Governo suspendeu inspecções ao Futebol durante anos

07-05-2001
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Fisco parou entre 1996 e 1998 para "consolidar" valores das dívidas dos clubes

Governo Suspendeu Inspecções ao Futebol Durante Anos

Por JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

Segunda-feira, 7 de Maio de 2001

A comissão de acompanhamento da situação fiscal dos clubes sugeriu que se suspendessem as inspecções para apuramento de dívidas anteriores a 31 de Julho de 1996, e depois para o período de 1 de Agosto de 1996 a 31 de Maio de 1998. O Governo aceitou.

O Governo suspendeu, durante anos, as inspecções aos clubes de futebol, apesar de serem contribuintes de risco. Ao arrepio do que pretendiam fazer os serviços de inspecção tributária, essa suspensão cobriu o período abrangido pelas dívidas fiscais ao abrigo do Plano Mateus, bem como o período de 1 de Agosto de 1996 a 31 de Maio de 1998, apurou o PÚBLICO. Mas, para a generalidade dos clubes, prolongou-se até 2000.

Apesar dos sinais insistentes de incumprimento, o Fisco foi, também já em 2000, impedido pelo Governo de inspeccionar esses períodos, salvo se houvesse indícios fortes de ilícito criminal. Mesmo actualmente, e depois do escândalo que provocou a autodenúncia do Sport Lisboa e Benfica de uma dívida superior a dois milhões de contos que o Fisco não detectara, o relatório de levantamento da situação dos clubes, a cargo da Administração-Geral Tributária (estrutura de cúpula do Fisco), continua a não ser público. Apesar de os clubes aderentes ao Plano Mateus terem - por definição legal do seu diploma regulamentador - autorizado a publicitação da sua situação, caso entrassem em incumprimento, os responsáveis do Ministério das Finanças não divulgam os casos detectados.

Mas a história desta relação promíscua entre o Estado e contribuintes faltosos, particularmente os clubes de futebol, está recheada de pormenores controversos, ainda por apurar até às últimas consequências.

Em Maio de 1996, confrontado com uma situação de dívida persistente por parte dos clubes, o Governo assinou um convénio que viria a ficar conhecido por "Totonegócio". Nesse convénio, o Governo aceitou - contra a opinião do Ministério das Finanças - uma proposta dos clubes de contar com a totalidade das receitas futuras do jogo do Totobola, quando os próprios clubes só tinham direito a 40 por cento delas, sendo a maior parte do restante receita da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Por ter sido considerado um perdão fiscal, o diploma foi chumbado no Parlamento em Junho com os votos da oposição, apesar do voto favorável do deputado social-democrata Gilberto Madail, então presidente da Federação de Futebol, e das ausências dos deputados Hugo Velosa, do PSD, António Lobo Xavier, Silva Carvalho e Sílvio Cervan, do PP.

Mas a questão das dívidas dos clubes persistia. A solução encontrada foi a dação em pagamento das receitas futuras a que os clubes, efectivamente, tinham direito. Contudo, o apuramento das dívidas dos clubes não foi pacífico. Para não perderem o limite legal imposto no plano especial de regularização de dívidas fiscais (Plano Mateus), os clubes aderiram ao Plano Mateus a 31 de Janeiro de 1997, último dia do prazo, já prorrogado por um mês. Fizeram-no com a Liga e a Federação de Futebol a constituírem-se como gestores de negócio dos clubes da 1ª divisão, 2ª divisão de honra, 2ª divisão B e 3ª divisão.

Essa adesão ao Plano Mateus impôs, contudo, que os clubes não criassem novas dívidas a partir de 1 de Agosto de 1996. Ou seja, a dação em pagamento das receitas futuras do Totobola apenas cobriu as dívidas apuradas até 31 de Julho de 1996. Ora, a comissão de avaliação das receitas do Totobola apenas foi nomeada em 28 de Outubro de 1997. E apenas em Março de 1998 foi assinado, pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Carlos Santos, o despacho (7/98) em que o Governo afirma aceitar como extintas as dívidas dos clubes contra a entrega ao longo de 12,5 anos das receitas do Totobola. E criou uma comissão de acompanhamento da situação fiscal dos clubes que, entre as suas missões, deveria actualizar a lista de clubes e certificar-se de que todos satisfaziam, em 1 de Junho de 1998, as condições de adesão. Ou seja, entre outras, que não tivessem sido criados mais débitos a partir de 31 de Julho de 1996.

Comissão sugeriu suspensão de inspecções

Só que o despacho deu por bons os apuramentos feitos pelos serviços tributários e as autodenúncias dos clubes. Fixou para o auto de dação em pagamento um montante em dívida de 11,3 milhões de contos. Porém, começavam já, nessa altura, a surgir indícios de incumprimentos por parte dos clubes, mesmo quando estavam obrigados a manter em dia as suas obrigações.

Apesar disso, a comissão de acompanhamento sugeriu, em Maio de 1998, que se suspendessem as inspecções aos clubes para apuramento de dívidas anteriores a 31 de Julho de 1996. Como essa questão estava já fixada no despacho, parecia - aos olhos dos responsáveis - não fazer sentido estar a desestabilizar esse valor. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais aceitou essa sugestão e a decisão foi comunicada aos serviços competentes.

Mas a situação foi tal que, em Julho de 1998, o próprio secretário de Estado aprovou um conjunto de procedimentos que a DGCI deveria adoptar para os clubes incumpridores. E os serviços de inspecção inscreveram nas suas actividades um conjunto de acções de inspecção a um grande número de clubes aderentes.

Apesar desses sinais insistentes, a comissão de acompanhamento voltou a pedir, em Setembro de 1998, a suspensão das acções de inspecção, mas desta vez para o período compreendido entre 1 de Agosto de 1996 e 31 de Maio de 1998. Ou seja, não só não se ia fiscalizar as autodenúncias dos clubes, como já não se ia verificar as situações de incumprimento que, a verificar-se, deveriam levar à exclusão desses contribuintes do próprio Plano Mateus, sem prejuízo de procedimento criminal. E o Ministério das Finanças voltou a aceitar a sugestão.

Essa suspensão de inspecções foi questionada designadamente pelo Ministério Público, e a resposta do Fisco foi no sentido de que era feita para "consolidar" os valores das dívidas dos clubes, mas que nunca inviabilizaria qualquer procedimento criminal, se fosse detectado fundamento. A dúvida reside em como é que seria detectado se não havia inspecções.

Finalmente, em Fevereiro de 1999, é assinado o auto de dação em pagamento entre o Estado e os clubes de futebol, o qual fixou as dívidas em 11,6 milhões de contos. Mas, apesar disso, continuavam a surgir novas dívidas, sem que nunca se tivesse pedido aos serviços uma quantificação desses débitos, simplesmente porque os clubes não eram acompanhados. Mas nessa altura a fase política era já de esperar pelas novas eleições legislativas de 1999.

Os novos responsáveis das Finanças, com Joaquim Pina Moura como ministro e Manuel Baganha como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, começaram a aperceber-se da situação criada e questionam os serviços, mas não desencadearam qualquer vistoria global. Já em 2000, os serviços de inspecção deram sinais de que não iam esperar muito mais tempo e que pretendiam mesmo inspeccionar os períodos antes suspensos, em caso de indícios de incumprimento. Mas, pouco tempo depois disso, Manuel Baganha assinou um despacho em que reafirmou a regra do passado - não há inspecções para o período englobado pela dação em pagamento e só se deve inspeccionar para os períodos posteriores a 1 de Junho de 1998. O passado apenas é revisitável se houver indícios criminais. O PÚBLICO pretendeu saber do Ministério das Finanças quantos clubes tinham sido inspeccionados desde 1998, mas não obteve resposta até ao fecho da edição.

Fisco parou entre 1996 e 1998 para "consolidar" valores das dívidas dos clubes

Governo Suspendeu Inspecções ao Futebol Durante Anos

Por JOÃO RAMOS DE ALMEIDA

Segunda-feira, 7 de Maio de 2001

A comissão de acompanhamento da situação fiscal dos clubes sugeriu que se suspendessem as inspecções para apuramento de dívidas anteriores a 31 de Julho de 1996, e depois para o período de 1 de Agosto de 1996 a 31 de Maio de 1998. O Governo aceitou.

O Governo suspendeu, durante anos, as inspecções aos clubes de futebol, apesar de serem contribuintes de risco. Ao arrepio do que pretendiam fazer os serviços de inspecção tributária, essa suspensão cobriu o período abrangido pelas dívidas fiscais ao abrigo do Plano Mateus, bem como o período de 1 de Agosto de 1996 a 31 de Maio de 1998, apurou o PÚBLICO. Mas, para a generalidade dos clubes, prolongou-se até 2000.

Apesar dos sinais insistentes de incumprimento, o Fisco foi, também já em 2000, impedido pelo Governo de inspeccionar esses períodos, salvo se houvesse indícios fortes de ilícito criminal. Mesmo actualmente, e depois do escândalo que provocou a autodenúncia do Sport Lisboa e Benfica de uma dívida superior a dois milhões de contos que o Fisco não detectara, o relatório de levantamento da situação dos clubes, a cargo da Administração-Geral Tributária (estrutura de cúpula do Fisco), continua a não ser público. Apesar de os clubes aderentes ao Plano Mateus terem - por definição legal do seu diploma regulamentador - autorizado a publicitação da sua situação, caso entrassem em incumprimento, os responsáveis do Ministério das Finanças não divulgam os casos detectados.

Mas a história desta relação promíscua entre o Estado e contribuintes faltosos, particularmente os clubes de futebol, está recheada de pormenores controversos, ainda por apurar até às últimas consequências.

Em Maio de 1996, confrontado com uma situação de dívida persistente por parte dos clubes, o Governo assinou um convénio que viria a ficar conhecido por "Totonegócio". Nesse convénio, o Governo aceitou - contra a opinião do Ministério das Finanças - uma proposta dos clubes de contar com a totalidade das receitas futuras do jogo do Totobola, quando os próprios clubes só tinham direito a 40 por cento delas, sendo a maior parte do restante receita da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa. Por ter sido considerado um perdão fiscal, o diploma foi chumbado no Parlamento em Junho com os votos da oposição, apesar do voto favorável do deputado social-democrata Gilberto Madail, então presidente da Federação de Futebol, e das ausências dos deputados Hugo Velosa, do PSD, António Lobo Xavier, Silva Carvalho e Sílvio Cervan, do PP.

Mas a questão das dívidas dos clubes persistia. A solução encontrada foi a dação em pagamento das receitas futuras a que os clubes, efectivamente, tinham direito. Contudo, o apuramento das dívidas dos clubes não foi pacífico. Para não perderem o limite legal imposto no plano especial de regularização de dívidas fiscais (Plano Mateus), os clubes aderiram ao Plano Mateus a 31 de Janeiro de 1997, último dia do prazo, já prorrogado por um mês. Fizeram-no com a Liga e a Federação de Futebol a constituírem-se como gestores de negócio dos clubes da 1ª divisão, 2ª divisão de honra, 2ª divisão B e 3ª divisão.

Essa adesão ao Plano Mateus impôs, contudo, que os clubes não criassem novas dívidas a partir de 1 de Agosto de 1996. Ou seja, a dação em pagamento das receitas futuras do Totobola apenas cobriu as dívidas apuradas até 31 de Julho de 1996. Ora, a comissão de avaliação das receitas do Totobola apenas foi nomeada em 28 de Outubro de 1997. E apenas em Março de 1998 foi assinado, pelo secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, António Carlos Santos, o despacho (7/98) em que o Governo afirma aceitar como extintas as dívidas dos clubes contra a entrega ao longo de 12,5 anos das receitas do Totobola. E criou uma comissão de acompanhamento da situação fiscal dos clubes que, entre as suas missões, deveria actualizar a lista de clubes e certificar-se de que todos satisfaziam, em 1 de Junho de 1998, as condições de adesão. Ou seja, entre outras, que não tivessem sido criados mais débitos a partir de 31 de Julho de 1996.

Comissão sugeriu suspensão de inspecções

Só que o despacho deu por bons os apuramentos feitos pelos serviços tributários e as autodenúncias dos clubes. Fixou para o auto de dação em pagamento um montante em dívida de 11,3 milhões de contos. Porém, começavam já, nessa altura, a surgir indícios de incumprimentos por parte dos clubes, mesmo quando estavam obrigados a manter em dia as suas obrigações.

Apesar disso, a comissão de acompanhamento sugeriu, em Maio de 1998, que se suspendessem as inspecções aos clubes para apuramento de dívidas anteriores a 31 de Julho de 1996. Como essa questão estava já fixada no despacho, parecia - aos olhos dos responsáveis - não fazer sentido estar a desestabilizar esse valor. O secretário de Estado dos Assuntos Fiscais aceitou essa sugestão e a decisão foi comunicada aos serviços competentes.

Mas a situação foi tal que, em Julho de 1998, o próprio secretário de Estado aprovou um conjunto de procedimentos que a DGCI deveria adoptar para os clubes incumpridores. E os serviços de inspecção inscreveram nas suas actividades um conjunto de acções de inspecção a um grande número de clubes aderentes.

Apesar desses sinais insistentes, a comissão de acompanhamento voltou a pedir, em Setembro de 1998, a suspensão das acções de inspecção, mas desta vez para o período compreendido entre 1 de Agosto de 1996 e 31 de Maio de 1998. Ou seja, não só não se ia fiscalizar as autodenúncias dos clubes, como já não se ia verificar as situações de incumprimento que, a verificar-se, deveriam levar à exclusão desses contribuintes do próprio Plano Mateus, sem prejuízo de procedimento criminal. E o Ministério das Finanças voltou a aceitar a sugestão.

Essa suspensão de inspecções foi questionada designadamente pelo Ministério Público, e a resposta do Fisco foi no sentido de que era feita para "consolidar" os valores das dívidas dos clubes, mas que nunca inviabilizaria qualquer procedimento criminal, se fosse detectado fundamento. A dúvida reside em como é que seria detectado se não havia inspecções.

Finalmente, em Fevereiro de 1999, é assinado o auto de dação em pagamento entre o Estado e os clubes de futebol, o qual fixou as dívidas em 11,6 milhões de contos. Mas, apesar disso, continuavam a surgir novas dívidas, sem que nunca se tivesse pedido aos serviços uma quantificação desses débitos, simplesmente porque os clubes não eram acompanhados. Mas nessa altura a fase política era já de esperar pelas novas eleições legislativas de 1999.

Os novos responsáveis das Finanças, com Joaquim Pina Moura como ministro e Manuel Baganha como secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, começaram a aperceber-se da situação criada e questionam os serviços, mas não desencadearam qualquer vistoria global. Já em 2000, os serviços de inspecção deram sinais de que não iam esperar muito mais tempo e que pretendiam mesmo inspeccionar os períodos antes suspensos, em caso de indícios de incumprimento. Mas, pouco tempo depois disso, Manuel Baganha assinou um despacho em que reafirmou a regra do passado - não há inspecções para o período englobado pela dação em pagamento e só se deve inspeccionar para os períodos posteriores a 1 de Junho de 1998. O passado apenas é revisitável se houver indícios criminais. O PÚBLICO pretendeu saber do Ministério das Finanças quantos clubes tinham sido inspeccionados desde 1998, mas não obteve resposta até ao fecho da edição.

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