Um importante avanço civilizacional

09-03-2001
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Polémica: Tribunal Penal Internacional

Um Importante Avanço Civilizacional

Por JOSÉ DE MATOS CORREIA*

Terça-feira, 20 de Fevereiro de 2001 O debate em torno da adesão do nosso País ao Tribunal Penal Internacional trouxe à luz do dia uma das características mais marcantes de uma certa intelectualidade portuguesa: a tentação de sobre tudo opinar, mesmo acerca de assuntos cujos contornos concretos se desconhecem. Não estando em causa a vantagem de debater seriamente a questão, é contudo sintomático que a polémica apareça em larga medida ligada à pura e simples ignorância da matéria, nomeadamente nos seus aspectos jurídicos. Manda a verdade que se diga que o Governo tem também culpas neste processo. Conduziu todas as negociações nunca dando conta daquilo que estava em causa. E permitiu-se, inclusive, assinar um instrumento internacional que exige a revisão da Constituição sem qualquer diligência prévia junto da Assembleia da República ou do maior partido da oposição para averiguar da possibilidade dessa revisão. Mas, à irresponsabilidade do Executivo, o PSD respondeu com sentido de Estado, disponibilizando-se para, em certas condições, viabilizar a alteração extraordinária da Constituição indispensável para que o País participe numa iniciativa que deve ser vista como um importante avanço civilizacional. Importa colocar o problema no seu devido enquadramento: das várias incompatibilidades entre o Estatuto do Tribunal e a nossa lei fundamental, só a que se prende com a prisão perpétua tem vindo a gerar controvérsia. E isto porque, argumentam alguns, a introdução de tal punição representaria um inaceitável retrocesso, tanto mais que estivemos, no século XIX, na vanguarda da abolição dessa pena. Sejamos pois absolutamente claros: a prisão perpétua não vai regressar a Portugal. O Tribunal Penal Internacional encontra-se, face aos tribunais nacionais, numa posição subsidiária, pelo que a sua acção fica dependente da incapacidade ou da impossibilidade de os Estados exercerem a sua jurisdição. O julgamento e punição dos responsáveis por crimes de genocídio, contra a paz e a humanidade e de agressão, sobre os quais tenham jurisdição, continuará a caber, em primeira linha, aos Estados. Que o farão de acordo com a sua própria legislação nacional. Tal significa, por exemplo, que um português acusado desses actos - ainda que praticados fora do território nacional - e que se encontre no nosso País, será julgado pelos tribunais portugueses, agindo no quadro da lei portuguesa. E esta, como se sabe, não admite a prisão perpétua. Mas, um outro problema se coloca: caso o Tribunal Penal Internacional solicite a entrega de um indivíduo por ele investigado - por exemplo, um cidadão estrangeiro aqui residente - Portugal será obrigado, por regra, a aceder a tal pedido. Ora, é hipoteticamente possível que o Tribunal condene o arguido a prisão perpétua, sendo que a nossa lei fundamental apenas permite a extradição se houver garantias efectivas de não aplicação de tal pena. Ainda que por via indirecta, não se questionarão assim valores e princípios há muito implantados na ordem jurídica nacional ? Mesmo aí, a resposta deve ser negativa. Não são crimes comuns comuns aqueles que o Estatuto prevê. Em causa estão comportamentos relevando da barbárie: destruição de grupos nacionais, étnicos, rácicos ou religiosos, ataques sistemáticos ou generalizados a populações civis envolvendo homicídios, extermínio, escravidão, deportação, tortura, gravidez ou esterilização forçadas, "apartheid", etc. Actos que, pela sua especial gravidade, questionam de forma inaceitável os pilares fundamentais em que a comunidade internacional assenta, nomeadamente no que diz respeito aos direitos inalienáveis e à própria dignidade do ser humano. Quando se assiste à brutalidade dos crimes perpetrados na Jugoslávia, no Ruanda ou, infelizmente, num número crescente de situações, a preocupação com as vítimas inocentes deve falar mais alto do que o discurso dos neo-moralistas que agora aparecem tão preocupados com a prisão perpétua. É central, em direito penal, a ideia de que a medida da pena há-de ser proporcional à censurabilidade do crime. E, por muito que custe admiti-lo, a prisão perpétua pode, em certas especiais circunstâncias, surgir como justificada. Outro argumento que tem sido aduzido prende-se com a existência, no direito internacional, de uma inaceitável duplicidade de critérios, a qual conduz à aplicação selectiva da justiça, punido os mais fracos mas nunca pondo em causa os fortes e poderosos. É verdade. Trata-se, infelizmente, de consequência directa do carácter imperfeito da ordem jurídica internacional. Mas tal debilidade não desaparece se nos limitarmos a falar nela e a cruzar os braços. Combate-se com medidas concretas e iniciativas corajosas. Por exemplo, permitindo ao Tribunal Penal Internacional julgar criminosos quando os Estados de que são nacionais não estejam na disposição de o fazer ou tenham apenas levado a cabo, com o intuito de os proteger, uma encenação de justiça. Nas insuspeitas palavras de Kofi Annan, a criação do Tribunal constitui "um presente de esperança para as futuras gerações". Talvez por isso se tenha gerado na comunidade internacional tão significativa adesão àquilo que representa. Talvez por isso, no grupo dos que ratificaram já o seu tratado institutivo se contem países como a Áustria, a Bélgica, o Canadá, a Finlândia, a França, a Alemanha, a Islândia, o Luxemburgo, a Nova Zelândia, a Noruega ou a Espanha. Talvez por isso, os Estados que apresentam um controvertido registo em matéria penal se encontrem no pequeno grupo dos que votaram contra o Estatuto. Ao apoiar o estabelecimento deste Tribunal, Portugal dará um contributo fundamental para o avanço do direito internacional. Daí o meu voto a favor dessa decisão. Não em obediência a qualquer disciplina partidária. Mas por imperativo de consciência. *deputado do PSD, docente universitário OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

Mais segurança ou "queixódromos"?

OPINIÃO

Elitismo e educação

Representação

Ensino privado e financiamento público

Um importante avanço civilizacional

Gravíssima regressão nos nossos valores

O FIO DO HORIZONTE

O futuro hoje

CARTAS AO DIRECTOR

O IPDT critica estudo sobre drogas

A (in)segurança

Citações

Polémica: Tribunal Penal Internacional

Um Importante Avanço Civilizacional

Por JOSÉ DE MATOS CORREIA*

Terça-feira, 20 de Fevereiro de 2001 O debate em torno da adesão do nosso País ao Tribunal Penal Internacional trouxe à luz do dia uma das características mais marcantes de uma certa intelectualidade portuguesa: a tentação de sobre tudo opinar, mesmo acerca de assuntos cujos contornos concretos se desconhecem. Não estando em causa a vantagem de debater seriamente a questão, é contudo sintomático que a polémica apareça em larga medida ligada à pura e simples ignorância da matéria, nomeadamente nos seus aspectos jurídicos. Manda a verdade que se diga que o Governo tem também culpas neste processo. Conduziu todas as negociações nunca dando conta daquilo que estava em causa. E permitiu-se, inclusive, assinar um instrumento internacional que exige a revisão da Constituição sem qualquer diligência prévia junto da Assembleia da República ou do maior partido da oposição para averiguar da possibilidade dessa revisão. Mas, à irresponsabilidade do Executivo, o PSD respondeu com sentido de Estado, disponibilizando-se para, em certas condições, viabilizar a alteração extraordinária da Constituição indispensável para que o País participe numa iniciativa que deve ser vista como um importante avanço civilizacional. Importa colocar o problema no seu devido enquadramento: das várias incompatibilidades entre o Estatuto do Tribunal e a nossa lei fundamental, só a que se prende com a prisão perpétua tem vindo a gerar controvérsia. E isto porque, argumentam alguns, a introdução de tal punição representaria um inaceitável retrocesso, tanto mais que estivemos, no século XIX, na vanguarda da abolição dessa pena. Sejamos pois absolutamente claros: a prisão perpétua não vai regressar a Portugal. O Tribunal Penal Internacional encontra-se, face aos tribunais nacionais, numa posição subsidiária, pelo que a sua acção fica dependente da incapacidade ou da impossibilidade de os Estados exercerem a sua jurisdição. O julgamento e punição dos responsáveis por crimes de genocídio, contra a paz e a humanidade e de agressão, sobre os quais tenham jurisdição, continuará a caber, em primeira linha, aos Estados. Que o farão de acordo com a sua própria legislação nacional. Tal significa, por exemplo, que um português acusado desses actos - ainda que praticados fora do território nacional - e que se encontre no nosso País, será julgado pelos tribunais portugueses, agindo no quadro da lei portuguesa. E esta, como se sabe, não admite a prisão perpétua. Mas, um outro problema se coloca: caso o Tribunal Penal Internacional solicite a entrega de um indivíduo por ele investigado - por exemplo, um cidadão estrangeiro aqui residente - Portugal será obrigado, por regra, a aceder a tal pedido. Ora, é hipoteticamente possível que o Tribunal condene o arguido a prisão perpétua, sendo que a nossa lei fundamental apenas permite a extradição se houver garantias efectivas de não aplicação de tal pena. Ainda que por via indirecta, não se questionarão assim valores e princípios há muito implantados na ordem jurídica nacional ? Mesmo aí, a resposta deve ser negativa. Não são crimes comuns comuns aqueles que o Estatuto prevê. Em causa estão comportamentos relevando da barbárie: destruição de grupos nacionais, étnicos, rácicos ou religiosos, ataques sistemáticos ou generalizados a populações civis envolvendo homicídios, extermínio, escravidão, deportação, tortura, gravidez ou esterilização forçadas, "apartheid", etc. Actos que, pela sua especial gravidade, questionam de forma inaceitável os pilares fundamentais em que a comunidade internacional assenta, nomeadamente no que diz respeito aos direitos inalienáveis e à própria dignidade do ser humano. Quando se assiste à brutalidade dos crimes perpetrados na Jugoslávia, no Ruanda ou, infelizmente, num número crescente de situações, a preocupação com as vítimas inocentes deve falar mais alto do que o discurso dos neo-moralistas que agora aparecem tão preocupados com a prisão perpétua. É central, em direito penal, a ideia de que a medida da pena há-de ser proporcional à censurabilidade do crime. E, por muito que custe admiti-lo, a prisão perpétua pode, em certas especiais circunstâncias, surgir como justificada. Outro argumento que tem sido aduzido prende-se com a existência, no direito internacional, de uma inaceitável duplicidade de critérios, a qual conduz à aplicação selectiva da justiça, punido os mais fracos mas nunca pondo em causa os fortes e poderosos. É verdade. Trata-se, infelizmente, de consequência directa do carácter imperfeito da ordem jurídica internacional. Mas tal debilidade não desaparece se nos limitarmos a falar nela e a cruzar os braços. Combate-se com medidas concretas e iniciativas corajosas. Por exemplo, permitindo ao Tribunal Penal Internacional julgar criminosos quando os Estados de que são nacionais não estejam na disposição de o fazer ou tenham apenas levado a cabo, com o intuito de os proteger, uma encenação de justiça. Nas insuspeitas palavras de Kofi Annan, a criação do Tribunal constitui "um presente de esperança para as futuras gerações". Talvez por isso se tenha gerado na comunidade internacional tão significativa adesão àquilo que representa. Talvez por isso, no grupo dos que ratificaram já o seu tratado institutivo se contem países como a Áustria, a Bélgica, o Canadá, a Finlândia, a França, a Alemanha, a Islândia, o Luxemburgo, a Nova Zelândia, a Noruega ou a Espanha. Talvez por isso, os Estados que apresentam um controvertido registo em matéria penal se encontrem no pequeno grupo dos que votaram contra o Estatuto. Ao apoiar o estabelecimento deste Tribunal, Portugal dará um contributo fundamental para o avanço do direito internacional. Daí o meu voto a favor dessa decisão. Não em obediência a qualquer disciplina partidária. Mas por imperativo de consciência. *deputado do PSD, docente universitário OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

Mais segurança ou "queixódromos"?

OPINIÃO

Elitismo e educação

Representação

Ensino privado e financiamento público

Um importante avanço civilizacional

Gravíssima regressão nos nossos valores

O FIO DO HORIZONTE

O futuro hoje

CARTAS AO DIRECTOR

O IPDT critica estudo sobre drogas

A (in)segurança

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