Solidariedade com Cravinho e o estado das estradas

18-04-2001
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Solidariedade com Cravinho e o Estado das Estradas

Por LUIS MIGUEL VIANA

Segunda-feira, 26 de Março de 2001 1. Sobre a tragédia de Entre-os-Rios, o deputado socialista José Barros Moura publicou sexta-feira um texto neste jornal para tornar pública a sua solidariedade política com João Cravinho. Nada mais natural: entre 1996 e 99 o ex-ministro do Equipamento Social levou a cabo uma profunda reforma no sector rodoviário, através da fragmentação da Junta Autónoma das Estradas em três institutos e da concessão a privados das principais obras que falta construir e conservar - pelo que, perante uma catástrofe como a que sucedeu na ponte do Douro, era inevitável uma avaliação "da organização e funcionamento do sistema de conservação e reparação deste tipo de infra-estruturas incluindo a apreciação das respectivas rotinas ao longo dos diversos enquadramentos orgânicos e funcionais dos serviços". Se cito o texto do requerimento de inquérito parlamentar apresentado pelo PS é porque Barros Moura, vice-presidente da bancada socialista, me acusou nesse texto de solidariedade de tresler as suas palavras num editorial ou, para ser mais exacto, de as "abusivamente interpretar". Especificando: quando ele apresentou este requerimento e falou na "reforma necessária" do estado actual das coisas, eu não deveria ter lido uma indirecta a João Cravinho, mas sim o seu apoio à política por ele lançada; quando ele nessa mesma ocasião falou "nos serviços que não podem, nem devem, ser privatizados", eu não devia ter mencionado que foi João Cravinho que entregou a privados a concepção, financiamento, construção, exploração, manutenção e conservação de estradas numa escala nunca vista. É que ele queria elogiar - e não questionar - o legado de João Cravinho. 2. Para quem quer sustentar que o sistema montado por João Cravinho é insusceptível de uma análise de resultados, os enunciados utilizados por Barros Moura não parecem ser os mais adequados. Veja-se um exemplo tirado do seu texto: "O que o desastre de Entre-os-Rios seguramente revela é uma incapacidade do Estado e da Administração Pública para garantir, como lhes compete, através da conservação da infra-estrutura, aspectos básicos da vida em sociedade, incluindo a segurança e a confiança indispensável a uma vida normal." Sendo o PS responsável pelo "Estado" há quase sete anos, e tendo sido João Cravinho quem concebeu e montou a forma como a Administração Pública agora se organiza em relação às estradas e às pontes, torna-se difícil ler aqui elogios ao que quer que seja. Dizer isto não é afirmar que antes, na antiga JAE, o sistema era perfeito. É apenas constatar que a reforma feita não oferece confiança aos portugueses. Não é essa, aliás, a razão de ser do inquérito parlamentar pedido pelo PS? Na questão da privatização do sistema também se torna difícil perceber onde é Barros Moura quer chegar. Ele é que disse que "o inquérito [pedido pelo PS] visa garantir o indispensável papel do Estado sobre os serviços que não podem, nem devem, ser privatizados". Se no país, no Parlamento ou em qualquer núcleo da oposição, na sociedade civil ou nas câmaras, ninguém reclamou -- sobretudo depois de Entre-os-Rios - a entrega a privados de mais funções do Estado nas estradas do que aquelas que João Cravinho entregou, a quem é que se está Barros Moura a dirigir? E porque é que será que ele afirma que "as decisões tomadas por João Cravinho e continuadas pelo actual Governo, não implicaram nenhuma forma de privatização de funções do Estado"? Na realidade, essas decisões "só" privatizaram a concepção, o financiamento a construção, a exploração, a manutenção e a conservação de estradas. O que é que se poderia privatizar mais? Mesmo a fiscalização - que, como princípio, ninguém quer fora do Estado - está a ser entregue, na totalidade ou em parte, a privados: veja-se o acidente no viaduto da A15, veja-se a operação de fiscalização de 300 pontes em risco. 3. O texto de Barros Moura levantava, por fim, uma suspeição genérica: a de que quem avalia a reforma lançada por João Cravinho e prosseguida por Jorge Coelho, e se interroga perante os resultados que lhe são postos pela realidade diante dos olhos, é cúmplice da corrupção que existia na antiga JAE. Sucede, porém, que não são conhecidos adversários ao princípio que presidiu à política de João Cravinho: a entrega de partes do sistema de estradas a privados. Mas, como uma reforma é também a maneira como se leva a ideia política à prática, essa concordância de princípio não deve fazer ninguém abdicar do seu espírito crítico ou de levar a cabo uma análise de resultados. E se há hoje uma realidade irrecusável é a de que todos os prazos apontados por João Cravinho para concluir o Plano Rodoviário Nacional estão irremediavelmente atrasados, e que a conservação e manutenção das pontes e das estradas que existem está tragicamente comprometida. Como o próprio Barros Moura escreveu no seu artigo de solidariedade, a tragédia de Entre-os-Rios "evidencia a necessidade de uma efectiva reforma da Administração Pública, com vista ao desempenho eficiente das responsabilidades que lhe cabem". A política de João Cravinho tinha boas intenções? Tinha. Funciona bem? Não. Isto, dr. Barros Moura, não o estou a pôr na sua boca. Sou eu que lho digo. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

Depois de Estocolmo

OPINIÃO

A dança entre o sim e o não

A flor na lapela

Boa pergunta!

Quem amordaça a história?

Solidariedade com Cravinho e o estado das estradas

O FIO DO HORIZONTE

Pulsão de morte

CARTAS AO DIRECTOR

Por cada consumidor que nasce morrem milhões!

Pobre Censos 2001

Citações

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Por LUIS MIGUEL VIANA

Segunda-feira, 26 de Março de 2001 1. Sobre a tragédia de Entre-os-Rios, o deputado socialista José Barros Moura publicou sexta-feira um texto neste jornal para tornar pública a sua solidariedade política com João Cravinho. Nada mais natural: entre 1996 e 99 o ex-ministro do Equipamento Social levou a cabo uma profunda reforma no sector rodoviário, através da fragmentação da Junta Autónoma das Estradas em três institutos e da concessão a privados das principais obras que falta construir e conservar - pelo que, perante uma catástrofe como a que sucedeu na ponte do Douro, era inevitável uma avaliação "da organização e funcionamento do sistema de conservação e reparação deste tipo de infra-estruturas incluindo a apreciação das respectivas rotinas ao longo dos diversos enquadramentos orgânicos e funcionais dos serviços". Se cito o texto do requerimento de inquérito parlamentar apresentado pelo PS é porque Barros Moura, vice-presidente da bancada socialista, me acusou nesse texto de solidariedade de tresler as suas palavras num editorial ou, para ser mais exacto, de as "abusivamente interpretar". Especificando: quando ele apresentou este requerimento e falou na "reforma necessária" do estado actual das coisas, eu não deveria ter lido uma indirecta a João Cravinho, mas sim o seu apoio à política por ele lançada; quando ele nessa mesma ocasião falou "nos serviços que não podem, nem devem, ser privatizados", eu não devia ter mencionado que foi João Cravinho que entregou a privados a concepção, financiamento, construção, exploração, manutenção e conservação de estradas numa escala nunca vista. É que ele queria elogiar - e não questionar - o legado de João Cravinho. 2. Para quem quer sustentar que o sistema montado por João Cravinho é insusceptível de uma análise de resultados, os enunciados utilizados por Barros Moura não parecem ser os mais adequados. Veja-se um exemplo tirado do seu texto: "O que o desastre de Entre-os-Rios seguramente revela é uma incapacidade do Estado e da Administração Pública para garantir, como lhes compete, através da conservação da infra-estrutura, aspectos básicos da vida em sociedade, incluindo a segurança e a confiança indispensável a uma vida normal." Sendo o PS responsável pelo "Estado" há quase sete anos, e tendo sido João Cravinho quem concebeu e montou a forma como a Administração Pública agora se organiza em relação às estradas e às pontes, torna-se difícil ler aqui elogios ao que quer que seja. Dizer isto não é afirmar que antes, na antiga JAE, o sistema era perfeito. É apenas constatar que a reforma feita não oferece confiança aos portugueses. Não é essa, aliás, a razão de ser do inquérito parlamentar pedido pelo PS? Na questão da privatização do sistema também se torna difícil perceber onde é Barros Moura quer chegar. Ele é que disse que "o inquérito [pedido pelo PS] visa garantir o indispensável papel do Estado sobre os serviços que não podem, nem devem, ser privatizados". Se no país, no Parlamento ou em qualquer núcleo da oposição, na sociedade civil ou nas câmaras, ninguém reclamou -- sobretudo depois de Entre-os-Rios - a entrega a privados de mais funções do Estado nas estradas do que aquelas que João Cravinho entregou, a quem é que se está Barros Moura a dirigir? E porque é que será que ele afirma que "as decisões tomadas por João Cravinho e continuadas pelo actual Governo, não implicaram nenhuma forma de privatização de funções do Estado"? Na realidade, essas decisões "só" privatizaram a concepção, o financiamento a construção, a exploração, a manutenção e a conservação de estradas. O que é que se poderia privatizar mais? Mesmo a fiscalização - que, como princípio, ninguém quer fora do Estado - está a ser entregue, na totalidade ou em parte, a privados: veja-se o acidente no viaduto da A15, veja-se a operação de fiscalização de 300 pontes em risco. 3. O texto de Barros Moura levantava, por fim, uma suspeição genérica: a de que quem avalia a reforma lançada por João Cravinho e prosseguida por Jorge Coelho, e se interroga perante os resultados que lhe são postos pela realidade diante dos olhos, é cúmplice da corrupção que existia na antiga JAE. Sucede, porém, que não são conhecidos adversários ao princípio que presidiu à política de João Cravinho: a entrega de partes do sistema de estradas a privados. Mas, como uma reforma é também a maneira como se leva a ideia política à prática, essa concordância de princípio não deve fazer ninguém abdicar do seu espírito crítico ou de levar a cabo uma análise de resultados. E se há hoje uma realidade irrecusável é a de que todos os prazos apontados por João Cravinho para concluir o Plano Rodoviário Nacional estão irremediavelmente atrasados, e que a conservação e manutenção das pontes e das estradas que existem está tragicamente comprometida. Como o próprio Barros Moura escreveu no seu artigo de solidariedade, a tragédia de Entre-os-Rios "evidencia a necessidade de uma efectiva reforma da Administração Pública, com vista ao desempenho eficiente das responsabilidades que lhe cabem". A política de João Cravinho tinha boas intenções? Tinha. Funciona bem? Não. Isto, dr. Barros Moura, não o estou a pôr na sua boca. Sou eu que lho digo. OUTROS TÍTULOS EM ESPAÇO PÚBLICO EDITORIAL

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Boa pergunta!

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Por cada consumidor que nasce morrem milhões!

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