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21-04-2001
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Enquanto o projecto de lei referido acaba por ressalvar, no que à Igreja Católica diz respeito, não apenas a Concordata mas ainda toda a legislação que lhe é actualmente aplicável, decorra esta ou não daquele tratado de direito internacional, a proposta de alteração apresentada limita-se a excluir da ressalva formulada a legislação que não decorre da mesma Concordata, mantendo, por isso, toda a restante legislação e, necessariamente, a própria Concordata. E, enquanto a versão actual do projecto de lei prevê ainda a possibilidade futura de, por meio de acordo entre o Estado e a Igreja Católica ou por simples remissão da lei, alguns dos seus dispositivos virem a ser aplicados à Igreja Católica, a alteração proposta explicita melhor quais as partes da lei não aplicáveis à Igreja Católica, sem prejuízo das mesmas possibilidades de futura aplicação pelos dois modos referidos.

É isto, e apenas isto, que tem estado em causa, ao contrário do que poderia deduzir-se do inusitado dramatismo com que tal divergência tem vindo a ser tratada nos meios de comunicação social. Com efeito, ao pretenderem ressuscitar, em torno desta questão, os velhos fantasmas do jacobinismo e até da "guerra religiosa", comentaristas vários, jornalistas ou não, e até responsáveis políticos, incluindo alguns do meu próprio partido, deixam pairar na opinião pública a falsíssima ideia de que a alteração proposta viria ferir gravemente os direitos de que a Igreja Católica goza ao abrigo do actual regime concordatário. Verdade seja dita que também responsáveis religiosos vieram ultimamente alimentar tão peregrina ideia, ao lançarem o aviso de que o Parlamento "não pode pretender antecipar a revisão da Concordata, tentando alterar o enquadramento legal da Igreja Católica" (D. José Policarpo, na homilia pascal). Exemplo flagrante da desproporção entre os factos em causa e a opinião que eles suscitam é-nos dado pelo Expresso do passado dia 13 de Abril. Enquanto a notícia sobre os factos ocorridos refere correctamente que a proposta de alteração, "salvaguardando a relação Estado-Igreja Católica nos aspectos relacionados com a Concordata, não a excepciona do cumprimento dos princípios universais definidos na lei" e que o representante da Conferência Episcopal "deixou claro aos deputados que a Igreja só aceita a lei da liberdade religiosa se ela se lhe não aplicar" (p. 3), já a coluna da p. 4 "Altos... & Baixos", da autoria de José António Lima, me põe a protagonizar "o radicalismo da ala jacobina dos socialistas", que pretenderia "levantar uma questão religiosa gratuita, desnecessária e impopular para o PS", suspeitando tal demoníaca ala de querer voltar aos tempos da I República! Ou seja: pretender que uma lei da República que densifica e regula a aplicação de normas estritamente constitucionais tenha aplicação universal, ressalvadas a Concordata e a legislação dela decorrente, é considerado um acesso de anticlericalismo serôdio. Pretender, porém, que a Igreja só aceita esta lei se ela se lhe não aplicar não merece qualquer comentário ao director adjunto do Expresso, não fosse a lógica obrigá-lo a denunciar o implícito acesso de clericalismo subjacente a tal pretensão!...

Como explicar, então, o manifesto desajustamento entre o alcance da alteração proposta e as reacções de que foi alvo? Para além da supina ignorância em matéria de história que aquele e outros comentários revelam, já que não é difícil demonstrar a enorme diferença de contextos e de conteúdos entre o que esteve em causa na Lei da Separação de 1911 e o que está hoje em causa, creio que as únicas explicações lógicas para tal radicam, por um lado, no temor reverencial que a Igreja Católica continua a despertar, entre muitos responsáveis políticos e opinion-makers _ ao contrário, aliás, do que se vem passando com esse outro poder fáctico que são as Forças Armadas _, e, por outro, numa estratégia cada vez mais evidente, por parte da Igreja Católica portuguesa, de garantir, em sede de revisão da Concordata, um estatuto completamente à parte do das restantes confissões religiosas. E é por isso que a divergência entre os socialistas relativa ao alcance desta lei, não sendo dramática, não se reduz também a uma simples minudência legislativa, assumindo, nos tempos que correm, um alto valor simbólico, com consequências a prazo bem mais importantes do que poderia, à primeira vista, supor-se.

A questão central que se põe é, afinal de contas, esta: a lei da liberdade religiosa que a Assembleia da República se apresta a aprovar é uma lei apenas para as confissões religiosas minoritárias no nosso país, às quais estende um conjunto de direitos e benefícios até agora detidos em exclusivo pela Igreja Católica, ou é uma lei que pretende regular a aplicação universal da norma constitucional da liberdade de religião e de culto a todas as confissões, sem prejuízo da ressalva do regime legislativo concordatário para a Igreja Católica, ou seja, de aplicação também à Igreja Católica em tudo o que não esteja expressamente ressalvado por este regime especial? É sabido que a motivação inicial do então ministro da Justiça, Vera Jardim, quando avançou com a proposta de lei da liberdade religiosa, foi a de preencher o escandaloso vazio legislativo com que se debatiam as confissões religiosas minoritárias, apesar de alguns direitos reconhecidos em legislação avulsa. Motivação louvável e iniciativa pela qual lhe devemos estar todos reconhecidos, sem qualquer dúvida. Mas, se a lei tivesse como exclusivo propósito regular o reconhecimento jurídico e os direitos das confissões minoritárias, não fazia sentido nem intitular-se "Lei da Liberdade Religiosa" nem verter um conjunto de normas que claramente visam densificar princípios constitucionais de alcance universal. Poderia ter-se designado, então, simplesmente, por exemplo, "Lei das Confissões Religiosas Minoritárias", ao mesmo tempo que, com certeza, se impulsionaria a imediata revisão da Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé. Era uma opção possível, embora discutível. Ora, não foi essa a opção seguida pelo autor da lei, que, na maior parte do articulado, não especifica sequer o tipo de confissões religiosas a que a lei se destina, indo mesmo ao ponto de colocar representantes da Igreja Católica ao lado de representantes das outras confissões na prevista Comissão da Liberdade Religiosa, à qual são conferidos significativos poderes consultivos.

Assim sendo, não faz sentido que a Igreja Católica se pretenda excluir por completo do âmbito de aplicação desta lei, como se ela lhe não dissesse minimamente respeito, para além das genéricas normas iniciais sem carácter regulador. E tanto assim é que, mesmo no seu artigo 58.º, o autor do projecto de lei não se coíbe de admitir a aplicação à Igreja Católica de normas destinadas às confissões minoritárias, por via não apenas de acordo entre o Estado e a Igreja mas também de simples remissão da lei, ou seja, de iniciativa unilateral do Estado.

Perguntar-se-á, então, por que razão não me contentei com a admissão dessa possibilidade e insisti, com Jorge Lacão, numa proposta de alteração que torna mais explícita e clara a aplicação desde já à Igreja Católica de todas as normas que nesta lei não se encontram ressalvadas pelo regime concordatário. Precisamente porque entendo que é essa a diferença que salva a coerência de uma lei que o seu autor não quis que ficasse reservada exclusivamente para as confissões minoritárias, antes admitiu, em várias intervenções, quer no grupo parlamentar do PS quer na Comissão Parlamentar, poder vir a abranger a Igreja Católica e funcionar mesmo como "guião" da próxima revisão da Concordata! Foi, aliás, nesse pressuposto que, ao contrário de Jorge Lacão, apoiei Vera Jardim e a direcção do grupo parlamentar a que pertenço, na decisão de não aguardar pela revisão da Concordata para avançar de imediato com a votação desta lei.

Ora, a reacção da Conferência Episcopal à proposta de alteração do artigo 58.º acaba por dar razão à preocupação que lhe está subjacente e devia servir de alerta para o autor do projecto de lei. Ao ressalvar toda a legislação actualmente aplicável à Igreja Católica, o actual artigo 58.º cedeu a um imperativo táctico de excessiva prudência, que se arrisca a comprometer a estratégia visada e a coerência global de uma lei cujo articulado manifestava ambições de aplicação universal em tudo o que não estivesse ressalvado pelo regime concordatário. O que D. Tomaz Nunes, primeiro, e D. José Policarpo, depois _ neste último caso, aliás, em surpreendente e flagrante contradição com declarações anteriores que reconheciam à lei da liberdade religiosa a função de guião para a revisão da Concordata _, nos vêm agora dizer é que qualquer alteração ao enquadramento legal da Igreja Católica, decorra este ou não da Concordata, será entendida como uma tentativa de revisão antecipada daquele tratado! E, consequentemente, que a Santa Sé quer manter as mãos inteiramente livres para negociar uma revisão que não terá necessariamente de sujeitar a Igreja Católica ao mesmo tipo de normas que esta lei estipula em domínios como o ensino religioso ou a assistência religiosa nas Forças Armadas, por exemplo. Ou seja, vêm reivindicar um estatuto legal completamente à parte do das restantes confissões religiosas, em domínios já regulados por esta lei e para além dos únicos domínios que entendo adequados a um tratado entre a Santa Sé e um Estado que se rege pelo princípio constitucional da separação: o do reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja Católica por via de um instrumento de direito internacional, que tem a vantagem de a colocar ao abrigo das mudanças de regime político, e o das questões de natureza patrimonial. Pretender um estatuto à parte em todos os outros domínios fere, a meu ver, os princípios constitucionais da igualdade e da universalidade. E não se argumente com o carácter largamente maioritário da confissão católica, entre nós. Em matéria de reconhecimento de direitos, a lei democrática é, por definição, igual para todos, maiorias ou minorias. Naturalmente, a confissão maioritária, por força da aplicação de uma norma idêntica para todos, como, por exemplo, a que regula o ensino religioso nas escolas públicas, terá mais professores e mais alunos para as suas aulas, como recolherá maiores vantagens pecuniárias da aplicação de um regime fiscal desejavelmente também idêntico para todos...

A opção perante a qual os deputados estão doravante confrontados tornou-se, pois, clara como a água, após a audição do representante da Conferência Episcopal e a homilia pascal do cardeal-patriarca de Lisboa. Querem aprovar uma lei de aplicação exclusiva às confissões minoritárias, em contradição, aliás, com a sua filosofia inspiradora, e pactuar do mesmo passo com a estratégia negocial da Igreja Católica em matéria de revisão da Concordata, que recusa abdicar de um estatuto legal completamente à parte do das outras confissões? Ou querem aprovar uma lei que respeite os princípios constitucionais da universalidade e da igualdade, sem prejuízo da ressalva do actual regime concordatário _ obviamente, em tudo o que neste não ofende a Constituição, que é um instrumento jurídico superior a qualquer tratado internacional _, e abrir, assim, caminho a uma estratégia negocial por parte do Estado português, com vista à substituição da Concordata por um acordo moderno que regule o que é específico de uma instituição como a Igreja Católica em Portugal e em tudo o mais remeta para uma verdadeira Lei da Liberdade Religiosa?

Enquanto o projecto de lei referido acaba por ressalvar, no que à Igreja Católica diz respeito, não apenas a Concordata mas ainda toda a legislação que lhe é actualmente aplicável, decorra esta ou não daquele tratado de direito internacional, a proposta de alteração apresentada limita-se a excluir da ressalva formulada a legislação que não decorre da mesma Concordata, mantendo, por isso, toda a restante legislação e, necessariamente, a própria Concordata. E, enquanto a versão actual do projecto de lei prevê ainda a possibilidade futura de, por meio de acordo entre o Estado e a Igreja Católica ou por simples remissão da lei, alguns dos seus dispositivos virem a ser aplicados à Igreja Católica, a alteração proposta explicita melhor quais as partes da lei não aplicáveis à Igreja Católica, sem prejuízo das mesmas possibilidades de futura aplicação pelos dois modos referidos.

É isto, e apenas isto, que tem estado em causa, ao contrário do que poderia deduzir-se do inusitado dramatismo com que tal divergência tem vindo a ser tratada nos meios de comunicação social. Com efeito, ao pretenderem ressuscitar, em torno desta questão, os velhos fantasmas do jacobinismo e até da "guerra religiosa", comentaristas vários, jornalistas ou não, e até responsáveis políticos, incluindo alguns do meu próprio partido, deixam pairar na opinião pública a falsíssima ideia de que a alteração proposta viria ferir gravemente os direitos de que a Igreja Católica goza ao abrigo do actual regime concordatário. Verdade seja dita que também responsáveis religiosos vieram ultimamente alimentar tão peregrina ideia, ao lançarem o aviso de que o Parlamento "não pode pretender antecipar a revisão da Concordata, tentando alterar o enquadramento legal da Igreja Católica" (D. José Policarpo, na homilia pascal). Exemplo flagrante da desproporção entre os factos em causa e a opinião que eles suscitam é-nos dado pelo Expresso do passado dia 13 de Abril. Enquanto a notícia sobre os factos ocorridos refere correctamente que a proposta de alteração, "salvaguardando a relação Estado-Igreja Católica nos aspectos relacionados com a Concordata, não a excepciona do cumprimento dos princípios universais definidos na lei" e que o representante da Conferência Episcopal "deixou claro aos deputados que a Igreja só aceita a lei da liberdade religiosa se ela se lhe não aplicar" (p. 3), já a coluna da p. 4 "Altos... & Baixos", da autoria de José António Lima, me põe a protagonizar "o radicalismo da ala jacobina dos socialistas", que pretenderia "levantar uma questão religiosa gratuita, desnecessária e impopular para o PS", suspeitando tal demoníaca ala de querer voltar aos tempos da I República! Ou seja: pretender que uma lei da República que densifica e regula a aplicação de normas estritamente constitucionais tenha aplicação universal, ressalvadas a Concordata e a legislação dela decorrente, é considerado um acesso de anticlericalismo serôdio. Pretender, porém, que a Igreja só aceita esta lei se ela se lhe não aplicar não merece qualquer comentário ao director adjunto do Expresso, não fosse a lógica obrigá-lo a denunciar o implícito acesso de clericalismo subjacente a tal pretensão!...

Como explicar, então, o manifesto desajustamento entre o alcance da alteração proposta e as reacções de que foi alvo? Para além da supina ignorância em matéria de história que aquele e outros comentários revelam, já que não é difícil demonstrar a enorme diferença de contextos e de conteúdos entre o que esteve em causa na Lei da Separação de 1911 e o que está hoje em causa, creio que as únicas explicações lógicas para tal radicam, por um lado, no temor reverencial que a Igreja Católica continua a despertar, entre muitos responsáveis políticos e opinion-makers _ ao contrário, aliás, do que se vem passando com esse outro poder fáctico que são as Forças Armadas _, e, por outro, numa estratégia cada vez mais evidente, por parte da Igreja Católica portuguesa, de garantir, em sede de revisão da Concordata, um estatuto completamente à parte do das restantes confissões religiosas. E é por isso que a divergência entre os socialistas relativa ao alcance desta lei, não sendo dramática, não se reduz também a uma simples minudência legislativa, assumindo, nos tempos que correm, um alto valor simbólico, com consequências a prazo bem mais importantes do que poderia, à primeira vista, supor-se.

A questão central que se põe é, afinal de contas, esta: a lei da liberdade religiosa que a Assembleia da República se apresta a aprovar é uma lei apenas para as confissões religiosas minoritárias no nosso país, às quais estende um conjunto de direitos e benefícios até agora detidos em exclusivo pela Igreja Católica, ou é uma lei que pretende regular a aplicação universal da norma constitucional da liberdade de religião e de culto a todas as confissões, sem prejuízo da ressalva do regime legislativo concordatário para a Igreja Católica, ou seja, de aplicação também à Igreja Católica em tudo o que não esteja expressamente ressalvado por este regime especial? É sabido que a motivação inicial do então ministro da Justiça, Vera Jardim, quando avançou com a proposta de lei da liberdade religiosa, foi a de preencher o escandaloso vazio legislativo com que se debatiam as confissões religiosas minoritárias, apesar de alguns direitos reconhecidos em legislação avulsa. Motivação louvável e iniciativa pela qual lhe devemos estar todos reconhecidos, sem qualquer dúvida. Mas, se a lei tivesse como exclusivo propósito regular o reconhecimento jurídico e os direitos das confissões minoritárias, não fazia sentido nem intitular-se "Lei da Liberdade Religiosa" nem verter um conjunto de normas que claramente visam densificar princípios constitucionais de alcance universal. Poderia ter-se designado, então, simplesmente, por exemplo, "Lei das Confissões Religiosas Minoritárias", ao mesmo tempo que, com certeza, se impulsionaria a imediata revisão da Concordata entre o Estado Português e a Santa Sé. Era uma opção possível, embora discutível. Ora, não foi essa a opção seguida pelo autor da lei, que, na maior parte do articulado, não especifica sequer o tipo de confissões religiosas a que a lei se destina, indo mesmo ao ponto de colocar representantes da Igreja Católica ao lado de representantes das outras confissões na prevista Comissão da Liberdade Religiosa, à qual são conferidos significativos poderes consultivos.

Assim sendo, não faz sentido que a Igreja Católica se pretenda excluir por completo do âmbito de aplicação desta lei, como se ela lhe não dissesse minimamente respeito, para além das genéricas normas iniciais sem carácter regulador. E tanto assim é que, mesmo no seu artigo 58.º, o autor do projecto de lei não se coíbe de admitir a aplicação à Igreja Católica de normas destinadas às confissões minoritárias, por via não apenas de acordo entre o Estado e a Igreja mas também de simples remissão da lei, ou seja, de iniciativa unilateral do Estado.

Perguntar-se-á, então, por que razão não me contentei com a admissão dessa possibilidade e insisti, com Jorge Lacão, numa proposta de alteração que torna mais explícita e clara a aplicação desde já à Igreja Católica de todas as normas que nesta lei não se encontram ressalvadas pelo regime concordatário. Precisamente porque entendo que é essa a diferença que salva a coerência de uma lei que o seu autor não quis que ficasse reservada exclusivamente para as confissões minoritárias, antes admitiu, em várias intervenções, quer no grupo parlamentar do PS quer na Comissão Parlamentar, poder vir a abranger a Igreja Católica e funcionar mesmo como "guião" da próxima revisão da Concordata! Foi, aliás, nesse pressuposto que, ao contrário de Jorge Lacão, apoiei Vera Jardim e a direcção do grupo parlamentar a que pertenço, na decisão de não aguardar pela revisão da Concordata para avançar de imediato com a votação desta lei.

Ora, a reacção da Conferência Episcopal à proposta de alteração do artigo 58.º acaba por dar razão à preocupação que lhe está subjacente e devia servir de alerta para o autor do projecto de lei. Ao ressalvar toda a legislação actualmente aplicável à Igreja Católica, o actual artigo 58.º cedeu a um imperativo táctico de excessiva prudência, que se arrisca a comprometer a estratégia visada e a coerência global de uma lei cujo articulado manifestava ambições de aplicação universal em tudo o que não estivesse ressalvado pelo regime concordatário. O que D. Tomaz Nunes, primeiro, e D. José Policarpo, depois _ neste último caso, aliás, em surpreendente e flagrante contradição com declarações anteriores que reconheciam à lei da liberdade religiosa a função de guião para a revisão da Concordata _, nos vêm agora dizer é que qualquer alteração ao enquadramento legal da Igreja Católica, decorra este ou não da Concordata, será entendida como uma tentativa de revisão antecipada daquele tratado! E, consequentemente, que a Santa Sé quer manter as mãos inteiramente livres para negociar uma revisão que não terá necessariamente de sujeitar a Igreja Católica ao mesmo tipo de normas que esta lei estipula em domínios como o ensino religioso ou a assistência religiosa nas Forças Armadas, por exemplo. Ou seja, vêm reivindicar um estatuto legal completamente à parte do das restantes confissões religiosas, em domínios já regulados por esta lei e para além dos únicos domínios que entendo adequados a um tratado entre a Santa Sé e um Estado que se rege pelo princípio constitucional da separação: o do reconhecimento da personalidade jurídica da Igreja Católica por via de um instrumento de direito internacional, que tem a vantagem de a colocar ao abrigo das mudanças de regime político, e o das questões de natureza patrimonial. Pretender um estatuto à parte em todos os outros domínios fere, a meu ver, os princípios constitucionais da igualdade e da universalidade. E não se argumente com o carácter largamente maioritário da confissão católica, entre nós. Em matéria de reconhecimento de direitos, a lei democrática é, por definição, igual para todos, maiorias ou minorias. Naturalmente, a confissão maioritária, por força da aplicação de uma norma idêntica para todos, como, por exemplo, a que regula o ensino religioso nas escolas públicas, terá mais professores e mais alunos para as suas aulas, como recolherá maiores vantagens pecuniárias da aplicação de um regime fiscal desejavelmente também idêntico para todos...

A opção perante a qual os deputados estão doravante confrontados tornou-se, pois, clara como a água, após a audição do representante da Conferência Episcopal e a homilia pascal do cardeal-patriarca de Lisboa. Querem aprovar uma lei de aplicação exclusiva às confissões minoritárias, em contradição, aliás, com a sua filosofia inspiradora, e pactuar do mesmo passo com a estratégia negocial da Igreja Católica em matéria de revisão da Concordata, que recusa abdicar de um estatuto legal completamente à parte do das outras confissões? Ou querem aprovar uma lei que respeite os princípios constitucionais da universalidade e da igualdade, sem prejuízo da ressalva do actual regime concordatário _ obviamente, em tudo o que neste não ofende a Constituição, que é um instrumento jurídico superior a qualquer tratado internacional _, e abrir, assim, caminho a uma estratégia negocial por parte do Estado português, com vista à substituição da Concordata por um acordo moderno que regule o que é específico de uma instituição como a Igreja Católica em Portugal e em tudo o mais remeta para uma verdadeira Lei da Liberdade Religiosa?

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