Gershwin e Astaire na Broadway

20-03-2002
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Musical

Gershwin e Astaire na Broadway

Por AUGUSTO M. SEABRA

Sábado, 2 de Março de 2002

Foi o primeiro grande clássico do musical da Broadway. Em 1924, "Lady, Be Good!" foi a consagração dos Gershwin, George e seu irmão Ira, e dos Astaire, Fred e sua irmã Adele. Era a "jazz age", dizia-se. Dançava-se, claro, e cantava-se, por exemplo, duas canções tão célebres como "Fascinating Rhythm" e "The Man I Love", originalmente escritas para este musical. Estreia-se agora em Portugal.

Na temporada do São Carlos e da Orquestra Sinfónica Portuguesa há um ciclo dedicado à música americana: já houve Gershwin em concerto, já houve "Four Saints", e agora é a vez de "Lady, Be Good!" de Gershwin, verdadeiramente o primeiro "clássico" do musical da Broadway. É também de entre esses clássicos o primeiro a ser representado em Portugal, já que "Street Scene" de Kurt Weill e "Sweeny Todd" de Stephen Sondheim (o primeiro feito em São Carlos, em 1995, o segundo encenado por João Lourenço, em 1997), até eventualmente por serem mais interessantes dos pontos de vista dramatúrgico e composicional, não são por inteiro enquadráveis nos cânones clássicos da Broadway.

Até por isso convém perguntar: afinal, o que é a Broadway? Evidentemente, é a famosa avenida de Nova Iorque, e em concreto a zona de Times Square. E embora essa seja latamente a "zona do teatro comercial", é não menos evidente que quando dizemos Broadway nos estamos a referir a um específico género que aí floresceu, o grande contributo americano para a estética do teatro musical.

Tudo terá começado na "revista", mais lato género, com sucessão de quadros e números musicais. E também havia a opereta, unificada por um enredo (e não em números separados), com partes declamadas e outras cantadas. Acrescente-se, na América, a voga dos "minstrels" itinerantes, retomando trechos de folclore e cada vez mais influenciados pelas músicas negro-americanas (o género era "branqueado", mas ao inverso, com os brancos mascarando a cara de negro, como Al Jolson ainda o fará em "The Jazz Singer", começo do cinema falado). E, aspecto importantíssimo e específico de Nova Iorque, as proximidades entre Broadway e Tin Pan Alley, o negócio de edição de música que de alguma forma foi o início do que hoje designamos por indústrias culturais.

Seguramente que a comédia musical da Broadway já existia nos finais do século XIX. A importância do papel do produtor, o aparato cénico e também coreográfico, tudo isso definiram a especificidade do musical; o qual, contudo, ainda manteve, muitas vezes até aos anos 30 do século XX, uma estrutura de "revista": eram as "Ziegfeld Follies" ou os "George White's Scandals", em geral com uma edição em cada ano. Mas nesta galáxia que cristalizaria culturalmente o "melting pot" americano, haveria ainda um outro elemento importante: a imigração judia.

As perseguições anti-semitas na Rússia originaram uma vaga migratória para a América, e em particular para Nova Iorque, que incluiu, ainda criança, Irving Berlin e os pais de George Gershwin - que nasceu em Brooklyn, epicentro dessa vaga, e em grande parte se formou na zona de maior "mistura", do outro lado do Hudson, no Lower East Side de Manhattan (e judeus eram também Jerome Kern e Richard Rodgers, Cole Porter sendo a excepção no quinteto de autores "clássicos" da Broadway e do "songbook" americano).

Assim, basicamente, o musical da Broadway pouco ou nada deve às tradições mais ou menos eruditas do teatro musical, à ópera e até mesmo à opereta. No "pouco ou nada" há, no entanto, um plano inclinado, que quantas vezes tem sido posto como interrogação a propósito de Gershwin. Digamos que é consequência de uma grelha de leitura europeia, em que vigora uma separação estrita entre "erudito" e "popular", quando a extraordinária fecundidade da música americana em todas as suas manifestações se posiciona além dessa separação.

No caso de Gershwin é patente, contudo, alguma ambiguidade. Prodigioso pianista, terá tido sempre a noção dos limites dos seus estudos de harmonia. Recorrentemente, já muito célebre, pensou em estudar, por exemplo, com Varese, Schoenberg, Ravel ou Nadia Boulanger, com a qual se formaram "compositores sérios" como Aaron Copland, Walter Piston, Elliot Carter, Ned Rorem ou Virgil Thomson. E, para mais, além de canções e musicais também escreveu (nisso diferentemente de Berlin e "tutti quanti") peças de concerto, como a célebre "Rhapsody in Blue" - que, no entanto, tendo seguramente conquistado lugar próprio no repertório ("A mais bem sucedida peça de concerto de um compositor americano", escrevia em 1935 Virgil Thomson), é imediatamente identificável pelo famoso solo de clarinete "slide", o qual, como toda a orquestração, não é da pena de Gershwin, mas sim de Ferde Gofré!

1924, o ano de "Rhapsody in Blue", foi também o de "Lady, Be Good!". Ele já era largamente reputado como compositor de canções (como "Stairway to Heaven", que haveria de dar origem a um número luxuriantemente "kitsch" em "Um Americano em Paris", o filme de Minelli), algumas tinham sido interpoladas em "shows" da Broadway, onde Gershwin já fora oficialmente o compositor em vários "George White's Scandals, e, em rigor já tinha feito mesmo um musical, "La La Lucille" (1919). Mas "Lady, Be Good!" seria diferente: por questões de irmãos, isto é, porque com esse consagrar-se-iam na Broadway os Gershwin e os Astaire, George e o seu irmão Ira (nas "lyrics", as letras das canções) e Fred e sua irmã Adele (esta, tendo-se retirado por um casamento com um aristocrata britânico, viria a ser "apagada" nas memórias colectivas, pela subsequente "partenaire" cinematográfica de Fred, Ginger Rogers).

Os Astaire eram célebres bailarinos em revistas, conhecidos sobretudo no sapateado. Num típico processo de produção da Broadway, o musical foi pensado para eles: no texto (espécie de "libreto") de Guy Bolton e Fred Thompson, as personagens principais são dois irmãos arruinados, Dick e Susie, e ela, a "Lady", é de algum modo ainda mais crucial (por duplo disfarce interposto arranjará um rico casamento). E que diz ela? "Sure, anyone can dance."

Não, nunca se pode deslindar o musical, de regras classicamente fixadas em "Lady, Be Good!", da componente coreográfica, esse artifício corporal inerente a todo o irrealismo do género, nisso parente da ópera, mas aquele sendo por definição eufórico (seria preciso esperar pela "revolução" de "West Side Story", em 1957, para na Broadway se ensaiar um drama e não uma comédia musical), conjugando-se a coreografia com os aparatos cenográficos.

Há sapateado, claro, mas no caso também "charleston", a dança em voga nessa "jazz age", da qual para os norte-americanos o epítome é "Lady, Be Good!". "Jazz age" essa que é uma noção abusiva em relação ao jazz propriamente dito, cuja influência, contudo, por exemplo no uso da "blue note" (simplificando, uma terceira menor numa escala maior), se assinalava até mesmo já na Broadway. A prova? Uma canção que ousadamente Gershwin incluiu logo no Acto I de "Lady, Be Good!", o celebérrimo "Fascinating Rhythm", nem mais! Mas, como esse ou a canção titular, há outro tema perene: "The Man I Love", que incrivelmente nem chegou à Broadway, tendo sido cortado durante a "tournée" prévia! Formalmente, não faz, assim, parte de "Lady, Be Good!", mas hoje é usual reintegrá-la - como sucederá nestas representações que o São Carlos organiza no CCB.

E então, "shall we dance"?

Musical

Gershwin e Astaire na Broadway

Por AUGUSTO M. SEABRA

Sábado, 2 de Março de 2002

Foi o primeiro grande clássico do musical da Broadway. Em 1924, "Lady, Be Good!" foi a consagração dos Gershwin, George e seu irmão Ira, e dos Astaire, Fred e sua irmã Adele. Era a "jazz age", dizia-se. Dançava-se, claro, e cantava-se, por exemplo, duas canções tão célebres como "Fascinating Rhythm" e "The Man I Love", originalmente escritas para este musical. Estreia-se agora em Portugal.

Na temporada do São Carlos e da Orquestra Sinfónica Portuguesa há um ciclo dedicado à música americana: já houve Gershwin em concerto, já houve "Four Saints", e agora é a vez de "Lady, Be Good!" de Gershwin, verdadeiramente o primeiro "clássico" do musical da Broadway. É também de entre esses clássicos o primeiro a ser representado em Portugal, já que "Street Scene" de Kurt Weill e "Sweeny Todd" de Stephen Sondheim (o primeiro feito em São Carlos, em 1995, o segundo encenado por João Lourenço, em 1997), até eventualmente por serem mais interessantes dos pontos de vista dramatúrgico e composicional, não são por inteiro enquadráveis nos cânones clássicos da Broadway.

Até por isso convém perguntar: afinal, o que é a Broadway? Evidentemente, é a famosa avenida de Nova Iorque, e em concreto a zona de Times Square. E embora essa seja latamente a "zona do teatro comercial", é não menos evidente que quando dizemos Broadway nos estamos a referir a um específico género que aí floresceu, o grande contributo americano para a estética do teatro musical.

Tudo terá começado na "revista", mais lato género, com sucessão de quadros e números musicais. E também havia a opereta, unificada por um enredo (e não em números separados), com partes declamadas e outras cantadas. Acrescente-se, na América, a voga dos "minstrels" itinerantes, retomando trechos de folclore e cada vez mais influenciados pelas músicas negro-americanas (o género era "branqueado", mas ao inverso, com os brancos mascarando a cara de negro, como Al Jolson ainda o fará em "The Jazz Singer", começo do cinema falado). E, aspecto importantíssimo e específico de Nova Iorque, as proximidades entre Broadway e Tin Pan Alley, o negócio de edição de música que de alguma forma foi o início do que hoje designamos por indústrias culturais.

Seguramente que a comédia musical da Broadway já existia nos finais do século XIX. A importância do papel do produtor, o aparato cénico e também coreográfico, tudo isso definiram a especificidade do musical; o qual, contudo, ainda manteve, muitas vezes até aos anos 30 do século XX, uma estrutura de "revista": eram as "Ziegfeld Follies" ou os "George White's Scandals", em geral com uma edição em cada ano. Mas nesta galáxia que cristalizaria culturalmente o "melting pot" americano, haveria ainda um outro elemento importante: a imigração judia.

As perseguições anti-semitas na Rússia originaram uma vaga migratória para a América, e em particular para Nova Iorque, que incluiu, ainda criança, Irving Berlin e os pais de George Gershwin - que nasceu em Brooklyn, epicentro dessa vaga, e em grande parte se formou na zona de maior "mistura", do outro lado do Hudson, no Lower East Side de Manhattan (e judeus eram também Jerome Kern e Richard Rodgers, Cole Porter sendo a excepção no quinteto de autores "clássicos" da Broadway e do "songbook" americano).

Assim, basicamente, o musical da Broadway pouco ou nada deve às tradições mais ou menos eruditas do teatro musical, à ópera e até mesmo à opereta. No "pouco ou nada" há, no entanto, um plano inclinado, que quantas vezes tem sido posto como interrogação a propósito de Gershwin. Digamos que é consequência de uma grelha de leitura europeia, em que vigora uma separação estrita entre "erudito" e "popular", quando a extraordinária fecundidade da música americana em todas as suas manifestações se posiciona além dessa separação.

No caso de Gershwin é patente, contudo, alguma ambiguidade. Prodigioso pianista, terá tido sempre a noção dos limites dos seus estudos de harmonia. Recorrentemente, já muito célebre, pensou em estudar, por exemplo, com Varese, Schoenberg, Ravel ou Nadia Boulanger, com a qual se formaram "compositores sérios" como Aaron Copland, Walter Piston, Elliot Carter, Ned Rorem ou Virgil Thomson. E, para mais, além de canções e musicais também escreveu (nisso diferentemente de Berlin e "tutti quanti") peças de concerto, como a célebre "Rhapsody in Blue" - que, no entanto, tendo seguramente conquistado lugar próprio no repertório ("A mais bem sucedida peça de concerto de um compositor americano", escrevia em 1935 Virgil Thomson), é imediatamente identificável pelo famoso solo de clarinete "slide", o qual, como toda a orquestração, não é da pena de Gershwin, mas sim de Ferde Gofré!

1924, o ano de "Rhapsody in Blue", foi também o de "Lady, Be Good!". Ele já era largamente reputado como compositor de canções (como "Stairway to Heaven", que haveria de dar origem a um número luxuriantemente "kitsch" em "Um Americano em Paris", o filme de Minelli), algumas tinham sido interpoladas em "shows" da Broadway, onde Gershwin já fora oficialmente o compositor em vários "George White's Scandals, e, em rigor já tinha feito mesmo um musical, "La La Lucille" (1919). Mas "Lady, Be Good!" seria diferente: por questões de irmãos, isto é, porque com esse consagrar-se-iam na Broadway os Gershwin e os Astaire, George e o seu irmão Ira (nas "lyrics", as letras das canções) e Fred e sua irmã Adele (esta, tendo-se retirado por um casamento com um aristocrata britânico, viria a ser "apagada" nas memórias colectivas, pela subsequente "partenaire" cinematográfica de Fred, Ginger Rogers).

Os Astaire eram célebres bailarinos em revistas, conhecidos sobretudo no sapateado. Num típico processo de produção da Broadway, o musical foi pensado para eles: no texto (espécie de "libreto") de Guy Bolton e Fred Thompson, as personagens principais são dois irmãos arruinados, Dick e Susie, e ela, a "Lady", é de algum modo ainda mais crucial (por duplo disfarce interposto arranjará um rico casamento). E que diz ela? "Sure, anyone can dance."

Não, nunca se pode deslindar o musical, de regras classicamente fixadas em "Lady, Be Good!", da componente coreográfica, esse artifício corporal inerente a todo o irrealismo do género, nisso parente da ópera, mas aquele sendo por definição eufórico (seria preciso esperar pela "revolução" de "West Side Story", em 1957, para na Broadway se ensaiar um drama e não uma comédia musical), conjugando-se a coreografia com os aparatos cenográficos.

Há sapateado, claro, mas no caso também "charleston", a dança em voga nessa "jazz age", da qual para os norte-americanos o epítome é "Lady, Be Good!". "Jazz age" essa que é uma noção abusiva em relação ao jazz propriamente dito, cuja influência, contudo, por exemplo no uso da "blue note" (simplificando, uma terceira menor numa escala maior), se assinalava até mesmo já na Broadway. A prova? Uma canção que ousadamente Gershwin incluiu logo no Acto I de "Lady, Be Good!", o celebérrimo "Fascinating Rhythm", nem mais! Mas, como esse ou a canção titular, há outro tema perene: "The Man I Love", que incrivelmente nem chegou à Broadway, tendo sido cortado durante a "tournée" prévia! Formalmente, não faz, assim, parte de "Lady, Be Good!", mas hoje é usual reintegrá-la - como sucederá nestas representações que o São Carlos organiza no CCB.

E então, "shall we dance"?

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