Intervenção de Lino de Carvalho

08-01-2001
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Interpelação ao Governo sobre combate à evasão e fraude fiscal

Intervenção de Lino de Carvalho na Assembleia da República

22 de Dezembro de 1999

Senhor Presidente,

Senhores Membros do Governo,

Senhores Deputados,

Quantos grupos de trabalho foram criados nos últimos anos com o objectivo de se avançar para a reforma do sistema fiscal?

Quantos relatórios foram produzidos? Quantos estudos foram realizados? Quantas propostas foram avançadas?

Foi o relatório da Comissão Para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, presidida pelo Dr. Silva Lopes; foi a Comissão de Reforma da Tributação do Património, dirigida pelo Dr. Medina Carreira; foram e são os relatórios sobre o Regime Fiscal do Reporte de Prejuízos, sobre a Situação de Evasão Fiscal no âmbito dos Impostos Especiais sobre o Consumo (em resultado, aliás, de uma proposta do PCP), sobre o Imposto Automóvel, sobre a Contribuição Autárquica, sobre o IVA, sobre o IRS e o IRC, sobre os Benefícios Fiscais, sobre a Tributação das Instituições Financeiras e, seguramente, estes são só alguns dos muitos exemplos que se poderiam inventariar.

Não faltam em Portugal estudos de diagnóstico nem propostas sobre a gravíssima situação que atravessa hoje o nosso sistema fiscal, em particular no que toca à evasão e fraude fiscal. O que tem faltado, o que falta, é vontade política para confrontar os interesses estabelecidos e fazer reformas que necessariamente abalam os interesses instalados, que beneficiam das iniquidades do actual modelo, mas que permitiriam começar a caminhar-se no sentido de virmos a ter no nosso País um sistema fiscal mais eficaz e socialmente mais justo.

O que se passou com o Projecto de Reforma do Tributação do Património é um caso exemplar. Resultado de uma deliberação do Conselho de Ministros e de um despacho do então Ministro das Finanças que definia claramente o mandato da Comissão presidida pelo Dr. Medina Carreira e onde se estabelecia como linha orientadora a criação do “imposto único sobre o património” que “incidirá sobre o valor dos bens imóveis e sobre os valores patrimoniais mobiliários”, logo que foi tornado público e que a direita portuguesa, com relevo para o CDS/PP nesta Assembleia e as grandes associações patronais se insurgiram contra propostas que iriam tocar nas grandes fortunas que hoje pouco ou nada pagam, logo o Governo do PS, pressuroso, meteu a viola no saco e mais um relatório foi para a gaveta. Indignamente, preferiu deixar cair o Dr. Medina Carreira a assumir politicamente o relatório que o próprio Governo tinha encomendado.

Mas já o mesmo se tinha passado com a Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal do Dr. Silva Lopes. As propostas mais estruturantes, que implicavam algum grau de ruptura, como é o caso da abertura do sigilo bancário para efeitos fiscais ou de alguma redução dos benefícios fiscais, foram também ignoradas ou mesmo explicitamente recusadas.

Relatórios atrás de relatórios, estudos atrás de estudos, propostas atrás de propostas, o seu destino tem sido invariavelmente o mesmo: a gaveta. É uma evidência que o PS não quer fazer nenhuma reforma fiscal de fundo que, designadamente, combata a evasão e a fraude fiscal. Nem sequer acciona a fiscalização tributária em direcção aos grandes contribuintes. Pelo contrário. É significativo e escandaloso, por exemplo, que quando já na fase final do Governo PS na anterior legislatura foi decidido incrementar as acções de fiscalização tributária os primeiros – e quiçá os únicos – contribuintes que foram visitados e interpelados pelas repartições de finanças tivessem sido os trabalhadores por conta de outrém, os contribuintes do mod. 1 do IRS. Como é uma evidência que o PS escamoteia essa sua manifesta falta de vontade política com muita conversa, torrentes de palavras, nomeação de muitos grupos de trabalho, elaboração de muitos relatórios, mas que não passam disso mesmo: relatórios de que não se tiram nenhumas consequências globais.

E no entanto, senhores deputados, o diagnóstico há muito que está feito e mesmo o tratamento há muito que está medicado.

Em Portugal, só os trabalhadores por conta de outrém pagam impostos.

O IRS é responsável por 46,3% (com base nos dados do Orçamento de Estado para 1999) das receitas fiscais do Estado. Mas o IRC só é responsável por 29,6% daquelas receitas.

Dentro do IRS as declarações das categorias A e H (rendimentos do trabalho por conta de outrém e pensões de reforma) correspondem a 88,4% dos rendimentos declarados, as da categoria B (rendimentos do trabalho independente) só a 3% e da categoria C (rendimentos comerciais e industriais) 4,1%. Enquanto, em média, os trabalhadores por conta de outrém e os pensionistas e reformados declaram um rendimento médio anual de 2.000 contos, as profissões liberais não vão além dos 900 contos e no comércio e indústria o valor fica-se pelos 635 contos. Não é por isso de estranhar que cada trabalhador assalariado pague, em média, 195 contos / ano de IRS e os empresário em nome individual tão sómente 33.000$00. Citemos aqui o Dr. Medina Carreira: Há “perto de 700.000 empresários em nome individual. Conjuntamente com muitos outros contribuintes sujeitos a regime similar, como foi possível que produzissem 8% a 10% de IRS liquidado?”. E afirma ainda que existindo “quase 80.000 gerentes e administradores de sociedades conhecidos na Segurança Social, número aliás inverosímil face às 150.000 ou 200.000 sociedade existentes, como é possível que todos eles, em conjunto com muitos milhares de quadros superiores de empresas, produzissem 1665 agregados com rendimentos superiores a 10.000 contos?”.

Quanto ao IRC o diagnóstico também há muito que está traçado. 2/3 das empresas não pagam, em geral um tostão de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas. 143.000 empresas, muitas vezes sempre as mesmas, não pagam sistematicamente IRC. O número de sociedades a declarar prejuízo triplicou em sete anos. 64% das empresas não são colectadas. De entre 150.000 a 182.000 pessoas colectivas sujeitas a IRC, 1786 produzem mais de 70% da colecta total. As empresas públicas são, entretanto, responsáveis por mais de 70% do IRC cobrado. Quando são privatizadas, muitas delas deixam de pagar impostos.

A tributação das instituições financeiras é outro escândalo. De acordo com o último relatório do Banco de Portugal, os bancos obtiveram, em 1998, 338 milhões de contos de lucros antes de impostos. Se tivessem pago os 34% de IRC isso corresponderia a 115 milhões de contos de impostos que o Estado deveria arrecadar. Mas, afinal, só pagaram 68,2 milhões de contos o que equivale a uma taxa de tributação efectiva de 20,2%. E isto já depois de descontadas as amortizações e provisões do exercício que, como qualquer técnico sabe, são um armazém “legal” para onde se stockam grande parte dos lucros. Porque se a análise fosse feita unicamente com base no cash-flow então o valor dos resultados líquidos positivos montaria a 693,4 milhões de contos. Isto quereria dizer que a taxa de tributação efectiva em IRC pelo imposto que foi pago corresponde tão somente a uma taxa de tributação efectiva de 9,8%.

A evasão e a fraude fiscal em Portugal atingem, pois, valores monstruosos que os Governos não mostram vontade efectiva de corrigir. Fosse o PSD. Seja o PS.

Mas onde é que radica esta brutal evasão fiscal?

Citarei quatro áreas significativas: os benefícios fiscais, o off-shore da Madeira, os alegados prejuízos fiscais e a evasão em sede de IVA no comércio intracomunitário e nos impostos especiais de consumo.

Quanto aos benefícios fiscais. A posição do PCP é muito clara. Nós não somos contra os benefícios fiscais em abstracto. Compreendemos e acolhemos o conjunto de benefícios fiscais que tenham uma função social (como é o caso da saúde, da educação ou da habitação) ou de estímulo ao investimento produtivo criador de emprego, designadamente ao nível das micro e das pequenas e médias empresas bem como das regiões mais carenciadas de investimento. Mas não estamos de acordo com os múltiplos benefícios que são concedidos em sede de movimentos financeiros e cambiais, privatização de empresas ou operações contratualizadas com grandes empresas e grupos económicos, designadamente multinacionais, que se instalam em Portugal com esses apoios e que, depois, na primeira oportunidade, voam para outras paragens, negociando novos apoios e deixando atrás de si um rasto de desemprego, depressão e prejuízos para o Estado. Os exemplos são incontáveis. E agravaram-se desde a chegada do Partido Socialista ao Governo. Dos 132,6 milhões de contos de despesa fiscal do Estado em 1995, chegou-se quase aos 300 milhões de contos em 1999. Mais 120,9%. Só nos benefícios concedidos em operações da bolsa o aumento, entre 1995 e 1999, é de 70,6%. Em isenções diversas de natureza temporária ou definitiva o incremento foi de 359,6% e, em IRS, o aumento nos benefícios fiscais em Operações Públicas de Vendas (privatizações) foi de 2736,1%. Quanto a benefícios contratualizados com multinacionais permitam-me que aproveite esta intervenção para trazer aqui uma questão actual que está a ocorrer com a multinacional SIEMENS, no círculo por onde sou eleito, Évora. A SIEMENS contratualizou com o Estado português um conjunto de benefícios fiscais com vista à instalação de uma nova unidade industrial em Évora. Depois disso, decidiu pôr à venda uma das unidades que terá sido adquirida por uma multinacional americana, a TYCO INTERNACIONAL, com sede num paraíso fiscal, as Bermudas e que de imediato começou a pressionar os trabalhadores para rescindir os respectivos contratos. Pelo menos, 120 trabalhadores estão a ser obrigados a sair da empresa. Mas desde o início da instalação da nova unidade que esse número ascende a cerca de 300 postos de trabalho liquidados. Há fortes suspeitas que levam a crer que – à semelhança do que aconteceu com a Texas Instruments Samsung – estamos perante uma operação visando a breve prazo deslocalizar a empresa para outras paragens. E o que faz o Governo que quando foi inaugurar a nova fábrica teceu elogios à empresa e lhe concedeu milhões de contos em benefícios fiscais contratualizados? Quais eram os compromissos da multinacional? Quais as suas contrapartidas em matéria de investimento e de salvaguarda e criação de emprego? Daqui exigimos que o Governo não ignore mais este grave problema e que intervenha, com urgência para evitar que mais umas centenas de trabalhadores vão para o desemprego e que mais uma multinacional se fique a rir embolsando milhões de contos do Estado português em apoios financeiros e benefícios fiscais para projectos que depois não concretiza, amputa ou altera substancialmente.

É todo este processo de benefícios contratualizados com grandes multinacionais que também tem de ser profundamente revisto.

Vamos agora ao off-shore ou, numa linguagem mais perceptível, à zona franca da Madeira. Os territórios com regime de off-shore têm-se multiplicado por todo o mundo acompanhando a chamada mundialização financeira. Normalmente, pequenos territórios que funcionam como placas giratórias para o branqueamento de dinheiro, para o crime organizado, para a instalação de sociedades-écrans. Estão identificados 90 “paraísos fiscais” em todo o mundo onde as autoridades monetárias não exercem quase nenhuma soberania, onde os privilégios fiscais são gigantescos, onde ninguém pergunta a origem dos dinheiros que por aí circulam. Entre os territórios identificados está a Madeira apresentada, aliás, em estudos internacionais, na lista dos paraísos recomendados. A informação do que lá se passa é muito limitada. Mas um recente relatório da Inspecção Geral de Finanças sobre a tributação das instituições financeiras levanta um pouco o véu ao afirmar que um conjunto de grandes bancos portugueses não pagam IRC porque, pura e simplesmente recorrem ao off-shore da Madeira. Aí estão o BCP, o Banco Mello, o Sotto Mayor, o Barclays Bank e muitos outros. Quanto ao regime fiscal do reporte de prejuízos. O relatório da Direcção-geral dos Impostos, de Dezembro de 1997, é também muito significativo. De 1989 a 1996, para um lucro tributável declarado nesse período de 9 mil milhões de contos os prejuízos fiscais declarados montaram a 7 mil milhões de contos. Essas empresas não pagam IRC quando declaram prejuízos e, nos anos em que apresentam lucros, também não pagam IRC devido ao reporte, isto é, à transferência dos prejuízos para os exercícios seguintes.

Quanto aos impostos especiais de consumo no quadro do comércio intracomunitário que abrange o tabaco bem como o álcool, a cerveja e outras bebidas. No que toca às bebidas, a taxa de evasão nas liquidações oficiosas monta, de acordo com o relatório do Ministério das Finanças, a 98,98 %, senhores deputados. Para uma liquidação, no período de 1994 a 1998, de 11,3 milhões de contos a cobrança efectiva foi tão somente de 115 mil contos. É certo que a taxa de evasão diminui quando às liquidações oficiosas se junta o regime das auto liquidações mas, mesmo assim, no Imposto sobre o Álcool a taxa de evasão chega aos 58% e nas restantes bebidas (excluindo a cerveja) é de 19,8%. 23,6 milhões de contos é o valor total estimado da evasão fiscal só nas bebidas.

Este é o quadro da situação e, seguramente, muito incompleto.

O PCP há muito, e não só agora, que vem intervindo sobre esta matéria. Legislatura após legislatura, orçamento após orçamento, temos denunciado esta situação e temos apresentado propostas significativas para combater a evasão e a fraude fiscal e para tornar o nosso sistema fiscal mais justo e com maior equidade. O Orçamento de Estado para 1999 foi disso exemplo. As propostas do PCP, acolhidas pelo Governo, permitiram, ao alterar os escalões e as taxas de tributação para os rendimentos mais baixos e médios, que 700.000 portugueses passassem, a partir deste ano, a ficar isentos de IRS e que cerca de 2 milhões passassem a ser tributados a uma taxa inferior à que pagavam anteriormente. Como também foi decisiva a intervenção do PCP em matéria dos impostos especiais sobre o consumo. A Lei n.º 11/99 de 15 de Março permitiu criar um novo quadro legal mais favorável ao combate à evasão fiscal neste tipo de impostos.

Mas não chega. Nem é ao PCP que compete fazer o trabalho de casa e as propostas que, em muitos casos, só o Governo e a Administração Fiscal estão em condições de fazer. Porque só eles têm todos os elementos de informação na mão que, aliás, nem sempre fornecem à Assembleia da República.

O Governo tem de afirmar claramente em que medida é que está, de facto, interessado e com vontade política de provocar alterações estruturais no nosso sistema fiscal.

Vejamos a questão do sigilo bancário. Como afirma o relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal “ao contrário do que sucede na esmagadora maioria dos países da OCDE, não há na legislação portuguesa sobre o sigilo bancário quaisquer disposições que facilitem o acesso das autoridades fiscais às informações protegidas por esse sigilo”. De facto, como afirma ainda o mesmo Relatório “o actual regime legal sobre o sigilo bancário tem criado dificuldades muito sérias às actividades da Administração Fiscal no domínio da fiscalização tributária e do combate à evasão e fraude fiscais”. Mas nesta como noutras matérias essenciais para uma melhor justiça fiscal o Governo não quis enfrentar os interesses estabelecidos e também aqui meteu a viola no saco. O argumento de que a abertura do sigilo bancário para efeitos fiscais, em determinadas condições, se traduziria em instabilidade e fuga de capitais não tem sentido e cede perante o facto de na quase totalidade dos países da União Europeia e da OCDE ser admitida a quebra do sigilo bancário por razões fiscais, para além das questões ligadas ao branqueamento de capitais, já admitidas na legislação portuguesa. A verdade é que sem a possibilidade da Administração Fiscal poder ser informada da abertura e situação de certas contas bancárias e da realização de transacções financeiras de determinado tipo, como o PCP há muito vem propondo, não é possível, na maioria dos casos, fazer um combate eficaz à evasão e fraude fiscal.

Sr. Presidente,

Srs. Membros do Governo,

Srs. Deputados,

Da nossa parte iremos continuar a apresentar propostas visando a criação, em Portugal, de um sistema fiscal socialmente justo.

Avançamos com nove propostas:

1. Revisão, alteração ou supressão dos benefícios fiscais concedidos em sede de operações financeiras e cambiais, em processos de privatização de empresas, em planos de poupança em acções e em operações contratualizadas que não obedeçam a estritos critérios de apoio ao investimento produtivo criador de emprego, designadamente em regiões carenciadas;

2. Revisão das mais significativas componentes negativas da base tributável em IRC, em especial, das variações patrimoniais negativas, das mais valias não tributadas, do reporte de prejuízos fiscais;

3. Alteração da tributação das empresas financeiras e seguradoras, em particular do regime de provisões de forma a promover a tributação efectiva do sistema financeiro;

4. Fiscalização efectiva com inversão do ónus da prova para as empresas que sistematicamente apresentem prejuízos;

5. Tributação efectiva dos rendimentos das profissões liberais e dos empresários em nome individual com recurso, sempre que necessário, aos métodos indirectos;

6. Abolição do regime de benefícios fiscais em vigor no off-shore da Madeira para as actividades predominantemente financeiras e alteração profunda do regime fiscal para as actividades industriais implantadas na zona franca;

7. Ampliação substancial das possibilidades de acesso da Administração Fiscal às informações protegidas pelo sigilo bancário com respeito pelos direitos e garantias dos cidadãos afectados;

8. Criação de um imposto sobre a riqueza (ou sobre o património) que tribute as grandes fortunas;

9. Reforço substancial dos meios técnicos e humanos à disposição da Administração Fiscal.

Senhor Presidente,

Senhores Membros do Governo,

Senhores Deputados,

É necessária e possível uma outra política fiscal em Portugal. Que combatendo seriamente a evasão e a fraude fiscal e modificando os instrumentos de política financeira que proporcionam a tantos grandes patrimónios a possibilidade de não pagarem impostos permitam, em contrapartida, desagravar a carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho, construindo-se assim um sistema fiscal socialmente justo. É esta a reforma fiscal que nenhum Governo, até hoje, teve vontade política para realizar, limitando-se a pequenos remendos de ocasião. É esta a reforma fiscal que tem de ser feita. É esta a reforma fiscal que o PCP propõe.

Disse.

Interpelação ao Governo sobre combate à evasão e fraude fiscal

Intervenção de Lino de Carvalho na Assembleia da República

22 de Dezembro de 1999

Senhor Presidente,

Senhores Membros do Governo,

Senhores Deputados,

Quantos grupos de trabalho foram criados nos últimos anos com o objectivo de se avançar para a reforma do sistema fiscal?

Quantos relatórios foram produzidos? Quantos estudos foram realizados? Quantas propostas foram avançadas?

Foi o relatório da Comissão Para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal, presidida pelo Dr. Silva Lopes; foi a Comissão de Reforma da Tributação do Património, dirigida pelo Dr. Medina Carreira; foram e são os relatórios sobre o Regime Fiscal do Reporte de Prejuízos, sobre a Situação de Evasão Fiscal no âmbito dos Impostos Especiais sobre o Consumo (em resultado, aliás, de uma proposta do PCP), sobre o Imposto Automóvel, sobre a Contribuição Autárquica, sobre o IVA, sobre o IRS e o IRC, sobre os Benefícios Fiscais, sobre a Tributação das Instituições Financeiras e, seguramente, estes são só alguns dos muitos exemplos que se poderiam inventariar.

Não faltam em Portugal estudos de diagnóstico nem propostas sobre a gravíssima situação que atravessa hoje o nosso sistema fiscal, em particular no que toca à evasão e fraude fiscal. O que tem faltado, o que falta, é vontade política para confrontar os interesses estabelecidos e fazer reformas que necessariamente abalam os interesses instalados, que beneficiam das iniquidades do actual modelo, mas que permitiriam começar a caminhar-se no sentido de virmos a ter no nosso País um sistema fiscal mais eficaz e socialmente mais justo.

O que se passou com o Projecto de Reforma do Tributação do Património é um caso exemplar. Resultado de uma deliberação do Conselho de Ministros e de um despacho do então Ministro das Finanças que definia claramente o mandato da Comissão presidida pelo Dr. Medina Carreira e onde se estabelecia como linha orientadora a criação do “imposto único sobre o património” que “incidirá sobre o valor dos bens imóveis e sobre os valores patrimoniais mobiliários”, logo que foi tornado público e que a direita portuguesa, com relevo para o CDS/PP nesta Assembleia e as grandes associações patronais se insurgiram contra propostas que iriam tocar nas grandes fortunas que hoje pouco ou nada pagam, logo o Governo do PS, pressuroso, meteu a viola no saco e mais um relatório foi para a gaveta. Indignamente, preferiu deixar cair o Dr. Medina Carreira a assumir politicamente o relatório que o próprio Governo tinha encomendado.

Mas já o mesmo se tinha passado com a Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal do Dr. Silva Lopes. As propostas mais estruturantes, que implicavam algum grau de ruptura, como é o caso da abertura do sigilo bancário para efeitos fiscais ou de alguma redução dos benefícios fiscais, foram também ignoradas ou mesmo explicitamente recusadas.

Relatórios atrás de relatórios, estudos atrás de estudos, propostas atrás de propostas, o seu destino tem sido invariavelmente o mesmo: a gaveta. É uma evidência que o PS não quer fazer nenhuma reforma fiscal de fundo que, designadamente, combata a evasão e a fraude fiscal. Nem sequer acciona a fiscalização tributária em direcção aos grandes contribuintes. Pelo contrário. É significativo e escandaloso, por exemplo, que quando já na fase final do Governo PS na anterior legislatura foi decidido incrementar as acções de fiscalização tributária os primeiros – e quiçá os únicos – contribuintes que foram visitados e interpelados pelas repartições de finanças tivessem sido os trabalhadores por conta de outrém, os contribuintes do mod. 1 do IRS. Como é uma evidência que o PS escamoteia essa sua manifesta falta de vontade política com muita conversa, torrentes de palavras, nomeação de muitos grupos de trabalho, elaboração de muitos relatórios, mas que não passam disso mesmo: relatórios de que não se tiram nenhumas consequências globais.

E no entanto, senhores deputados, o diagnóstico há muito que está feito e mesmo o tratamento há muito que está medicado.

Em Portugal, só os trabalhadores por conta de outrém pagam impostos.

O IRS é responsável por 46,3% (com base nos dados do Orçamento de Estado para 1999) das receitas fiscais do Estado. Mas o IRC só é responsável por 29,6% daquelas receitas.

Dentro do IRS as declarações das categorias A e H (rendimentos do trabalho por conta de outrém e pensões de reforma) correspondem a 88,4% dos rendimentos declarados, as da categoria B (rendimentos do trabalho independente) só a 3% e da categoria C (rendimentos comerciais e industriais) 4,1%. Enquanto, em média, os trabalhadores por conta de outrém e os pensionistas e reformados declaram um rendimento médio anual de 2.000 contos, as profissões liberais não vão além dos 900 contos e no comércio e indústria o valor fica-se pelos 635 contos. Não é por isso de estranhar que cada trabalhador assalariado pague, em média, 195 contos / ano de IRS e os empresário em nome individual tão sómente 33.000$00. Citemos aqui o Dr. Medina Carreira: Há “perto de 700.000 empresários em nome individual. Conjuntamente com muitos outros contribuintes sujeitos a regime similar, como foi possível que produzissem 8% a 10% de IRS liquidado?”. E afirma ainda que existindo “quase 80.000 gerentes e administradores de sociedades conhecidos na Segurança Social, número aliás inverosímil face às 150.000 ou 200.000 sociedade existentes, como é possível que todos eles, em conjunto com muitos milhares de quadros superiores de empresas, produzissem 1665 agregados com rendimentos superiores a 10.000 contos?”.

Quanto ao IRC o diagnóstico também há muito que está traçado. 2/3 das empresas não pagam, em geral um tostão de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas. 143.000 empresas, muitas vezes sempre as mesmas, não pagam sistematicamente IRC. O número de sociedades a declarar prejuízo triplicou em sete anos. 64% das empresas não são colectadas. De entre 150.000 a 182.000 pessoas colectivas sujeitas a IRC, 1786 produzem mais de 70% da colecta total. As empresas públicas são, entretanto, responsáveis por mais de 70% do IRC cobrado. Quando são privatizadas, muitas delas deixam de pagar impostos.

A tributação das instituições financeiras é outro escândalo. De acordo com o último relatório do Banco de Portugal, os bancos obtiveram, em 1998, 338 milhões de contos de lucros antes de impostos. Se tivessem pago os 34% de IRC isso corresponderia a 115 milhões de contos de impostos que o Estado deveria arrecadar. Mas, afinal, só pagaram 68,2 milhões de contos o que equivale a uma taxa de tributação efectiva de 20,2%. E isto já depois de descontadas as amortizações e provisões do exercício que, como qualquer técnico sabe, são um armazém “legal” para onde se stockam grande parte dos lucros. Porque se a análise fosse feita unicamente com base no cash-flow então o valor dos resultados líquidos positivos montaria a 693,4 milhões de contos. Isto quereria dizer que a taxa de tributação efectiva em IRC pelo imposto que foi pago corresponde tão somente a uma taxa de tributação efectiva de 9,8%.

A evasão e a fraude fiscal em Portugal atingem, pois, valores monstruosos que os Governos não mostram vontade efectiva de corrigir. Fosse o PSD. Seja o PS.

Mas onde é que radica esta brutal evasão fiscal?

Citarei quatro áreas significativas: os benefícios fiscais, o off-shore da Madeira, os alegados prejuízos fiscais e a evasão em sede de IVA no comércio intracomunitário e nos impostos especiais de consumo.

Quanto aos benefícios fiscais. A posição do PCP é muito clara. Nós não somos contra os benefícios fiscais em abstracto. Compreendemos e acolhemos o conjunto de benefícios fiscais que tenham uma função social (como é o caso da saúde, da educação ou da habitação) ou de estímulo ao investimento produtivo criador de emprego, designadamente ao nível das micro e das pequenas e médias empresas bem como das regiões mais carenciadas de investimento. Mas não estamos de acordo com os múltiplos benefícios que são concedidos em sede de movimentos financeiros e cambiais, privatização de empresas ou operações contratualizadas com grandes empresas e grupos económicos, designadamente multinacionais, que se instalam em Portugal com esses apoios e que, depois, na primeira oportunidade, voam para outras paragens, negociando novos apoios e deixando atrás de si um rasto de desemprego, depressão e prejuízos para o Estado. Os exemplos são incontáveis. E agravaram-se desde a chegada do Partido Socialista ao Governo. Dos 132,6 milhões de contos de despesa fiscal do Estado em 1995, chegou-se quase aos 300 milhões de contos em 1999. Mais 120,9%. Só nos benefícios concedidos em operações da bolsa o aumento, entre 1995 e 1999, é de 70,6%. Em isenções diversas de natureza temporária ou definitiva o incremento foi de 359,6% e, em IRS, o aumento nos benefícios fiscais em Operações Públicas de Vendas (privatizações) foi de 2736,1%. Quanto a benefícios contratualizados com multinacionais permitam-me que aproveite esta intervenção para trazer aqui uma questão actual que está a ocorrer com a multinacional SIEMENS, no círculo por onde sou eleito, Évora. A SIEMENS contratualizou com o Estado português um conjunto de benefícios fiscais com vista à instalação de uma nova unidade industrial em Évora. Depois disso, decidiu pôr à venda uma das unidades que terá sido adquirida por uma multinacional americana, a TYCO INTERNACIONAL, com sede num paraíso fiscal, as Bermudas e que de imediato começou a pressionar os trabalhadores para rescindir os respectivos contratos. Pelo menos, 120 trabalhadores estão a ser obrigados a sair da empresa. Mas desde o início da instalação da nova unidade que esse número ascende a cerca de 300 postos de trabalho liquidados. Há fortes suspeitas que levam a crer que – à semelhança do que aconteceu com a Texas Instruments Samsung – estamos perante uma operação visando a breve prazo deslocalizar a empresa para outras paragens. E o que faz o Governo que quando foi inaugurar a nova fábrica teceu elogios à empresa e lhe concedeu milhões de contos em benefícios fiscais contratualizados? Quais eram os compromissos da multinacional? Quais as suas contrapartidas em matéria de investimento e de salvaguarda e criação de emprego? Daqui exigimos que o Governo não ignore mais este grave problema e que intervenha, com urgência para evitar que mais umas centenas de trabalhadores vão para o desemprego e que mais uma multinacional se fique a rir embolsando milhões de contos do Estado português em apoios financeiros e benefícios fiscais para projectos que depois não concretiza, amputa ou altera substancialmente.

É todo este processo de benefícios contratualizados com grandes multinacionais que também tem de ser profundamente revisto.

Vamos agora ao off-shore ou, numa linguagem mais perceptível, à zona franca da Madeira. Os territórios com regime de off-shore têm-se multiplicado por todo o mundo acompanhando a chamada mundialização financeira. Normalmente, pequenos territórios que funcionam como placas giratórias para o branqueamento de dinheiro, para o crime organizado, para a instalação de sociedades-écrans. Estão identificados 90 “paraísos fiscais” em todo o mundo onde as autoridades monetárias não exercem quase nenhuma soberania, onde os privilégios fiscais são gigantescos, onde ninguém pergunta a origem dos dinheiros que por aí circulam. Entre os territórios identificados está a Madeira apresentada, aliás, em estudos internacionais, na lista dos paraísos recomendados. A informação do que lá se passa é muito limitada. Mas um recente relatório da Inspecção Geral de Finanças sobre a tributação das instituições financeiras levanta um pouco o véu ao afirmar que um conjunto de grandes bancos portugueses não pagam IRC porque, pura e simplesmente recorrem ao off-shore da Madeira. Aí estão o BCP, o Banco Mello, o Sotto Mayor, o Barclays Bank e muitos outros. Quanto ao regime fiscal do reporte de prejuízos. O relatório da Direcção-geral dos Impostos, de Dezembro de 1997, é também muito significativo. De 1989 a 1996, para um lucro tributável declarado nesse período de 9 mil milhões de contos os prejuízos fiscais declarados montaram a 7 mil milhões de contos. Essas empresas não pagam IRC quando declaram prejuízos e, nos anos em que apresentam lucros, também não pagam IRC devido ao reporte, isto é, à transferência dos prejuízos para os exercícios seguintes.

Quanto aos impostos especiais de consumo no quadro do comércio intracomunitário que abrange o tabaco bem como o álcool, a cerveja e outras bebidas. No que toca às bebidas, a taxa de evasão nas liquidações oficiosas monta, de acordo com o relatório do Ministério das Finanças, a 98,98 %, senhores deputados. Para uma liquidação, no período de 1994 a 1998, de 11,3 milhões de contos a cobrança efectiva foi tão somente de 115 mil contos. É certo que a taxa de evasão diminui quando às liquidações oficiosas se junta o regime das auto liquidações mas, mesmo assim, no Imposto sobre o Álcool a taxa de evasão chega aos 58% e nas restantes bebidas (excluindo a cerveja) é de 19,8%. 23,6 milhões de contos é o valor total estimado da evasão fiscal só nas bebidas.

Este é o quadro da situação e, seguramente, muito incompleto.

O PCP há muito, e não só agora, que vem intervindo sobre esta matéria. Legislatura após legislatura, orçamento após orçamento, temos denunciado esta situação e temos apresentado propostas significativas para combater a evasão e a fraude fiscal e para tornar o nosso sistema fiscal mais justo e com maior equidade. O Orçamento de Estado para 1999 foi disso exemplo. As propostas do PCP, acolhidas pelo Governo, permitiram, ao alterar os escalões e as taxas de tributação para os rendimentos mais baixos e médios, que 700.000 portugueses passassem, a partir deste ano, a ficar isentos de IRS e que cerca de 2 milhões passassem a ser tributados a uma taxa inferior à que pagavam anteriormente. Como também foi decisiva a intervenção do PCP em matéria dos impostos especiais sobre o consumo. A Lei n.º 11/99 de 15 de Março permitiu criar um novo quadro legal mais favorável ao combate à evasão fiscal neste tipo de impostos.

Mas não chega. Nem é ao PCP que compete fazer o trabalho de casa e as propostas que, em muitos casos, só o Governo e a Administração Fiscal estão em condições de fazer. Porque só eles têm todos os elementos de informação na mão que, aliás, nem sempre fornecem à Assembleia da República.

O Governo tem de afirmar claramente em que medida é que está, de facto, interessado e com vontade política de provocar alterações estruturais no nosso sistema fiscal.

Vejamos a questão do sigilo bancário. Como afirma o relatório da Comissão para o Desenvolvimento da Reforma Fiscal “ao contrário do que sucede na esmagadora maioria dos países da OCDE, não há na legislação portuguesa sobre o sigilo bancário quaisquer disposições que facilitem o acesso das autoridades fiscais às informações protegidas por esse sigilo”. De facto, como afirma ainda o mesmo Relatório “o actual regime legal sobre o sigilo bancário tem criado dificuldades muito sérias às actividades da Administração Fiscal no domínio da fiscalização tributária e do combate à evasão e fraude fiscais”. Mas nesta como noutras matérias essenciais para uma melhor justiça fiscal o Governo não quis enfrentar os interesses estabelecidos e também aqui meteu a viola no saco. O argumento de que a abertura do sigilo bancário para efeitos fiscais, em determinadas condições, se traduziria em instabilidade e fuga de capitais não tem sentido e cede perante o facto de na quase totalidade dos países da União Europeia e da OCDE ser admitida a quebra do sigilo bancário por razões fiscais, para além das questões ligadas ao branqueamento de capitais, já admitidas na legislação portuguesa. A verdade é que sem a possibilidade da Administração Fiscal poder ser informada da abertura e situação de certas contas bancárias e da realização de transacções financeiras de determinado tipo, como o PCP há muito vem propondo, não é possível, na maioria dos casos, fazer um combate eficaz à evasão e fraude fiscal.

Sr. Presidente,

Srs. Membros do Governo,

Srs. Deputados,

Da nossa parte iremos continuar a apresentar propostas visando a criação, em Portugal, de um sistema fiscal socialmente justo.

Avançamos com nove propostas:

1. Revisão, alteração ou supressão dos benefícios fiscais concedidos em sede de operações financeiras e cambiais, em processos de privatização de empresas, em planos de poupança em acções e em operações contratualizadas que não obedeçam a estritos critérios de apoio ao investimento produtivo criador de emprego, designadamente em regiões carenciadas;

2. Revisão das mais significativas componentes negativas da base tributável em IRC, em especial, das variações patrimoniais negativas, das mais valias não tributadas, do reporte de prejuízos fiscais;

3. Alteração da tributação das empresas financeiras e seguradoras, em particular do regime de provisões de forma a promover a tributação efectiva do sistema financeiro;

4. Fiscalização efectiva com inversão do ónus da prova para as empresas que sistematicamente apresentem prejuízos;

5. Tributação efectiva dos rendimentos das profissões liberais e dos empresários em nome individual com recurso, sempre que necessário, aos métodos indirectos;

6. Abolição do regime de benefícios fiscais em vigor no off-shore da Madeira para as actividades predominantemente financeiras e alteração profunda do regime fiscal para as actividades industriais implantadas na zona franca;

7. Ampliação substancial das possibilidades de acesso da Administração Fiscal às informações protegidas pelo sigilo bancário com respeito pelos direitos e garantias dos cidadãos afectados;

8. Criação de um imposto sobre a riqueza (ou sobre o património) que tribute as grandes fortunas;

9. Reforço substancial dos meios técnicos e humanos à disposição da Administração Fiscal.

Senhor Presidente,

Senhores Membros do Governo,

Senhores Deputados,

É necessária e possível uma outra política fiscal em Portugal. Que combatendo seriamente a evasão e a fraude fiscal e modificando os instrumentos de política financeira que proporcionam a tantos grandes patrimónios a possibilidade de não pagarem impostos permitam, em contrapartida, desagravar a carga fiscal sobre os rendimentos do trabalho, construindo-se assim um sistema fiscal socialmente justo. É esta a reforma fiscal que nenhum Governo, até hoje, teve vontade política para realizar, limitando-se a pequenos remendos de ocasião. É esta a reforma fiscal que tem de ser feita. É esta a reforma fiscal que o PCP propõe.

Disse.

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