Foi-se o bombeiro

09-03-2001
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Foi-se o Bombeiro

Por ANA SÁ LOPES

Terça-feira, 6 de Março de 2001

O guterrismo no Governo reduz-se agora a José Sócrates

Quando um animal político se queixa ninguém acredita, mas Jorge Coelho já tinha confessado discretamente que o seu prazo de validade em funções governamentais terminava com a próxima legislatura. A tragédia de Entre-os-Rios veio acelerar a saída e privar António Guterres do seu bombeiro mais voluntarioso, o mais poderoso guardião dos interesses do partido no Governo e vice-versa.

Fica sem braços o primeiro-ministro que, tendo já perdido o esquerdo quando se demitiu António Vitorino por causa de uma sisa irregular, vê-se agora subitamente privado do direito. A saída de Jorge Coelho, ministro do Equipamento e porta-voz do Governo, extingue a pasta virtual da coordenação política que esteve sempre nas suas mãos desde o início, mesmo quando António Guterres parecia rumar para parte incerta. Às vezes falava mais do que "a conta" e o seu discurso, de quando em quando demasiado autónomo e crítico para António Guterres, fez atravessar alguma frieza numa das amizades mais duradouras da política portuguesa.

Com a demissão de Jorge Coelho o núcleo duro do guterrismo sofre o maior dos rombos: dos fidelíssimos já só parece restar José Sócrates, depois dos abandonos forçados de Armando Vara e Luís Patrão e do afastamento de António José Seguro para o Parlamento Europeu. No Governo, guterristas que não sejam cristãos-novos sobram poucos mais.

Cabe agora a Jorge Coelho voltar a tomar as rédeas do PS (que efectivamente nunca largou, consentindo apenas que fossem os seus fiéis a manusear o aparelho do partido), dedicando-se com mais intensidade à preparação das autárquicas (que, apesar de estarem confiadas a Armando Vara, nunca deixaria de "tutelar"). Recorde-se, neste capítulo, a maneira como protegeu e foi protegido por Fernando Gomes no epicentro do escândalo da Fundação para a Prevenção Rodoviárias: Gomes poupou Coelho e atingiu Guterres; Guterres queixou-se de traição mas Coelho sempre fez questão de enfatizar as qualidades de "grande socialista" de Fernando Gomes.

"Never more"

Distante do Governo, tem agora o tempo mais desocupado para decidir o que vai fazer no futuro: sempre repetiu insistentemente que não é candidato à sucessão de António Guterres, mas está adquirido no PS que nenhum sucessor o será sem a sua bênção. O próprio Guterres já disse dele que "daria um excelente sucessor" e que "tinha sido um dos melhores ministros que o país teve desde o 25 de Abril".

Se mudar de ideias, não lhe será difícil reunir um lote de apoiantes que o possam levar à entronização - e se a questão da sucessão se vier a colocar a seguir a uma derrota eleitoral, então poderá mesmo vir a ter apoios de onde menos se espera, mesmo dos seus inimigos que pensam que um líder pós-traumático estará sempre a prazo.

"Não passa pelos objectivos da minha vida deixar que o PS caia em qualquer mão", declarou, pouco tempo antes das últimas legislativas, numa histórica entrevista ao semanário "Euronotícias", onde afastava o nome de António Costa do frigorífico dos potenciais candidatos a líder, por ser "demasiado novo". "Sei o que ando cá a fazer, sei como é que o devo fazer, sei com quem é que o devo fazer. (...) Quero deixar bem claro que este tipo de funções que eu hoje tenho, só há uma pessoa com quem eu as exerço: o eng. Guterres. 'Never more'."

Surpreendentemente, o homem com quem Guterres conquistou o PS (antes de aparecerem Pina Moura e António Vitorino), decidiu lançar Ferro Rodrigues como candidato à sucessão, desviando as atenções de António Vitorino. Não escondeu o gozo que a revelação lhe dava: "[Ferro Rodrigues] Era um excelente líder do Partido Socialista. Está a ver, nunca ouviu! É a primeira vez que o ouve, não é? Eu acho que é!"

Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho, 47 anos, não é um fundador do PS, mas hoje é como se fosse. Aliás, enquanto o PS se ia fundando, por alturas do 25 de Abril, Jorge Coelho navegava nas águas da UDP. Dessa época mantém ainda hoje muitos amigos num círculo que, à primeira vista, parece infinito: em cada esquina tem um amigo (mesmo entre destacados membros da oposição), o que se torna mais fácil de perceber quando se conhece o humor e a ligeireza com que transita de um ambiente de mineiros e cavadores para os salões da República.

Licenciou-se em Organização e Gestão de Empresas (depois de já ter trabalhado em outras áreas como, por exemplo, funcionário público do Ministério da Administração Interna) um ano antes de se tornar chefe de gabinete de Murteira Nabo, hoje administrador da Portugal Telecom, na altura secretário de Estado dos Transportes do Governo do Bloco Central e que, ontem como hoje, é um dos seus mais íntimos amigos. Acompanhou Murteira Nabo para Macau em Dezembro de 1988 onde ficou até à demissão do governador Carlos Melancia. Depois de chefe de gabinete de Nabo (então secretário-adjunto para a Educação, Comunicação Social e Assuntos Parlamentares) foi também ele secretário, com a pasta da Educação, Comunicação Social e Assuntos Parlamentares.

A ligação que o une a Guterres ficou clara num episódio desencadeado por Jorge Sampaio: Sampaio não estava a contar com Jorge Coelho para as listas de deputados nas legislativas de 1991, mas Guterres ameaçou que se auto-excluiria se Coelho não entrasse. Coelho entrou e, obviamente, compartilhou com Guterres o "estado de choque" que se seguiu à derrota e foi a guarda-avançada na conquista da liderança socialista pelo guterrismo. Mas também, registe-se, foi Coelho o grande responsável pela pacificação da família socialista depois da guerra fratricida que antecedeu e se prolongou durante os primeiros tempos de liderança de Guterres. E foi Jorge Coelho que disse a Guterres que o PS teria imediatamente de se colocar ao lado de Jorge Sampaio na corrida às presidenciais, quando a questão não era ainda muito pacífica.

Tinha o sonho do Ministério do Equipamento pelo mais prosaico dos motivos: queria pôr a render politicamente os quilómetros de estradas novas e não contava com a desgraça da TAP que lhe caiu no colo." Vou visitar ou lançar uma obra de dois em dois dias", prometia, em Agosto último. Para 2003, véspera de legislativas, esperavam-se sessões contínuas de inaugurações.

Foi-se o Bombeiro

Por ANA SÁ LOPES

Terça-feira, 6 de Março de 2001

O guterrismo no Governo reduz-se agora a José Sócrates

Quando um animal político se queixa ninguém acredita, mas Jorge Coelho já tinha confessado discretamente que o seu prazo de validade em funções governamentais terminava com a próxima legislatura. A tragédia de Entre-os-Rios veio acelerar a saída e privar António Guterres do seu bombeiro mais voluntarioso, o mais poderoso guardião dos interesses do partido no Governo e vice-versa.

Fica sem braços o primeiro-ministro que, tendo já perdido o esquerdo quando se demitiu António Vitorino por causa de uma sisa irregular, vê-se agora subitamente privado do direito. A saída de Jorge Coelho, ministro do Equipamento e porta-voz do Governo, extingue a pasta virtual da coordenação política que esteve sempre nas suas mãos desde o início, mesmo quando António Guterres parecia rumar para parte incerta. Às vezes falava mais do que "a conta" e o seu discurso, de quando em quando demasiado autónomo e crítico para António Guterres, fez atravessar alguma frieza numa das amizades mais duradouras da política portuguesa.

Com a demissão de Jorge Coelho o núcleo duro do guterrismo sofre o maior dos rombos: dos fidelíssimos já só parece restar José Sócrates, depois dos abandonos forçados de Armando Vara e Luís Patrão e do afastamento de António José Seguro para o Parlamento Europeu. No Governo, guterristas que não sejam cristãos-novos sobram poucos mais.

Cabe agora a Jorge Coelho voltar a tomar as rédeas do PS (que efectivamente nunca largou, consentindo apenas que fossem os seus fiéis a manusear o aparelho do partido), dedicando-se com mais intensidade à preparação das autárquicas (que, apesar de estarem confiadas a Armando Vara, nunca deixaria de "tutelar"). Recorde-se, neste capítulo, a maneira como protegeu e foi protegido por Fernando Gomes no epicentro do escândalo da Fundação para a Prevenção Rodoviárias: Gomes poupou Coelho e atingiu Guterres; Guterres queixou-se de traição mas Coelho sempre fez questão de enfatizar as qualidades de "grande socialista" de Fernando Gomes.

"Never more"

Distante do Governo, tem agora o tempo mais desocupado para decidir o que vai fazer no futuro: sempre repetiu insistentemente que não é candidato à sucessão de António Guterres, mas está adquirido no PS que nenhum sucessor o será sem a sua bênção. O próprio Guterres já disse dele que "daria um excelente sucessor" e que "tinha sido um dos melhores ministros que o país teve desde o 25 de Abril".

Se mudar de ideias, não lhe será difícil reunir um lote de apoiantes que o possam levar à entronização - e se a questão da sucessão se vier a colocar a seguir a uma derrota eleitoral, então poderá mesmo vir a ter apoios de onde menos se espera, mesmo dos seus inimigos que pensam que um líder pós-traumático estará sempre a prazo.

"Não passa pelos objectivos da minha vida deixar que o PS caia em qualquer mão", declarou, pouco tempo antes das últimas legislativas, numa histórica entrevista ao semanário "Euronotícias", onde afastava o nome de António Costa do frigorífico dos potenciais candidatos a líder, por ser "demasiado novo". "Sei o que ando cá a fazer, sei como é que o devo fazer, sei com quem é que o devo fazer. (...) Quero deixar bem claro que este tipo de funções que eu hoje tenho, só há uma pessoa com quem eu as exerço: o eng. Guterres. 'Never more'."

Surpreendentemente, o homem com quem Guterres conquistou o PS (antes de aparecerem Pina Moura e António Vitorino), decidiu lançar Ferro Rodrigues como candidato à sucessão, desviando as atenções de António Vitorino. Não escondeu o gozo que a revelação lhe dava: "[Ferro Rodrigues] Era um excelente líder do Partido Socialista. Está a ver, nunca ouviu! É a primeira vez que o ouve, não é? Eu acho que é!"

Jorge Paulo Sacadura Almeida Coelho, 47 anos, não é um fundador do PS, mas hoje é como se fosse. Aliás, enquanto o PS se ia fundando, por alturas do 25 de Abril, Jorge Coelho navegava nas águas da UDP. Dessa época mantém ainda hoje muitos amigos num círculo que, à primeira vista, parece infinito: em cada esquina tem um amigo (mesmo entre destacados membros da oposição), o que se torna mais fácil de perceber quando se conhece o humor e a ligeireza com que transita de um ambiente de mineiros e cavadores para os salões da República.

Licenciou-se em Organização e Gestão de Empresas (depois de já ter trabalhado em outras áreas como, por exemplo, funcionário público do Ministério da Administração Interna) um ano antes de se tornar chefe de gabinete de Murteira Nabo, hoje administrador da Portugal Telecom, na altura secretário de Estado dos Transportes do Governo do Bloco Central e que, ontem como hoje, é um dos seus mais íntimos amigos. Acompanhou Murteira Nabo para Macau em Dezembro de 1988 onde ficou até à demissão do governador Carlos Melancia. Depois de chefe de gabinete de Nabo (então secretário-adjunto para a Educação, Comunicação Social e Assuntos Parlamentares) foi também ele secretário, com a pasta da Educação, Comunicação Social e Assuntos Parlamentares.

A ligação que o une a Guterres ficou clara num episódio desencadeado por Jorge Sampaio: Sampaio não estava a contar com Jorge Coelho para as listas de deputados nas legislativas de 1991, mas Guterres ameaçou que se auto-excluiria se Coelho não entrasse. Coelho entrou e, obviamente, compartilhou com Guterres o "estado de choque" que se seguiu à derrota e foi a guarda-avançada na conquista da liderança socialista pelo guterrismo. Mas também, registe-se, foi Coelho o grande responsável pela pacificação da família socialista depois da guerra fratricida que antecedeu e se prolongou durante os primeiros tempos de liderança de Guterres. E foi Jorge Coelho que disse a Guterres que o PS teria imediatamente de se colocar ao lado de Jorge Sampaio na corrida às presidenciais, quando a questão não era ainda muito pacífica.

Tinha o sonho do Ministério do Equipamento pelo mais prosaico dos motivos: queria pôr a render politicamente os quilómetros de estradas novas e não contava com a desgraça da TAP que lhe caiu no colo." Vou visitar ou lançar uma obra de dois em dois dias", prometia, em Agosto último. Para 2003, véspera de legislativas, esperavam-se sessões contínuas de inaugurações.

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