"Para arrebatar o ouvido mais empedernido"

18-04-2001
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"Para Arrebatar o Ouvido Mais Empedernido"

Por CRISTINA FERNANDES

Sábado, 14 de Abril de 2001

The Sixteen e The Symphony of Harmony and Invention interpretam "O Messias", de Haendel, na abertura das comemorações dos 500 anos do Mosteiro dos Jerónimos.

A grandiosa oratória de Haendel, "O Messias", foi a obra escolhida para a abertura oficial das Comemorações dos 500 anos do Mosteiro dos Jerónimos, promovidas pelo IPPAR, que terá lugar no próximo dia 20. A interpretação, em instrumentos da época, estará a cargo dos prestigiados agrupamentos ingleses The Sixteen e The Simphony of Harmony and Invention, sob a direcção de Harry Christophers, cuja afinidade com a obra se traduz numa aclamada gravação para a Hypérion (1986), vencedora do Grand Prix du Disque.

Fundado por Harry Christophers, o agrupamento The Sixteen é uma das jóias da coroa musical britânica. Com uma qualidade mundialmente reconhecida e uma discografia que inclui mais de 70 títulos, a sua reputação deve-se à naturalidade das suas interpretações, à clareza da sua sonoridade e a uma versatilidade estilística que lhe permite abarcar com igual à vontade a polifonia renascentista, sobretudo inglesa, e a música do século XX. Em conjunto com a orquestra The Symphony of Harmony and Invention, criada em 1986, têm-se destacado também no repertório barroco, em especial nas obras de Purcell, Monteverdi, Bach e Haendel.

O público português teve já a ocasião de apreciar a sua arte neste domínio, graças à apresentação de "Il Ritorno di Ulisse in Patria", de Monteverdi, no Teatro de São Carlos (1998) ou da semi-ópera "King Arthur", de Purcell, no Centro Cultural de Belém.

Mas a relação com Portugal não fica por aqui. The Sixteen e Harry Christophers, que ainda no ano passado dirigiu a "A Flauta Mágica" no São Carlos, são grandes entusiastas da música portuguesa, que têm apresentado regularmente em concerto e gravado em disco. Entre os seus registos, destaca-se o "Te Deum", de António Teixeira, e diversas obras de João Lourenço Rebelo, Diogo Dias Melgás, Frei Manuel Cardoso e Duarte Lobo. Em 1711, Haendel trocou a sua Alemanha natal pela capital britânica, com o intuito de fazer carreira como compositor de ópera. Após alguns anos de sucesso, o colapso financeiro das companhias a que esteve ligado conduziu a que abandonasse definitivamente o género a partir de 1741, canalizando o seu génio dramático para a oratória. Esta correspondia melhor ao gosto que imperava em Inglaterra no segundo terço do século XVIII e Haendel soube transformá-la num género renovado, especificamente inglês, apenas com conexões remotas com as variantes continentais.

A ideia de escrever "O Messias" partiu de Charles Jennens (1700-1773), grande admirador de Haendel e compilador do texto, conforme se depreende de uma carta de 1741: "Pretendo convencê-lo a pôr em música outra colecção das Escrituras e que a apresente num espectáculo em seu benefício durante a Semana Santa. Espero que ponha nela todo o seu génio e destreza, que a composição possa superar todas as suas obras anteriores." O convite para uma temporada de concertos em Dublin (1741-42) conduziu Haendel a aceitar a proposta, compondo "O Messias" em apenas três semanas.

A obra foi estreada em Dublin na Páscoa de 1742 num concerto de beneficiência, tendo os administradores das instituições de caridade solicitado "o favor de as Senhoras não envergarem saias com armação e os Cavalheiros não levarem as suas espadas para poderem assistir o maior número possível de pessoas". Estas medidas tiveram a sua compensação, pois os jornais falavam de cerca de 700 pessoas na sala e numa verba de 400 libras. Quanto à música, o Dublin Journal teceu o seguinte elogio: "Não há palavras que possam exprimir o deleite requintado proporcionado a um público numeroso e admirador. O carácter sublime, a grandiosidade e a ternura aliaram-se às mais elevadas, majestosas e emocionantes palavras, convocadas para transportar, encantar e arrebatar o ouvido mais empedernido".

O sucesso não se repetiu no ano seguinte, quando "O Messias" foi apresentado em Londres, no Covent Garden, um local que as autoridades religiosas consideraram inadequado para uma peça baseada nas Sagradas Escrituras. A obra só voltaria a ter sucesso depois de 1750, num concerto a favor dos órfãos do Foundling Hospital. Estabeleceu-se então a tradição de a interpretar anualmente na Páscoa. Nos anos 80 do século XVIII e no século XIX (neste caso com efectivos instrumentais e vocais descomunais) converteu-se numa forma de propaganda imperial e de transmissão das doutrinas vitorianas sobre o progresso social. No século XX a popularidade de "O Messias" manteve-se e, graças ao movimento de revivificação da música antiga, voltou a ser interpretado segundo os modelos originais.

Ao contrário de outras oratórias de Haendel, com personagens bem delineadas e o recurso a um narrador, "O Messias" é uma oratória épica, desprovida de acção dramática exterior. Em vez de relatar uma história, o libretista preocupou-se com a dimensão profética e com a meditação. Os textos provêm da Bíblia (versão de 1611) e do Livro de Orações ("Prayer Book") do ritual anglicano. Jennens subdividiu a obra em três partes, dedicadas respectivamente ao nascimento de Cristo, à sua Paixão, Morte e Ressurreição e a uma breve reflexão sobre o futuro do Cristianismo. A história conta-se por meio de quadros genéricos animados pela singular habilidade do compositor para dramatizar os textos. Em vez de ser uma personagem dramática, como nas Paixões de Brockes, o Messias é evocado por alusões, analogias ou comentários. Do conjunto sobressai uma visão triunfal e magestosa de Cristo, bastante longínqua do Cristo sofredor e patético das Paixões alemãs.

Na ausência de uma acção narrável e cenicamente visível, Jennens ordenou os textos de modo a atingirem o climax com um coro, após uma sequência de recitativos e árias. Apesar da qualidade e variedade destas passagens, foi através do seu monumental estilo coral, que Haendel mostrou maior criatividade. Os coros actuam como protagonistas idealizados da acção interna, na qual se mistura de modo singular a tragédia e o triunfo. Alguns viriam a converter-se em verdadeiros "hits", como acontece com o célebre "Hallelujah".

"Para Arrebatar o Ouvido Mais Empedernido"

Por CRISTINA FERNANDES

Sábado, 14 de Abril de 2001

The Sixteen e The Symphony of Harmony and Invention interpretam "O Messias", de Haendel, na abertura das comemorações dos 500 anos do Mosteiro dos Jerónimos.

A grandiosa oratória de Haendel, "O Messias", foi a obra escolhida para a abertura oficial das Comemorações dos 500 anos do Mosteiro dos Jerónimos, promovidas pelo IPPAR, que terá lugar no próximo dia 20. A interpretação, em instrumentos da época, estará a cargo dos prestigiados agrupamentos ingleses The Sixteen e The Simphony of Harmony and Invention, sob a direcção de Harry Christophers, cuja afinidade com a obra se traduz numa aclamada gravação para a Hypérion (1986), vencedora do Grand Prix du Disque.

Fundado por Harry Christophers, o agrupamento The Sixteen é uma das jóias da coroa musical britânica. Com uma qualidade mundialmente reconhecida e uma discografia que inclui mais de 70 títulos, a sua reputação deve-se à naturalidade das suas interpretações, à clareza da sua sonoridade e a uma versatilidade estilística que lhe permite abarcar com igual à vontade a polifonia renascentista, sobretudo inglesa, e a música do século XX. Em conjunto com a orquestra The Symphony of Harmony and Invention, criada em 1986, têm-se destacado também no repertório barroco, em especial nas obras de Purcell, Monteverdi, Bach e Haendel.

O público português teve já a ocasião de apreciar a sua arte neste domínio, graças à apresentação de "Il Ritorno di Ulisse in Patria", de Monteverdi, no Teatro de São Carlos (1998) ou da semi-ópera "King Arthur", de Purcell, no Centro Cultural de Belém.

Mas a relação com Portugal não fica por aqui. The Sixteen e Harry Christophers, que ainda no ano passado dirigiu a "A Flauta Mágica" no São Carlos, são grandes entusiastas da música portuguesa, que têm apresentado regularmente em concerto e gravado em disco. Entre os seus registos, destaca-se o "Te Deum", de António Teixeira, e diversas obras de João Lourenço Rebelo, Diogo Dias Melgás, Frei Manuel Cardoso e Duarte Lobo. Em 1711, Haendel trocou a sua Alemanha natal pela capital britânica, com o intuito de fazer carreira como compositor de ópera. Após alguns anos de sucesso, o colapso financeiro das companhias a que esteve ligado conduziu a que abandonasse definitivamente o género a partir de 1741, canalizando o seu génio dramático para a oratória. Esta correspondia melhor ao gosto que imperava em Inglaterra no segundo terço do século XVIII e Haendel soube transformá-la num género renovado, especificamente inglês, apenas com conexões remotas com as variantes continentais.

A ideia de escrever "O Messias" partiu de Charles Jennens (1700-1773), grande admirador de Haendel e compilador do texto, conforme se depreende de uma carta de 1741: "Pretendo convencê-lo a pôr em música outra colecção das Escrituras e que a apresente num espectáculo em seu benefício durante a Semana Santa. Espero que ponha nela todo o seu génio e destreza, que a composição possa superar todas as suas obras anteriores." O convite para uma temporada de concertos em Dublin (1741-42) conduziu Haendel a aceitar a proposta, compondo "O Messias" em apenas três semanas.

A obra foi estreada em Dublin na Páscoa de 1742 num concerto de beneficiência, tendo os administradores das instituições de caridade solicitado "o favor de as Senhoras não envergarem saias com armação e os Cavalheiros não levarem as suas espadas para poderem assistir o maior número possível de pessoas". Estas medidas tiveram a sua compensação, pois os jornais falavam de cerca de 700 pessoas na sala e numa verba de 400 libras. Quanto à música, o Dublin Journal teceu o seguinte elogio: "Não há palavras que possam exprimir o deleite requintado proporcionado a um público numeroso e admirador. O carácter sublime, a grandiosidade e a ternura aliaram-se às mais elevadas, majestosas e emocionantes palavras, convocadas para transportar, encantar e arrebatar o ouvido mais empedernido".

O sucesso não se repetiu no ano seguinte, quando "O Messias" foi apresentado em Londres, no Covent Garden, um local que as autoridades religiosas consideraram inadequado para uma peça baseada nas Sagradas Escrituras. A obra só voltaria a ter sucesso depois de 1750, num concerto a favor dos órfãos do Foundling Hospital. Estabeleceu-se então a tradição de a interpretar anualmente na Páscoa. Nos anos 80 do século XVIII e no século XIX (neste caso com efectivos instrumentais e vocais descomunais) converteu-se numa forma de propaganda imperial e de transmissão das doutrinas vitorianas sobre o progresso social. No século XX a popularidade de "O Messias" manteve-se e, graças ao movimento de revivificação da música antiga, voltou a ser interpretado segundo os modelos originais.

Ao contrário de outras oratórias de Haendel, com personagens bem delineadas e o recurso a um narrador, "O Messias" é uma oratória épica, desprovida de acção dramática exterior. Em vez de relatar uma história, o libretista preocupou-se com a dimensão profética e com a meditação. Os textos provêm da Bíblia (versão de 1611) e do Livro de Orações ("Prayer Book") do ritual anglicano. Jennens subdividiu a obra em três partes, dedicadas respectivamente ao nascimento de Cristo, à sua Paixão, Morte e Ressurreição e a uma breve reflexão sobre o futuro do Cristianismo. A história conta-se por meio de quadros genéricos animados pela singular habilidade do compositor para dramatizar os textos. Em vez de ser uma personagem dramática, como nas Paixões de Brockes, o Messias é evocado por alusões, analogias ou comentários. Do conjunto sobressai uma visão triunfal e magestosa de Cristo, bastante longínqua do Cristo sofredor e patético das Paixões alemãs.

Na ausência de uma acção narrável e cenicamente visível, Jennens ordenou os textos de modo a atingirem o climax com um coro, após uma sequência de recitativos e árias. Apesar da qualidade e variedade destas passagens, foi através do seu monumental estilo coral, que Haendel mostrou maior criatividade. Os coros actuam como protagonistas idealizados da acção interna, na qual se mistura de modo singular a tragédia e o triunfo. Alguns viriam a converter-se em verdadeiros "hits", como acontece com o célebre "Hallelujah".

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