão confiante que nem sequer «vê razão nenhuma para o Orçamento não passar o exame parlamentar». Não é verdade que «as oposições são as primeiras a querer que ele passe?»... Depois deste atestado tão eloquentemente sincero, resta-me respirar fundo. António Guterres, bem-disposto - as últimas sondagens fizeram voltar-lhe a cor ao rosto (o que lá vai, lá vai?) -, afiança-me que «tudo vai bem», que «o pior já passou», e nem ilude de resto esse «pior». E está tão confiante que nem sequer «vê razão nenhuma para o Orçamento não passar o exame parlamentar». Não é verdade que «as oposições são as primeiras a querer que ele passe?»... Entretanto, aguarda as eleições autárquicas com «serenidade» e, de caminho, elogia o PP (diz-me quem elogias, dir-te-ei porque o fazes?). Elogia o Partido Popular na pessoa do dr. Portas, pelo seu contributo na aprovação de leis de «uma enorme sensibilidade e importância políticas para o país, como foram a das Forças Armadas e a da Imigração». E, quando quero saber em que se irá traduzir politicamente a sua admiração pela capacidade patriótica do PP, logo ele atalha: «Agora vai deixar-me trabalhar um bocadinho com o Guilherme, não vai?» Guilherme, Maria (ambos assistentes em Direito) e Ana (estudante de Arquitectura): os três filhos do casal, de férias em Amesterdão, em 1999 Saio com um livro debaixo do braço, «O Palacete de S. Bento», que ali me foi oferecido. (Fiquei a saber coisas que não sabia, como por exemplo que a casa, construída em 1877 num parque de dois hectares, foi mandada erguer por um «brasileiro de torna viagem», Joaquim Machado Cayres - português nascido em Braga que emigrou para terras brasileiras e lá fez fortuna -, só vindo a ser morada de chefe do Governo em 1937.) Saio com um livro debaixo do braço, «O Palacete de S. Bento», que ali me foi oferecido. (Fiquei a saber coisas que não sabia, como por exemplo que a casa, construída em 1877 num parque de dois hectares, foi mandada erguer por um «brasileiro de torna viagem», Joaquim Machado Cayres - português nascido em Braga que emigrou para terras brasileiras e lá fez fortuna -, só vindo a ser morada de chefe do Governo em 1937.) Meia hora depois, cumprindo aquele são princípio que a si mesmo se impôs («uma coisa de cada vez, porque o 'stress' é estar-se sempre a pensar na próxima coisa...»), Oliveira Martins agarra o novo compromisso da sua agenda. Destino: um vasto gabinete do Ministério das Finanças. Não o seu, mas um outro, no segundo andar, onde reúne a Unidade de Coordenação contra a Evasão e a Fraude Fiscal e Aduaneira (UCLEFA), uma comissão presidida pelo próprio titular das Finanças. Objectivo? Lutar contra tais «flagelos», para um dia acabar com eles. Agarrado à pasta, Oliveira Martins sossega os seus interlocutores: «Conheço os entraves e as burocracias do meu Ministério. Conheço a lentidão da casa» Este órgão do Conselho Superior de Finanças é integrado por representantes de diversos organismos do Estado (Direcções-Gerais, Polícias, Inspecções, etc.). São 16 pessoas ali sentadas à roda de uma mesa em forma de ferradura, numa sala com vista para o rio e com telas de Pedro Chorão, Jorge Martins e Ângelo de Sousa nas paredes. Este órgão do Conselho Superior de Finanças é integrado por representantes de diversos organismos do Estado (Direcções-Gerais, Polícias, Inspecções, etc.). São 16 pessoas ali sentadas à roda de uma mesa em forma de ferradura, numa sala com vista para o rio e com telas de Pedro Chorão, Jorge Martins e Ângelo de Sousa nas paredes. O ministro ouve atentamente cada um, à vez, fazer os diversos pontos de situação e cruzar informações com vista ao «desenvolvimento de acções concertadas na luta contra as fraudes tributárias». E, no final, deixa um alento e simultaneamente um aviso: «O sentido da minha presença aqui é dar prioridade máxima ao trabalho desta Comissão. Mas é preciso aperfeiçoar a legislação que permita o controlo efectivo de todas as situações que levam à evasão fiscal...» A tarde já esmorece, mas a agenda ainda vai a meio. Guilherme d'Oliveira Martins desce um andar («Finalmente», diz o ministro, com a alegria de quem chega a «casa») e entra no seu próprio gabinete. A assessora de imprensa e a secretária, Ana Gomes, trazem chá e um tabuleiro com aquelas bolachas marca «ministro»: sortidas e demasiado doces. Mas desta vez vêm também sanduíches, igualmente sortidas, porque o ministro, «coitado», quase não almoçou. E quem melhor do que as secretárias para velar pela boa «manutenção» do «chefe» bem amado? Mas - «dommage» - esta tarde não está Luísa Sousa Coutinho, 30 anos, a mais nova mas aqui a mais «antiga»: colabora com Guilherme d'Oliveira Martins desde os tempos da Sedes, já lá vão mais de 12 anos, e nunca trabalhou noutro lado. A assessora de imprensa e a secretária, Ana Gomes, trazem chá e um tabuleiro com aquelas bolachas marca «ministro»: sortidas e demasiado doces. Mas desta vez vêm também sanduíches, igualmente sortidas, porque o ministro, «coitado», quase não almoçou. E quem melhor do que as secretárias para velar pela boa «manutenção» do «chefe» bem amado? Mas - «dommage» - esta tarde não está Luísa Sousa Coutinho, 30 anos, a mais nova mas aqui a mais «antiga»: colabora com Guilherme d'Oliveira Martins desde os tempos da Sedes, já lá vão mais de 12 anos, e nunca trabalhou noutro lado. O ministro senta-se, serve-se de uma sanduíche, bebe um golo de chá. Depois mostra uma minúscula agenda, que tira de um bolso - cada dia já passado tem um traço sobre cada solicitação. «É um dos meus segredos, nunca deixar nada para o dia seguinte. À medida que cumpro cada compromisso faço um risco por cima. É psicológico, assim não fico com eles a perturbarem-me a memória. E as coisas vão-se fazendo, cada uma de sua vez. Está a ver aqui o dia de hoje?» Estou a ver: faltam riscar três linhas, as três últimas deste dia. Guilherme e Manuela em Amesterdão, em 1999 Terminado o chá, Guilherme d'Oliveira Martins levanta-se, abre o seu computador, procura qualquer coisa. É uma impressiva e nostálgica fotografia de Veneza tirada por Rui Grilo, o seu chefe de gabinete da Presidência do Conselho de Ministros. Oliveira Martins é também ele fotógrafo amador, embora o que lhe esteja mais no jeito - e no dotado traço - seja a banda desenhada, de que é fã e que «pratica», desenhando e escrevendo os textos. «É que não é com números e cifrões que se faz a vida...» Terminado o chá, Guilherme d'Oliveira Martins levanta-se, abre o seu computador, procura qualquer coisa. É uma impressiva e nostálgica fotografia de Veneza tirada por Rui Grilo, o seu chefe de gabinete da Presidência do Conselho de Ministros. Oliveira Martins é também ele fotógrafo amador, embora o que lhe esteja mais no jeito - e no dotado traço - seja a banda desenhada, de que é fã e que «pratica», desenhando e escrevendo os textos. «É que não é com números e cifrões que se faz a vida...» Mas eis que o chefe de gabinete, José Castel-Branco, faz entrar o professor Fernando Teixeira Santos, presidente da Comissão do Mercado de Valores Imobiliários. Nova reunião - periódica, aliás -, para avaliar «da boa saúde dos mercados financeiros». Uma hora depois - é quase noite -, os «mosqueteiros» entram mais uma vez em cena. Sorriem, são corteses - dou comigo a pensar que podiam ter gravatas mais bonitas -, sentam-se à roda da grande mesa situada num dos lados do gabinete. O ministro só dá o dia por terminado quando todas as tarefas agendadas foram cumpridas Tal como o dia, o Tejo já perdeu luminosidade, e o azul quase só se adivinha no espelho da água. Guilherme d'Oliveira Martins, Rogério Fernandes, Rui Coimbra e Rudolfo Lavrador abrem os respectivos cadernos, puxam das canetas, falam baixo. Estarão assim durante mais de uma hora, numa espécie de julgamento do dia, de «compte rendu» do que ouviram, do que deve ser «mexido» ou «reanalisado». E não me escondem uma imensa satisfação com os números que acabam de obter (e que hão-de ser divulgados daqui a dias pelo Instituto Nacional de Estatística), que provam que Portugal, «afinal», cresceu mais este ano do que a média europeia. Tal como o dia, o Tejo já perdeu luminosidade, e o azul quase só se adivinha no espelho da água. Guilherme d'Oliveira Martins, Rogério Fernandes, Rui Coimbra e Rudolfo Lavrador abrem os respectivos cadernos, puxam das canetas, falam baixo. Estarão assim durante mais de uma hora, numa espécie de julgamento do dia, de «compte rendu» do que ouviram, do que deve ser «mexido» ou «reanalisado». E não me escondem uma imensa satisfação com os números que acabam de obter (e que hão-de ser divulgados daqui a dias pelo Instituto Nacional de Estatística), que provam que Portugal, «afinal», cresceu mais este ano do que a média europeia. E, quando já passa bastante das nove horas da noite, entra - para ficar - o último senhor do dia: é José Castel-Branco, que avança munido da grande pasta preta para o sagrado «despacho». Sagrado porque, salvo emergência ou catástrofe de última hora, este ritual nunca «transita» para o dia seguinte. É outro segredo de como bem gerir uma agenda pesada. Até à votação do OGE, não há trégua nem pausa. Talvez, quando muito, um pouco de tempo «roubado aos domingos» para o ensaio que Oliveira Martins se comprometeu a escrever sobre dois nomes das letras portuguesas: «Nemésio e Régio, Caminhos Cruzados». Porque, com ele, os tempos livres - eufemismo - são sempre partilhados com os livros, a escrita, a leitura, a investigação, o estudo. E com a família, claro. Manuela, os filhos, Guilherme, Maria e Ana, ponto fulcral de todos os equilíbrios e afectos, ponto nevrálgico de onde tudo parte e porto de abrigo onde Guilherme d'Oliveira Martins sempre regressa ao fim de dias como este. Amanhã é outro dia. Cada coisa de sua vez. 38

Por Guilherme Família É para mim fundamental o apoio da família. É na «tribo» que encontro a base fundamental de apoio. É o melhor lugar de refúgio. Não dispenso o serão, os fins-de-semana, as férias (cada vez mais pequenas) e a Páscoa numa cidade fora do país. Gostamos muito de proteger a família da exposição pública. Estou casado há quase 26 anos com a Manuela. O Guilherme e a Maria já são assistentes universitários em Direito, e a Ana está no 4º ano de Arquitectura. Além do núcleo fundamental, tenho uma família muito grande e dispersa de que gosto de estar próximo. Deus e Igreja Deus. Tenho fé, o que é tudo menos uma adesão sem dúvida e sem exigência. S. Paulo diria: «Hoje vemos como por um espelho, de maneira confusa, mas então veremos face a face» (Cor. 13.12). Sempre que releio o «Sermão da Montanha» encontro novos motivos para continuar sem ceder à facilidade. Igreja. Quando se está na vida política, tem de ficar claro que a laicidade, a liberdade religiosa e a separação das esferas são respeitadas. O cristianismo não propõe um projecto político, mas responsabilidades especiais de rectidão. A Igreja é um corpo místico, devendo, por isso, ser um factor de Paz e de Liberdade. Escola Infância? Tenho uma imagem simpática desse tempo distante. Fui muito marcado pela leitura, pela escrita e pelo vício incorrigível dos livros. Frequentei a Escola Primária Nº 6, em Campo de Ourique, e o Liceu de Pedro Nunes - aí fiz amizades e ainda hoje recordo esses tempos. Lembro-me, por exemplo, do deslumbramento ao ler a «Odisseia», na versão de João de Barros, aos 10 anos, e de passar os sábados às voltas com as enciclopédias do meu avô. Tive óptimos professores, mas os melhores educadores foram os meus pais. O exemplo pessoal foi fundamental. A minha mãe tinha uma paciência infinita para a Matemática e as Ciências, e recordo bem ter aprendido, por exemplo, os mistérios e segredos da mitologia grega ou as biografias de Cimabue, de Dante ou de Rembrandt com o meu pai. Visitámos (somos três irmãos) todos os museus que havia para visitar, sempre em visitas guiadas em família... Cultura Em casa dos meus avós paternos a literatura, a arte ou a poesia eram temas quotidianos. Cultivava-se Antero, Eça, Camilo, mas também Nemésio ou Régio. Recordo-me de ouvir relatos fantásticos de viagens às grandes capitais europeias (como a visita ao Hermitage por um primo afastado que eu sempre identifiquei com o conde Pedro de «Guerra e Paz») ou de uma expedição épica do meu avô ao Recife para falar sobre a batalha de Guararapes... Os mais novos entusiasmavam-se pelo existencialismo (Kierkegaard, Chestov), pelo modernismo (Orpheu, Pessoa, Sá-Carneiro), pelos artistas (Botelho, Bernardo Marques, M. H. Vieira da Silva), pelo cinema e pelos novos poetas portugueses (Sophia, Jorge de Sena, O'Neill, Cinatti, Tomaz Kim)... Tudo isto era o dia-a-dia. Política O meu quarto avô foi Ministro do Reino depois da Revolução de 1820, o meu tio-bisavô Joaquim Pedro teve o percurso que se sabe. O fenómeno político atraiu-me sempre do lado da reflexão e das ideias. Nunca pensei em ter carreira política, ela foi surgindo. Sempre julguei que, antes de tudo, devia ter uma profissão e preservar a minha independência económica. Sou advogado, tive uma actividade docente na área das Finanças Públicas, dedico o tempo de lazer à história e à filosofia políticas. Mas a política é acção, por isso sinto um grande orgulho em ter contribuído, no Ministério da Educação, para o lançamento da rede de educação pré-escolar e para a consolidação das escolas profissionais. E agora estou muito empenhado numa agenda reformadora para a consolidação das finanças públicas e para a simplificação do sistema fiscal. Vida Consolidar uma cultura de direitos e deveres - eis o grande desafio que se nos põe. A dignidade humana tem de estar no centro universalista das nossas preocupações e dos nossos combates - contra a exclusão, o egoísmo e a indiferença. Como ligar liberdade e igualdade? Como compreender que igualdade e diferença são faces da mesma moeda? O meu querido amigo António Alçada Baptista costuma dizer: «O valor fundamental é a liberdade, e todas as tentativas de, a pretexto de outros valores, se suprir a liberdade levam a implantar as tiranias, as polícias políticas, as censuras e tudo o mais que não permite que as pessoas vivam dignamente.» Serviço e vocação É difícil falar do tema do serviço público. Hoje penso que o desprestígio da vida política (que não é de agora, basta lermos Tucídides ou Plutarco) deve-se à perda de um sentido claro de cidadania e de serviço público. Como Péguy diria, tudo começa em mística e acaba em política. Mas política, serviço público e sentido cívico têm de se ligar. Admiro, por isso, figuras como Gladstone, Disraeli, o nosso Braamcamp (que um dia pagou do seu bolso uma dívida do Estado), Churchill ou Roosevelt, porque dignificaram a política com entusiasmo e espírito de serviço. Continuo fiel a uma vocação mais centrada em princípios e valores, mas é muito difícil manter a acção política nesses limites. Vou persistindo. António Sérgio, Jaime Cortesão e Raul Proença ensinavam que a liberdade se conquista confrontando ideias e preservando as relações humanas. Acredito nos combates de ideias e nas suas virtualidades. Por isso, procuro sempre fugir à fulanização e ao imediatismo.

COMENTÁRIOS AO ARTIGO

3 comentários 1 a 3

11 de Novembro de 2001 às 21:47

Mosar Savali ( vilassa@hotmail.com )

Já diz o adágio “quem vê caras não vê corações”! Muito bem escrito, dá-nos este artigo uma nova dimensão do Ministro das Finanças. Não estivesse a Maria João Avilez acima de qualquer suspeita poder-se-ia suspeitar de campanha promocional. Nada disso, o homem até acredita nos números que apresenta ... Sr. Ministro, se gosta de fábulas conto-lhe a da convergência europeia: vai uma formiga (Portugal) e um elefante (Europa) a correr no deserto; comenta a formiga para o elefante – “olha para trás e vê a poeirada que estamos a fazer!”

11 de Novembro de 2001 às 04:35

borrego ( mariaferreira@netc.pt )

Como artigo pode considerar-se espectacular, bem escrito e de leitura agradável, querendo dar a imagem de uma personagem perfeita rodeada de pessoas perfeitas só que, infelizmente, Guilherme de Oliveira Martins como Ministro tem sido prejudicial quanto baste, ou será que tem uma varinha de condão para fabricar receitas que possam pagar uma administração pública e local completamente incontrolada, em que as dividas se acumulam de ano para ano? Será que ignora que os subsídios da CEE que deveriam ser aplicados em rentabilizar o País são gastos em obras mal administradas e em permanente derrapagem? E a enorme confusão que reina entre esses mesmos subsídios, dinheiros privados e dos contribuintes será que também tem uma punção mágica que os consiga separar? Como pode continuar a manter a disciplina e a serenidade desconhecendo os valores reais das inúmeras parcelas constantes do orçamento? Aparentemente pode parecer perfeito mas na realidade tem sido um autêntico desastre.

10 de Novembro de 2001 às 18:56

surpreso

Na escrita da M.J.

Avilez eles são sempre

uns amores.Nós só queriamos que ele tratasse bem das finanças publicas,que

é para isso que lhe

pagamos...

ENVIAR COMENTÁRIO

marcar artigo