Suplemento Pública

24-10-2001
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Paulo Cunha e Silva

O Homem Relacional

Por MARIA JOSÉ OLIVEIRA E LUIS MIGUEL QUEIRÓS

Segunda-feira, 1 de Outubro de 2001 Aos 14 anos escrevia crítica de arte na imprensa e cultivava orquídeas. Formou-se em Medicina, mas não quis ser médico. Andou uns anos a investigar os radicais livres de oxigénio, mas os laboratórios pareceram-lhe tão pouco estimulantes como os hospitais. Na primeira metade dos anos 90 surpreendeu o Porto com uma sucessão de colóquios interdisciplinares, que levaram milhares de pessoas a Serralves. Convidado para a equipa de programadores do Porto 2001, Paulo Cunha e Silva tornou-se uma espécie de narrador de serviço da capital da cultura. E o seu nome já corre, entre outros candidatos, como possível futuro vereador da Cultura da Câmara do Porto. Tem uma obsessão central: o corpo. E um talento, ou um vício: relacionar. Na sua cabeça, tudo está ligado a tudo. Paulo Cunha e Silva nasceu em Beja, em 1962. É, por assim dizer, um alentejano casual. O pai, juiz, trabalhou em muitas cidades. Nesse ano, calhou estar em Beja. Na sua infância, Paulo viveu ainda em Santarém, Portalegre, Aveiro e, finalmente, Braga, onde fez os estudos liceais. Foi por esta altura que se dedicou às orquídeas e aos cactos. Tal como Nero Wolfe, o famoso detective de Rex Stout, mantinha uma verdadeira estufa em casa e trocava correspondência internacional sobre o assunto. A Braga, seguiu-se o Porto, onde se formou em Medicina, pelo Instituto Abel Salazar. Teve a melhor média do curso e ficou conhecido como "o Paulinho dos vintes". No entanto, exceptuados os dois anos de estágio após a licenciatura, nunca praticou medicina. Fez o mestrado em Medicina Desportiva e doutorou-se na Faculdade de Ciências do Desporto, onde é professor de Anatomia, com a tese "O Lugar do Corpo: Elementos para uma Cartografia Fractal", entretanto publicada nas edições Piaget. Em 1990, organiza em Serralves o colóquio interdisciplinar "As Cores do Corpo", reunindo à mesma mesa profissionais dos mais diversos domínios: físicos, biólogos, cientistas sociais, médicos, filósofos, críticos de arte, fotógrafos... O sucesso de público supera todas as expectativas. Nos anos seguintes regressa com outros colóquios de concepção semelhante - "O Olhar: do fotão à sedução" e "Gostos não se discutem". Descansa em 1993, mas desforra-se em 1994 com duas iniciativas simultâneas: "Sete imagens para virar a página com tranquilidade (seguidas de 28 fragmentos de um discurso ameaçador)", em Serrralves, e "A Descoberta", que decorre no Acarte, em Lisboa. Quando começa a planear-se a Capital Europeia da Cultura, é convidado a assumir o pelouro das articulações com Roterdão. Mas acabou por ficar também com os "projectos transversais", as edições e a programação da literatura, da ciência e do pensamento. Actualmente, além do seu trabalho na capital da cultura, orienta teses de doutoramento e de mestrado em áreas disciplinares tão diversas como as Belas Artes e as Ciências do Desporto, ou o Design e a Dança. PÚBLICA - Ficou conhecido como organizador de colóquios interdisciplinares e programador da Porto 2001, mas nem todos saberão que a sua actividade principal é a docência na Faculdade de Ciências do Desporto. Como é que lá foi parar? Paulo Cunha e Silva - Inicialmente as aulas de Anatomia eram comuns às aulas de Ciências de Desporto, onde entretanto abriu uma vaga. E eu fui ficando. A minha vida, e a das pessoas em geral, é uma sucessão de acasos que se organizam em função de um determinismo não linear. Achei que as Ciências do Desporto seriam um território de reflexão interessante. Primeiro porque se organizavam a partir do corpo, que era a minha preocupação central, e depois porque essa presença do corpo também me permitiu aproximar do universo das artes contemporâneas, em cujas representações o corpo ocupa um lugar dominante. Para alguém com um desejo de conhecimento muito grande, e também com uma ânsia de relação, o corpo é o território ideal, porque é aquele no qual existe todo o conhecimento, e justamente a partir de um princípio de relação. P. - Nunca quis exercer medicina? R. - Fiz o internato geral nos dois primeiros anos após o fim do curso, no hospital de Santo António. Não foi uma experiência muito estimulante, não tanto pela prática médica, porque a parte de diagnóstico é fascinante - a partir de um conjunto de fragmentos sintomáticos chegar a uma solução -, mas pela vivência hospitalar, que não me entusiasmou nada. Estou satisfeito por me ter afastado um pouco dessa direcção. P. - A sua tese de mestrado trata dos radicais livres de oxigénio. O que é que o levou a interessar-se por este tema? R. - Fiz a tese com o Alexandre Quintanilha, no Instituto de Biologia Molecular e Celular. Os radicais livres de oxigénio são produtos que estão hoje muito em voga, até pela sua associação ao fabrico de produtos de beleza. Descobriu-se que existe uma relação entre o oxigénio e o envelhecimento, uma relação perversa. O oxigénio para ser consumido liberta produtos intermediários, os radicais livres de oxigénio, que são inevitáveis e altamente tóxicos. É um pouco a ideia do viver mata. Ou seja, para viver temos de consumir oxigénio, mas ficamos prisioneiros dos seus efeitos lesivos. É uma revolução no imaginário ocidental: a fonte da vida é também a fonte da morte. Como eu gosto de paradoxos e de sistemas polares e binários, o oxigénio apaixonou-me. Trabalhei nessa área durante três ou quatro anos. P. - Porque é que não continuou? A investigação não o seduz? R. - Achei que já tinha dado para aquele peditório e decidi mudar. Sempre tive a sorte de poder mudar sem que ninguém me pedisse explicações. A minha tese de doutoramento tem um pouco a ver com esta minha "desnoção" de carreira. Organizei sempre a minha vida em função de uma lógica de prazer absoluto. E achei que ficar 50 anos dentro de um laboratório não fazia muito sentido. Até porque a investigação científica, contrariamente ao que as pessoas pensam, é um território muito pouco criativo. A maior parte dos cientistas que eu conheço são bastante desinteressantes. Há momentos de inspiração, que provocam mudanças de paradigma, mas são raríssimos. Muitos cientistas são pessoas empenhadas e com mérito, mas poucos têm dentro de si a centelha capaz de produzir luz sobre um determinado fenómeno. P. - A tese de doutoramento que referiu tem um título estranho: "O Lugar do Corpo: Elementos para Uma Cartografia Fractal"... R. - Sempre me interessaram as representações do corpo. E mantenho, desde a adolescência, uma relação muito próxima com o universo das artes. Aos 14 anos, fazia pequenas apreciações num jornal de Braga. Comecei depois a escrever sobre exposições e fui sendo convidado para júris. Pensei que um trabalho de doutoramento deveria ser uma reflexão sobre o conjunto de problemas que constituíam as minhas inquietações. Organizei-a a partir de um princípio de pirâmide invertida. É um livro que vai recolhendo os assuntos, na lógica de um arrastão, e que à medida que prossegue tenta que estes estejam sistematicamente em discussão. O corpo é o lugar de chegada, mas também de partida. Funciona como um fantástico ponto de observação do mundo e das suas representações. Mas para confirmar essa centralidade do corpo no universo contemporâneo, tive de me deixar atacar pelas várias disciplinas. O que proponho é uma leitura pós-disciplinar. P. - Os colóquios que concebeu para Serralves sugerem que o seu interesse pela ciência contemporânea ultrapassa largamente o domínio estrito da medicina. R. - Interessa-me a física contemporânea e a matemática. Sobretudo as matemáticas que até ao século XX eram chamadas patológicas, porque explicavam o que não era formalmente explicável. Toda a teoria do caos e dos fractais se organiza um pouco a partir dessas matemáticas. É a ideia de que o caos é sobretudo criativo e que só sistemas organizados a partir de uma lógica de flexibilidade absoluta é que podem lidar com um meio que está sempre a oscilar. Se nós fossemos absolutamente programados, qualquer problema que surgisse nos faria sucumbir. É por isso que eu detesto que me chamem programador, que, neste sentido, seria uma espécie de "meta-designer" da realidade. P. - Mas um dos seus papéis na Porto 2001 não foi o de fornecer uma espécie de "design" global para a programação, que procurasse articular a diversidade das iniciativas num discurso consistente? R. - Fiz os textos introdutórios do catálogo da Porto 2001, mas tentei apresentar um conceito mais global do que aquele que acabou por ser apresentado. Os três eixos que estruturam a programação ficaram confinados às ideias de Memória/Futuro, Eu/Outro e Paisagem/Cidade. O que eu tinha proposto inicialmente era uma constelação de pequenos sistemas bipolares que sustentavam toda a programação. Tentei encontrar 50 organizadores do mundo contemporâneo, cada um deles suportando cinco ingredientes. Uma espécie de cosmos das grandes questões e polaridades contemporâneas. Mas achou-se que fazer passar isto seria demasiado complexo. P. - De facto, talvez fosse. Não lhe parece que por muito estruturada que seja a narrativa da programação, o que as pessoas vêem num espectáculo é o próprio espectáculo, e não a eventual lógica em que ele se insere? R. - Sim. Mas isso não obsta a que quem programa tente fazer essa narrativa. Não uma super-narrativa, mas uma narrativa fluida, que incorpore as variações do real. Tentei que a minha programação pudesse contar a história de uma relação, da minha relação com a cidade, ainda que o elemento pessoal aparecesse esbatido. Ou seja, que tentasse colocar em discussão alguns dos problemas que me interessam e que me pareciam poder interessar a todos. Procurei cruzar as especificidades locais com um pensamento global. Pensar global e agir local é um chavão que funciona. P. - Foi isso que tentou fazer com o projecto "Fábrica do Corpo Humano", onde recorre a atletas de alta competição que todos conhecem, como Rosa Mota, para reflectir sobre a natureza da nossa motricidade? R. - Acho que esse foi um projecto claramente frustrante do ponto de vista do resultado estético. Enquanto encenação, foi até negligente e preguiçoso. Mas do ponto de vista do envolvimento do público e da introdução de um determinado número de questões, acabou por funcionar completamente. Um projecto deve ser sempre um interpelador do público, mas também constituir um fragmento da narrativa que se pretende contar. Uma programação cultural não pode resumir-se a uma listagem de encomendas e de eventos. Deve ser um sistema coerente, ainda que de uma coerência flexível, não linear. P. - Já disse que detesta o termo programador, mas é nessa função que se tem tornado conhecido, primeiro com os colóquios de Serralves e, agora, com o Porto 2001. R. - A minha noção de programador é a de um autor, ou comissário. É uma ideia que as pessoas normalmente contestam. O programador deve cruzar o pensamento com a acção, que foi o que tentei fazer em Serralves: criar uma espécie de teatro do pensamento. O primeiro colóquio foi sobre o corpo, e era acompanhado de uma exposição de |âminas histológicas na capela de Serralves. Eu fazia parte da comissão das comemorações do centenário de Abel Salazar e achei que fazia sentido celebrar o artista através do histologista, que eram coisas que aparentemente não se cruzavam. Pareceu-me interessante dar aos corpos histológicos uma dimensão plástica e colocá-los num lugar evanescente, que é o lugar do corpo de Deus. No ano seguinte, fiz uma coisa sobre o olhar, e depois, uma outra sobre os gostos. Acho que a cultura deve ter elementos de provocação e ironia. Contesto da mesma forma a cultura militante e a acomodada. A seguir ao colóquio dos gostos, veio o programa "Descoberta", no Acarte, para o qual convidei o ex-ministro Carrilho e a Teresa Lago. Simultaneamente tinha outro projecto em Serralves - "Sete imagens para virar a página com tranquilidade (seguidas de 28 fragmentos de um discurso ameaçador)" -, que, mais uma vez, era um projecto narrativo, com imagens que abordavam algumas das grandes ansiedades do mundo contemporâneo: o dinheiro, a contaminação, a velocidade... As formas de programar mais activas e implicadas são também mais implicativas. É porque gosto de me envolver nos projectos e tenho ideias definidas que sou o programador que arranjou mais conflitos. P. - Um dos méritos dos seus colóquios de Serralves foi o de terem revelado excelentes comunicadores, designadamente na área das ciências, pouco ou nada conhecidos do grande público. Procurou que os seus convidados, além de terem coisas interessantes a dizer, fossem oradores talentosos? R. - A minha preocupação foi a de cruzar não só discursos diferentes, mas também personalidades de grande público com personalidades de menor público. Apostei que quem ia ver o Rui Reininho ficaria também para ouvir um especialista em... hermenêutica do Estado Novo. P. - Avançando para o Porto 2001. Quem é que o convidou? R. - Foram a Manuela de Melo e o Artur Santos Silva. P. - E qual é o balanço que faz da programação do seu pelouro? R. - Acho que é positivo. Quando fui convidado, ninguém sabia muito bem o que é que eu ia fazer. Inicialmente, fiquei um pouco como ministro dos Negócios Estrangeiros, apenas responsável pela articulação com Roterdão. Depois acabei por ficar com um conjunto de áreas consideradas menores: a literatura, a ciência, o pensamento. Mas também queria ter a liberdade de fazer coisas que poderiam ser vistas como invasões noutros domínios. Criei por isso a designação ambígua de "projectos transversais". Quase toda a minha programação, aliás, é feita de projectos transversais, mesmo quando não são formalmente apresentados como tal. É o caso da "Fábrica do corpo humano", que acabou por ficar no programa de ciência, ou do "Elogio da Loucura", que ficou no do pensamento. P. - Também lhe coube o pelouro das edições... R. - No âmbito da literatura, concebi dois projectos centrais. O primeiro propunha-se ficcionar a cidade, através de convites a um conjunto muito grande de escritores internacionais. O Porto precisa de ficção. Daí a designação "Porto. Ficção", de que o Saramago não gostou, mas que não é inocente. Por outro lado, o tema da capital era "Porto, pontes para o futuro", e pareceu-me que o futuro deveria ser contado sobretudo através da história. Ora, a poesia é a história mais sintética e concisa. É o modo que temos de, em poucas palavras, dizer muito acerca do mundo, falando da forma mais densa e mais intensa. De maneira que achei que fazia sentido uma antologia da poesia universal, que, inicialmente, se chamava "2001 Poemas para o Futuro". E aqui foi convidado o Hermínio e a sua Assírio & Alvim. E ele transformou estes "2001 Poemas para o Futuro" na fantástica "Rosa do Mundo". P. - Das várias componentes do seu pelouro, a literatura e a edição pareciam ser aquelas que tinham menos a ver com as suas actividades anteriores. R. - É verdade. Por isso mesmo, tive um especial cuidado na programação da literatura. Tentei que fosse muito rigorosa, mas também muito ampla. Quem olhar para o programa verifica que ele consegue ser consensual e, ao mesmo tempo, ter alguma ousadia. É uma reflexão sobre os autores, os leitores, os personagens, sobre todos os protagonistas da história da literatura: uma espécie de fenomenologia da própria literatura. Em primeiro plano estavam, claro, os autores. Mas como eram muitos, decidi convidar as autoras e propus à Isabel Pires de Lima que desenvolvesse o projecto "Vozes e olhares no feminino", de que resultou um livro belíssimo. O encontro com a história da literatura era importante, assim como a história da literatura da cidade do Porto. Propus, então, ao Mário Cláudio as "Letras em Trânsito". Para o encontro com os leitores convidei o Reininho, com o projecto "Um livro, uma vida, um objecto, um gesto". E há também o projecto "Identidades", do Rui Carvalho Homem, com os autores da União Europeia. E, finalmente, a iniciativa do Richard Zimmler e do Alexandre Quintanilha, que é um encontro com os grandes ficcionistas internacionais. Tentei que a literatura, justamente por eu não ser um actor desse palco, tivesse uma programação à prova de bala. No programa de edições procurei ainda reflectir a relação do Porto com a história das imagens, através do projecto "Tripé da Imagem". Sobre a imagem fixa, saiu já um livro coordenado pela Teresa Siza ["O Porto e os seus Fotógrafos"], e sairão outros sobre as imagens em movimento, coordenado pelo Sérgio Andrade, e a imagem médica, coordenado pelo médico e fotógrafo Manuel Valente Alves. E há ainda o projecto "Tráfego/Tráfico", que resultará em duas antologias. "Tráfico" reunirá escritores portugueses dos anos 90 e "Tráfego" será uma antologia de cem autores que mudaram a paisagem visual portuguesa, desde as artes plásticas, ao design, à dança, à gastronomia, à publicidade e à moda. O livro vai ter uma tiragem de 30 mil exemplares e será lançado com o "JN", que é o jornal oficial do Porto 2001. A ideia é que um jornal popular possa fazer uma divulgação da vanguarda. E, finalmente, há o "Dicionário de Personalidades do Porto": não é uma obra culturalmente correctíssima, mas é uma forma de a cidade se rever, e isso faz sentido numa programação cultural. E consegue ser um livro polifónico, com muitas vozes e muitos desejos de presença satisfeitos. P. - Nas suas actividades, mesmo as que se parecem centrar em domínios específicos, sejam os radicais livres de oxigénio, sejam, por exemplo, as artes plásticas, sente-se sempre uma tentativa de reflexão global sobre a contemporaneidade. Quais são os pensadores que sente mais próximos das suas próprias interrogações? R. - Há dois pensadores franceses contemporâneos dos quais estou muito próximo: Deleuze e Michel Serre. Ambos interrogam as questões do caos e daquilo que sustenta o visível. E depois há também os pensadores com formação científica, como o René Thom ou o Henri Atlan, que exploram territórios intermediários. E aquilo que faz de facto falta é esse pensamento do terceiro espaço. O Porto era uma cidade que não tinha este terceiro espaço. Antes de 2001, havia uma boa programação, em Serralves, no Teatro de S. João, no Rivoli, mas não havia uma programação intersticial. E o Porto 2001 mostrou que esse terceiro lugar, a rua, os espaços não codificados da cidade, eram espaços fundamentais, porque poderiam ser utilizados para devolver a cidade a si própria numa psicanálise profunda. E eu acho que o Porto 2001, de certa forma, serviu para a cidade fazer a sua psicanálise. P. - E nas artes, quem são as suas referências? R. - Na literatura, seguramente Proust, Musil e Joyce. Na música, Wagner, Mahler... e também a música mais contemporânea, que descobri quando tinha 15 ou 16 anos. Os meus irmãos ficavam furiosos comigo porque eu ouvia Xenakis, Stockhausen, Boulez e não sei que mais, e havia sempre disputa em torno do gira-discos. As minhas relações com as coisas resultam de encontros naturais. E se gosto, vou ficando. Tenho uma certa dificuldade em escolher. É o meu grande drama: ir ficando com tudo o que gosto. Também tem a ver com a minha natureza de coleccionador: sou um micro-coleccionador de arte contemporânea, sobretudo portuguesa e brasileira, porque tenho ido várias vezes ao Brasil e conheço alguns artistas contemporâneos. É com as artes plásticas que tenho mais afinidades. O meu tempo é mais o tempo do quadro do que o tempo do livro. Acho que sou um pouco acelerado, e o tempo de um quadro tem tempo para entrar em relação com o meu tempo. O meu pensamento é mais visual, as minhas narrativas são mais fragmentárias, e um livro é sempre qualquer coisa que se organiza de acordo com a seta do tempo. Mesmo quando são narrativas polifónicas - gosto muito de Calvino, por exemplo -, o livro organiza-se sempre a partir do eixo linear do tempo. E nas artes performativas acontece o mesmo. P. - Avancemos para 2002. Acha que vai ser dada continuidade ao legado desta capital da cultura? R. - Desejaria que tivesse, mas isso competirá ao poder político. O legado do Porto 2001 deverá ser a capacidade de pensar globalmente a cidade. Demonstrou-se, e essa é a maior riqueza, que uma programação não é o somatório das programações de todos os pequenos territórios. Ou seja, faz sentido atender àquilo que fica de fora, ao tal terceiro espaço, que em termos biológicos está perfeitamente identificado e que é um dos territórios mais ricos, por ser aquele onde os mensageiros se encontram e comunicam. A metáfora biológica funciona porque tem uma dimensão antecipatória. Se olharmos para o corpo com cuidado verificamos que ele explica, que tem uma espantosa sabedoria antecipatória. Havia um espaço no corpo que era desprezado, uma espécie de território residual entre as estruturas de comunicação e as próprias células. A nova biologia, que se organiza a partir da bio-semiótica, ou seja, da biologia da comunicação, põe esse espaço no centro da performance biológica. É aí que a acção se produz e o novo tem oportunidade de se consumar. Acho que a programação cultural é também uma oportunidade para o novo se consumar. Desejaria que 2002 fosse sobretudo a valorização do terceiro espaço cultural da cidade do Porto. P. - Após 2001, pretende continuar a ter um papel activo na cultura da cidade? Diz-se que o seu nome circula no PS/Porto como um dos possíveis candidatos a vereador da Cultura. Se de facto viessem a convidá-lo para o cargo, o que é que respondia? R. - É uma ideia que nunca foi colocada, nunca fui convidado por ninguém, nem pensei ainda se faz sentido ou não. Mas se entrasse numa cidade e visse alguém como eu nas funções de vereador da Cultura, não me pareceria um cenário surrealista. Acho que o poder político tem uma função fundamental. O 2001 é uma aposta ganha e as pessoas não vão perceber que, em 2002, os conteúdos da cidade se empobreçam. Esta capital cultural provou que, contrariamente ao que pretendiam as perspectivas mais pessimistas - nomeadamente a do nosso actual ministro da Cultura, que prezo muito mas de quem discordo neste ponto -, uma programação sedutora e inteligente precipita de facto, por si só, o aparecimento de novos públicos. Em 2002 a cidade não pode ficar em síndrome de privação. Temos de pensar em terapias de substituição, numa metadona cultural. Como disse, ainda ninguém me convidou, ou me colocou sequer a questão. Mas sei que se fala do assunto e que muitas pessoas acham que a minha visão da cultura é muito elistista. Acho que é uma das acusações mais injustas que me podem fazer. Eu tive a Rosa Mota, o António Pinto e o Fernando Gomes [o futebolista] no Rivoli. A minha programação demonstrou justamente que não considero aceitável uma segregação entre aquilo a que se chama uma alta cultura e uma baixa cultura. Acho que a minha programação tem um entendimento global da cultura e que demonstrou preocupação com o envolvimento e animação da cidade. P. - E acha que o seu lado mais acelerado, para usar a sua expressão, conviveria bem com a inevitável burocracia da gestão autárquica. R. - O que deve preocupar o vereador da cultura é entender a cultura como um argumento político. E os responsáveis futuros da cidade vão perceber isso. A cultura é uma bandeira política fundamental, que não poderá ser arriada no Porto 2002. Acho que vai haver uma certa exigência e que toda a pequena discussão em torno de uma política mais paroquial será secundarizada pela necessidade de tornar o Porto uma cidade culturalmente forte. Penso que o vereador não deve ser um funcionário, mas alguém com uma visão global do que é a cultura contemporânea. E haverá um passado próximo que ele não poderá escamotear. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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Na sua infância, Paulo viveu ainda em Santarém, Portalegre, Aveiro e, finalmente, Braga, onde fez os estudos liceais. Foi por esta altura que se dedicou às orquídeas e aos cactos. Tal como Nero Wolfe, o famoso detective de Rex Stout, mantinha uma verdadeira estufa em casa e trocava correspondência internacional sobre o assunto. A Braga, seguiu-se o Porto, onde se formou em Medicina, pelo Instituto Abel Salazar. Teve a melhor média do curso e ficou conhecido como "o Paulinho dos vintes". No entanto, exceptuados os dois anos de estágio após a licenciatura, nunca praticou medicina. Fez o mestrado em Medicina Desportiva e doutorou-se na Faculdade de Ciências do Desporto, onde é professor de Anatomia, com a tese "O Lugar do Corpo: Elementos para uma Cartografia Fractal", entretanto publicada nas edições Piaget. Em 1990, organiza em Serralves o colóquio interdisciplinar "As Cores do Corpo", reunindo à mesma mesa profissionais dos mais diversos domínios: físicos, biólogos, cientistas sociais, médicos, filósofos, críticos de arte, fotógrafos... O sucesso de público supera todas as expectativas. Nos anos seguintes regressa com outros colóquios de concepção semelhante - "O Olhar: do fotão à sedução" e "Gostos não se discutem". Descansa em 1993, mas desforra-se em 1994 com duas iniciativas simultâneas: "Sete imagens para virar a página com tranquilidade (seguidas de 28 fragmentos de um discurso ameaçador)", em Serrralves, e "A Descoberta", que decorre no Acarte, em Lisboa. Quando começa a planear-se a Capital Europeia da Cultura, é convidado a assumir o pelouro das articulações com Roterdão. Mas acabou por ficar também com os "projectos transversais", as edições e a programação da literatura, da ciência e do pensamento. Actualmente, além do seu trabalho na capital da cultura, orienta teses de doutoramento e de mestrado em áreas disciplinares tão diversas como as Belas Artes e as Ciências do Desporto, ou o Design e a Dança. PÚBLICA - Ficou conhecido como organizador de colóquios interdisciplinares e programador da Porto 2001, mas nem todos saberão que a sua actividade principal é a docência na Faculdade de Ciências do Desporto. Como é que lá foi parar? Paulo Cunha e Silva - Inicialmente as aulas de Anatomia eram comuns às aulas de Ciências de Desporto, onde entretanto abriu uma vaga. E eu fui ficando. A minha vida, e a das pessoas em geral, é uma sucessão de acasos que se organizam em função de um determinismo não linear. Achei que as Ciências do Desporto seriam um território de reflexão interessante. Primeiro porque se organizavam a partir do corpo, que era a minha preocupação central, e depois porque essa presença do corpo também me permitiu aproximar do universo das artes contemporâneas, em cujas representações o corpo ocupa um lugar dominante. Para alguém com um desejo de conhecimento muito grande, e também com uma ânsia de relação, o corpo é o território ideal, porque é aquele no qual existe todo o conhecimento, e justamente a partir de um princípio de relação. P. - Nunca quis exercer medicina? R. - Fiz o internato geral nos dois primeiros anos após o fim do curso, no hospital de Santo António. Não foi uma experiência muito estimulante, não tanto pela prática médica, porque a parte de diagnóstico é fascinante - a partir de um conjunto de fragmentos sintomáticos chegar a uma solução -, mas pela vivência hospitalar, que não me entusiasmou nada. Estou satisfeito por me ter afastado um pouco dessa direcção. P. - A sua tese de mestrado trata dos radicais livres de oxigénio. O que é que o levou a interessar-se por este tema? R. - Fiz a tese com o Alexandre Quintanilha, no Instituto de Biologia Molecular e Celular. Os radicais livres de oxigénio são produtos que estão hoje muito em voga, até pela sua associação ao fabrico de produtos de beleza. Descobriu-se que existe uma relação entre o oxigénio e o envelhecimento, uma relação perversa. O oxigénio para ser consumido liberta produtos intermediários, os radicais livres de oxigénio, que são inevitáveis e altamente tóxicos. É um pouco a ideia do viver mata. Ou seja, para viver temos de consumir oxigénio, mas ficamos prisioneiros dos seus efeitos lesivos. É uma revolução no imaginário ocidental: a fonte da vida é também a fonte da morte. Como eu gosto de paradoxos e de sistemas polares e binários, o oxigénio apaixonou-me. Trabalhei nessa área durante três ou quatro anos. P. - Porque é que não continuou? A investigação não o seduz? R. - Achei que já tinha dado para aquele peditório e decidi mudar. Sempre tive a sorte de poder mudar sem que ninguém me pedisse explicações. A minha tese de doutoramento tem um pouco a ver com esta minha "desnoção" de carreira. Organizei sempre a minha vida em função de uma lógica de prazer absoluto. E achei que ficar 50 anos dentro de um laboratório não fazia muito sentido. Até porque a investigação científica, contrariamente ao que as pessoas pensam, é um território muito pouco criativo. A maior parte dos cientistas que eu conheço são bastante desinteressantes. Há momentos de inspiração, que provocam mudanças de paradigma, mas são raríssimos. Muitos cientistas são pessoas empenhadas e com mérito, mas poucos têm dentro de si a centelha capaz de produzir luz sobre um determinado fenómeno. P. - A tese de doutoramento que referiu tem um título estranho: "O Lugar do Corpo: Elementos para Uma Cartografia Fractal"... R. - Sempre me interessaram as representações do corpo. E mantenho, desde a adolescência, uma relação muito próxima com o universo das artes. Aos 14 anos, fazia pequenas apreciações num jornal de Braga. Comecei depois a escrever sobre exposições e fui sendo convidado para júris. Pensei que um trabalho de doutoramento deveria ser uma reflexão sobre o conjunto de problemas que constituíam as minhas inquietações. Organizei-a a partir de um princípio de pirâmide invertida. É um livro que vai recolhendo os assuntos, na lógica de um arrastão, e que à medida que prossegue tenta que estes estejam sistematicamente em discussão. O corpo é o lugar de chegada, mas também de partida. Funciona como um fantástico ponto de observação do mundo e das suas representações. Mas para confirmar essa centralidade do corpo no universo contemporâneo, tive de me deixar atacar pelas várias disciplinas. O que proponho é uma leitura pós-disciplinar. P. - Os colóquios que concebeu para Serralves sugerem que o seu interesse pela ciência contemporânea ultrapassa largamente o domínio estrito da medicina. R. - Interessa-me a física contemporânea e a matemática. Sobretudo as matemáticas que até ao século XX eram chamadas patológicas, porque explicavam o que não era formalmente explicável. Toda a teoria do caos e dos fractais se organiza um pouco a partir dessas matemáticas. É a ideia de que o caos é sobretudo criativo e que só sistemas organizados a partir de uma lógica de flexibilidade absoluta é que podem lidar com um meio que está sempre a oscilar. Se nós fossemos absolutamente programados, qualquer problema que surgisse nos faria sucumbir. É por isso que eu detesto que me chamem programador, que, neste sentido, seria uma espécie de "meta-designer" da realidade. P. - Mas um dos seus papéis na Porto 2001 não foi o de fornecer uma espécie de "design" global para a programação, que procurasse articular a diversidade das iniciativas num discurso consistente? R. - Fiz os textos introdutórios do catálogo da Porto 2001, mas tentei apresentar um conceito mais global do que aquele que acabou por ser apresentado. Os três eixos que estruturam a programação ficaram confinados às ideias de Memória/Futuro, Eu/Outro e Paisagem/Cidade. O que eu tinha proposto inicialmente era uma constelação de pequenos sistemas bipolares que sustentavam toda a programação. Tentei encontrar 50 organizadores do mundo contemporâneo, cada um deles suportando cinco ingredientes. Uma espécie de cosmos das grandes questões e polaridades contemporâneas. Mas achou-se que fazer passar isto seria demasiado complexo. P. - De facto, talvez fosse. Não lhe parece que por muito estruturada que seja a narrativa da programação, o que as pessoas vêem num espectáculo é o próprio espectáculo, e não a eventual lógica em que ele se insere? R. - Sim. Mas isso não obsta a que quem programa tente fazer essa narrativa. Não uma super-narrativa, mas uma narrativa fluida, que incorpore as variações do real. Tentei que a minha programação pudesse contar a história de uma relação, da minha relação com a cidade, ainda que o elemento pessoal aparecesse esbatido. Ou seja, que tentasse colocar em discussão alguns dos problemas que me interessam e que me pareciam poder interessar a todos. Procurei cruzar as especificidades locais com um pensamento global. Pensar global e agir local é um chavão que funciona. P. - Foi isso que tentou fazer com o projecto "Fábrica do Corpo Humano", onde recorre a atletas de alta competição que todos conhecem, como Rosa Mota, para reflectir sobre a natureza da nossa motricidade? R. - Acho que esse foi um projecto claramente frustrante do ponto de vista do resultado estético. Enquanto encenação, foi até negligente e preguiçoso. Mas do ponto de vista do envolvimento do público e da introdução de um determinado número de questões, acabou por funcionar completamente. Um projecto deve ser sempre um interpelador do público, mas também constituir um fragmento da narrativa que se pretende contar. Uma programação cultural não pode resumir-se a uma listagem de encomendas e de eventos. Deve ser um sistema coerente, ainda que de uma coerência flexível, não linear. P. - Já disse que detesta o termo programador, mas é nessa função que se tem tornado conhecido, primeiro com os colóquios de Serralves e, agora, com o Porto 2001. R. - A minha noção de programador é a de um autor, ou comissário. É uma ideia que as pessoas normalmente contestam. O programador deve cruzar o pensamento com a acção, que foi o que tentei fazer em Serralves: criar uma espécie de teatro do pensamento. O primeiro colóquio foi sobre o corpo, e era acompanhado de uma exposição de |âminas histológicas na capela de Serralves. Eu fazia parte da comissão das comemorações do centenário de Abel Salazar e achei que fazia sentido celebrar o artista através do histologista, que eram coisas que aparentemente não se cruzavam. Pareceu-me interessante dar aos corpos histológicos uma dimensão plástica e colocá-los num lugar evanescente, que é o lugar do corpo de Deus. No ano seguinte, fiz uma coisa sobre o olhar, e depois, uma outra sobre os gostos. Acho que a cultura deve ter elementos de provocação e ironia. Contesto da mesma forma a cultura militante e a acomodada. A seguir ao colóquio dos gostos, veio o programa "Descoberta", no Acarte, para o qual convidei o ex-ministro Carrilho e a Teresa Lago. Simultaneamente tinha outro projecto em Serralves - "Sete imagens para virar a página com tranquilidade (seguidas de 28 fragmentos de um discurso ameaçador)" -, que, mais uma vez, era um projecto narrativo, com imagens que abordavam algumas das grandes ansiedades do mundo contemporâneo: o dinheiro, a contaminação, a velocidade... As formas de programar mais activas e implicadas são também mais implicativas. É porque gosto de me envolver nos projectos e tenho ideias definidas que sou o programador que arranjou mais conflitos. P. - Um dos méritos dos seus colóquios de Serralves foi o de terem revelado excelentes comunicadores, designadamente na área das ciências, pouco ou nada conhecidos do grande público. Procurou que os seus convidados, além de terem coisas interessantes a dizer, fossem oradores talentosos? R. - A minha preocupação foi a de cruzar não só discursos diferentes, mas também personalidades de grande público com personalidades de menor público. Apostei que quem ia ver o Rui Reininho ficaria também para ouvir um especialista em... hermenêutica do Estado Novo. P. - Avançando para o Porto 2001. Quem é que o convidou? R. - Foram a Manuela de Melo e o Artur Santos Silva. P. - E qual é o balanço que faz da programação do seu pelouro? R. - Acho que é positivo. Quando fui convidado, ninguém sabia muito bem o que é que eu ia fazer. Inicialmente, fiquei um pouco como ministro dos Negócios Estrangeiros, apenas responsável pela articulação com Roterdão. Depois acabei por ficar com um conjunto de áreas consideradas menores: a literatura, a ciência, o pensamento. Mas também queria ter a liberdade de fazer coisas que poderiam ser vistas como invasões noutros domínios. Criei por isso a designação ambígua de "projectos transversais". Quase toda a minha programação, aliás, é feita de projectos transversais, mesmo quando não são formalmente apresentados como tal. É o caso da "Fábrica do corpo humano", que acabou por ficar no programa de ciência, ou do "Elogio da Loucura", que ficou no do pensamento. P. - Também lhe coube o pelouro das edições... R. - No âmbito da literatura, concebi dois projectos centrais. O primeiro propunha-se ficcionar a cidade, através de convites a um conjunto muito grande de escritores internacionais. O Porto precisa de ficção. Daí a designação "Porto. Ficção", de que o Saramago não gostou, mas que não é inocente. Por outro lado, o tema da capital era "Porto, pontes para o futuro", e pareceu-me que o futuro deveria ser contado sobretudo através da história. Ora, a poesia é a história mais sintética e concisa. É o modo que temos de, em poucas palavras, dizer muito acerca do mundo, falando da forma mais densa e mais intensa. De maneira que achei que fazia sentido uma antologia da poesia universal, que, inicialmente, se chamava "2001 Poemas para o Futuro". E aqui foi convidado o Hermínio e a sua Assírio & Alvim. E ele transformou estes "2001 Poemas para o Futuro" na fantástica "Rosa do Mundo". P. - Das várias componentes do seu pelouro, a literatura e a edição pareciam ser aquelas que tinham menos a ver com as suas actividades anteriores. R. - É verdade. Por isso mesmo, tive um especial cuidado na programação da literatura. Tentei que fosse muito rigorosa, mas também muito ampla. Quem olhar para o programa verifica que ele consegue ser consensual e, ao mesmo tempo, ter alguma ousadia. É uma reflexão sobre os autores, os leitores, os personagens, sobre todos os protagonistas da história da literatura: uma espécie de fenomenologia da própria literatura. Em primeiro plano estavam, claro, os autores. Mas como eram muitos, decidi convidar as autoras e propus à Isabel Pires de Lima que desenvolvesse o projecto "Vozes e olhares no feminino", de que resultou um livro belíssimo. O encontro com a história da literatura era importante, assim como a história da literatura da cidade do Porto. Propus, então, ao Mário Cláudio as "Letras em Trânsito". Para o encontro com os leitores convidei o Reininho, com o projecto "Um livro, uma vida, um objecto, um gesto". E há também o projecto "Identidades", do Rui Carvalho Homem, com os autores da União Europeia. E, finalmente, a iniciativa do Richard Zimmler e do Alexandre Quintanilha, que é um encontro com os grandes ficcionistas internacionais. Tentei que a literatura, justamente por eu não ser um actor desse palco, tivesse uma programação à prova de bala. No programa de edições procurei ainda reflectir a relação do Porto com a história das imagens, através do projecto "Tripé da Imagem". Sobre a imagem fixa, saiu já um livro coordenado pela Teresa Siza ["O Porto e os seus Fotógrafos"], e sairão outros sobre as imagens em movimento, coordenado pelo Sérgio Andrade, e a imagem médica, coordenado pelo médico e fotógrafo Manuel Valente Alves. E há ainda o projecto "Tráfego/Tráfico", que resultará em duas antologias. "Tráfico" reunirá escritores portugueses dos anos 90 e "Tráfego" será uma antologia de cem autores que mudaram a paisagem visual portuguesa, desde as artes plásticas, ao design, à dança, à gastronomia, à publicidade e à moda. O livro vai ter uma tiragem de 30 mil exemplares e será lançado com o "JN", que é o jornal oficial do Porto 2001. A ideia é que um jornal popular possa fazer uma divulgação da vanguarda. E, finalmente, há o "Dicionário de Personalidades do Porto": não é uma obra culturalmente correctíssima, mas é uma forma de a cidade se rever, e isso faz sentido numa programação cultural. E consegue ser um livro polifónico, com muitas vozes e muitos desejos de presença satisfeitos. P. - Nas suas actividades, mesmo as que se parecem centrar em domínios específicos, sejam os radicais livres de oxigénio, sejam, por exemplo, as artes plásticas, sente-se sempre uma tentativa de reflexão global sobre a contemporaneidade. Quais são os pensadores que sente mais próximos das suas próprias interrogações? R. - Há dois pensadores franceses contemporâneos dos quais estou muito próximo: Deleuze e Michel Serre. Ambos interrogam as questões do caos e daquilo que sustenta o visível. E depois há também os pensadores com formação científica, como o René Thom ou o Henri Atlan, que exploram territórios intermediários. E aquilo que faz de facto falta é esse pensamento do terceiro espaço. O Porto era uma cidade que não tinha este terceiro espaço. Antes de 2001, havia uma boa programação, em Serralves, no Teatro de S. João, no Rivoli, mas não havia uma programação intersticial. E o Porto 2001 mostrou que esse terceiro lugar, a rua, os espaços não codificados da cidade, eram espaços fundamentais, porque poderiam ser utilizados para devolver a cidade a si própria numa psicanálise profunda. E eu acho que o Porto 2001, de certa forma, serviu para a cidade fazer a sua psicanálise. P. - E nas artes, quem são as suas referências? R. - Na literatura, seguramente Proust, Musil e Joyce. Na música, Wagner, Mahler... e também a música mais contemporânea, que descobri quando tinha 15 ou 16 anos. Os meus irmãos ficavam furiosos comigo porque eu ouvia Xenakis, Stockhausen, Boulez e não sei que mais, e havia sempre disputa em torno do gira-discos. As minhas relações com as coisas resultam de encontros naturais. E se gosto, vou ficando. Tenho uma certa dificuldade em escolher. É o meu grande drama: ir ficando com tudo o que gosto. Também tem a ver com a minha natureza de coleccionador: sou um micro-coleccionador de arte contemporânea, sobretudo portuguesa e brasileira, porque tenho ido várias vezes ao Brasil e conheço alguns artistas contemporâneos. É com as artes plásticas que tenho mais afinidades. O meu tempo é mais o tempo do quadro do que o tempo do livro. Acho que sou um pouco acelerado, e o tempo de um quadro tem tempo para entrar em relação com o meu tempo. O meu pensamento é mais visual, as minhas narrativas são mais fragmentárias, e um livro é sempre qualquer coisa que se organiza de acordo com a seta do tempo. Mesmo quando são narrativas polifónicas - gosto muito de Calvino, por exemplo -, o livro organiza-se sempre a partir do eixo linear do tempo. E nas artes performativas acontece o mesmo. P. - Avancemos para 2002. Acha que vai ser dada continuidade ao legado desta capital da cultura? R. - Desejaria que tivesse, mas isso competirá ao poder político. O legado do Porto 2001 deverá ser a capacidade de pensar globalmente a cidade. Demonstrou-se, e essa é a maior riqueza, que uma programação não é o somatório das programações de todos os pequenos territórios. Ou seja, faz sentido atender àquilo que fica de fora, ao tal terceiro espaço, que em termos biológicos está perfeitamente identificado e que é um dos territórios mais ricos, por ser aquele onde os mensageiros se encontram e comunicam. A metáfora biológica funciona porque tem uma dimensão antecipatória. Se olharmos para o corpo com cuidado verificamos que ele explica, que tem uma espantosa sabedoria antecipatória. Havia um espaço no corpo que era desprezado, uma espécie de território residual entre as estruturas de comunicação e as próprias células. A nova biologia, que se organiza a partir da bio-semiótica, ou seja, da biologia da comunicação, põe esse espaço no centro da performance biológica. É aí que a acção se produz e o novo tem oportunidade de se consumar. Acho que a programação cultural é também uma oportunidade para o novo se consumar. Desejaria que 2002 fosse sobretudo a valorização do terceiro espaço cultural da cidade do Porto. P. - Após 2001, pretende continuar a ter um papel activo na cultura da cidade? Diz-se que o seu nome circula no PS/Porto como um dos possíveis candidatos a vereador da Cultura. Se de facto viessem a convidá-lo para o cargo, o que é que respondia? R. - É uma ideia que nunca foi colocada, nunca fui convidado por ninguém, nem pensei ainda se faz sentido ou não. Mas se entrasse numa cidade e visse alguém como eu nas funções de vereador da Cultura, não me pareceria um cenário surrealista. Acho que o poder político tem uma função fundamental. O 2001 é uma aposta ganha e as pessoas não vão perceber que, em 2002, os conteúdos da cidade se empobreçam. Esta capital cultural provou que, contrariamente ao que pretendiam as perspectivas mais pessimistas - nomeadamente a do nosso actual ministro da Cultura, que prezo muito mas de quem discordo neste ponto -, uma programação sedutora e inteligente precipita de facto, por si só, o aparecimento de novos públicos. Em 2002 a cidade não pode ficar em síndrome de privação. Temos de pensar em terapias de substituição, numa metadona cultural. Como disse, ainda ninguém me convidou, ou me colocou sequer a questão. Mas sei que se fala do assunto e que muitas pessoas acham que a minha visão da cultura é muito elistista. Acho que é uma das acusações mais injustas que me podem fazer. Eu tive a Rosa Mota, o António Pinto e o Fernando Gomes [o futebolista] no Rivoli. A minha programação demonstrou justamente que não considero aceitável uma segregação entre aquilo a que se chama uma alta cultura e uma baixa cultura. Acho que a minha programação tem um entendimento global da cultura e que demonstrou preocupação com o envolvimento e animação da cidade. P. - E acha que o seu lado mais acelerado, para usar a sua expressão, conviveria bem com a inevitável burocracia da gestão autárquica. R. - O que deve preocupar o vereador da cultura é entender a cultura como um argumento político. E os responsáveis futuros da cidade vão perceber isso. A cultura é uma bandeira política fundamental, que não poderá ser arriada no Porto 2002. Acho que vai haver uma certa exigência e que toda a pequena discussão em torno de uma política mais paroquial será secundarizada pela necessidade de tornar o Porto uma cidade culturalmente forte. Penso que o vereador não deve ser um funcionário, mas alguém com uma visão global do que é a cultura contemporânea. E haverá um passado próximo que ele não poderá escamotear. OUTROS TÍTULOS EM PÚBLICA

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