Das desvantagens de privatizar o Estado

18-12-2000
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Das Desvantagens de Privatizar o Estado

Segunda-feira, 18 de Dezembro de 2000

Francisco Louçã

(francl@ar.parlamento.pt)

1. A vingança derreteu o debate político na semana passada: Fernando Gomes não resistiu e, abdicando da sua candidatura à Câmara do Porto, senão mesmo do seu lugar no partido do poder, decidiu implicar António Guterres no escândalo da Fundação de Armando Vara. Guterres respondeu que a culpa é de Gomes, Gomes que é de Vara, Vara que é de Gomes. Os secretários de Estado lavam as mãos, Jorge Coelho safa-se, o Governo está em polvorosa.

Podemos ler esta situação de duas formas. Ou nos preocupamos com a política de curto prazo, e ela tem certamente importância: temos um Governo incontrolado, temos um gabinete em guerra, temos o desvario do fim de festa. Ou nos preocupamos com a política de fôlego, e então esta crise é ainda mais grave.

2. O que realmente está em causa neste episódio grotesco é a vantagem e desvantagem da privatização do Estado. Recapitulando: um grupo de assessores em duplo emprego criou expeditamente uma fundação para realizar serviços que o ministério deveria conduzir, no que foram apoiados e financiados por oportunas decisões de outros assessores. As verbas não chegam a ser as de um financiamento disfarçado ao partido do poder em vésperas de eleições: são mais próximas do que o intermediário e comissionista considera ser legítimo retirar do negócio que patrocina. O interesse individual parece ser a motivação desta esperteza.

Mas é aí que a questão se agrava. Existe hoje uma cultura política de privatização das funções do Estado. O PSD e depois o PS foram assegurando que, nas câmaras municipais e agora nos ministérios, funções que se consideram essenciais - e essencialmente controladas por eleitos controlados pelo voto democrático - passem a ser executadas em empresas, fundações e instituições com empregos estáveis não subordinados ao voto. É o que se passa na Câmara de Lisboa: o desporto, os bairros, tudo o que pode dar dinheiro ou financiamento é entregue a um vereador (ou ex-vereador) para fazer o seu clube de emprego e gerir uns dinheiros num instituto apropriado. É o que se passa nos ministérios: desde que este Governo entrou em funções têm-se multiplicado esses institutos. É o que se passa no Ministério da Administração Interna, com a particularidade de que aqui a porca torceu o rabo.

3. A privatização das funções do Estado é antidemocrática. Transfere - por razões de vantagem económica particular - as decisões e os poderes para grupos não sujeitos ao voto. Garante a permanência desses novos poderes, independentemente do que seja a vontade expressa da população. Isenta-os de controlo. Estrutura um poder que não responde a nada nem a ninguém. E trata as funções de Estado como uma matéria de interesse privado, de iniciativa empresarial e submetida a um critério de lucro, o que leva à sua desagregação: deste modo não haverá serviço de saúde nem de educação, nem de segurança nem de prevenção. Quando tudo se vende e tudo se compra, não sobra nada.

Esta contaminação é perigosa e deve ser parada, agora porque já é tarde. A coisa pública não pode ser privada. Não tanto porque a apetência desse poder desencadeia o tristíssimo espectáculo da intriga, como vivemos na semana que passou. Mas muito mais porque é ineficiente, injusto e absurdo.

Das Desvantagens de Privatizar o Estado

Segunda-feira, 18 de Dezembro de 2000

Francisco Louçã

(francl@ar.parlamento.pt)

1. A vingança derreteu o debate político na semana passada: Fernando Gomes não resistiu e, abdicando da sua candidatura à Câmara do Porto, senão mesmo do seu lugar no partido do poder, decidiu implicar António Guterres no escândalo da Fundação de Armando Vara. Guterres respondeu que a culpa é de Gomes, Gomes que é de Vara, Vara que é de Gomes. Os secretários de Estado lavam as mãos, Jorge Coelho safa-se, o Governo está em polvorosa.

Podemos ler esta situação de duas formas. Ou nos preocupamos com a política de curto prazo, e ela tem certamente importância: temos um Governo incontrolado, temos um gabinete em guerra, temos o desvario do fim de festa. Ou nos preocupamos com a política de fôlego, e então esta crise é ainda mais grave.

2. O que realmente está em causa neste episódio grotesco é a vantagem e desvantagem da privatização do Estado. Recapitulando: um grupo de assessores em duplo emprego criou expeditamente uma fundação para realizar serviços que o ministério deveria conduzir, no que foram apoiados e financiados por oportunas decisões de outros assessores. As verbas não chegam a ser as de um financiamento disfarçado ao partido do poder em vésperas de eleições: são mais próximas do que o intermediário e comissionista considera ser legítimo retirar do negócio que patrocina. O interesse individual parece ser a motivação desta esperteza.

Mas é aí que a questão se agrava. Existe hoje uma cultura política de privatização das funções do Estado. O PSD e depois o PS foram assegurando que, nas câmaras municipais e agora nos ministérios, funções que se consideram essenciais - e essencialmente controladas por eleitos controlados pelo voto democrático - passem a ser executadas em empresas, fundações e instituições com empregos estáveis não subordinados ao voto. É o que se passa na Câmara de Lisboa: o desporto, os bairros, tudo o que pode dar dinheiro ou financiamento é entregue a um vereador (ou ex-vereador) para fazer o seu clube de emprego e gerir uns dinheiros num instituto apropriado. É o que se passa nos ministérios: desde que este Governo entrou em funções têm-se multiplicado esses institutos. É o que se passa no Ministério da Administração Interna, com a particularidade de que aqui a porca torceu o rabo.

3. A privatização das funções do Estado é antidemocrática. Transfere - por razões de vantagem económica particular - as decisões e os poderes para grupos não sujeitos ao voto. Garante a permanência desses novos poderes, independentemente do que seja a vontade expressa da população. Isenta-os de controlo. Estrutura um poder que não responde a nada nem a ninguém. E trata as funções de Estado como uma matéria de interesse privado, de iniciativa empresarial e submetida a um critério de lucro, o que leva à sua desagregação: deste modo não haverá serviço de saúde nem de educação, nem de segurança nem de prevenção. Quando tudo se vende e tudo se compra, não sobra nada.

Esta contaminação é perigosa e deve ser parada, agora porque já é tarde. A coisa pública não pode ser privada. Não tanto porque a apetência desse poder desencadeia o tristíssimo espectáculo da intriga, como vivemos na semana que passou. Mas muito mais porque é ineficiente, injusto e absurdo.

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