A virtude de ser virtuoso

02-12-2000
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A Virtude de Ser Virtuoso

Por RITA TABORDA DUARTE

Sábado, 2 de Dezembro de 2000

Num só volume, Vasco Graça Moura reúne oito livros de poesia respeitantes aos três últimos anos.

As quase duzentos e cinquenta páginas que compõem "Poesia 1997/2000", de Vasco Graça Moura, são apenas uma pequena parcela de trinta e sete anos dedicados à escrita. Uma escrita que se estende por variados caminhos, com fundas incursões pela poesia, ficção, ensaio e tradução. Mas enquanto noutros autores isto mesmo pode significar somente polivalência e particular capacidade para se distribuírem por "modalidades" diferentes, em V.G.M. o que sobressai é um projecto único, modos diferentes de um fazer semelhante: o de pensar e questionar o mundo, mas com a consciência de que esse mundo é principalmente uma sua figuração, pelo olhar e apropriação de um sujeito.

Numa entrevista dada a Ana Marques Gastão ("DNA", 1997) e republicada num muito recente livro de ensaios dedicados a Graça Moura, intitulado "Modo Mudando", tal como o seu primeiro livro de poemas ( Quetzal, p.20), o poeta refere-se à escrita como "um modo mais verbal de estar no mundo", com uma utilidade particular: a de permitir "determinado tipo de reconhecimento do mundo". Ora, este reconhecer do mundo revela-se em dois planos distintos. De um lado, evidentemente, o do autor; mas de outro o do leitor face a uma poesia pontuada de referências (literárias, culturais, históricas) que reconhece, sim, mas por mediação de um olhar que implica já organização do mundo em termos de sentido, pela sua verbalização: "Quando a palavra procura uma relação com o mundo, está, de algum modo também a alterá-lo. Manipulação terá assim um lado artesanal e de simulação, esta última implícita no acto de escrever", id, p.14.

Será, então, por aqui que se conjugam duas vertentes que aparentemente poderiam parecer desviantes na poesia de Vasco Graça Moura: A sua capacidade referencial, a simular presenças exteriores ao texto, e uma peculiar noção de auto-biografia que não se revela em pequenas situações contextuais e quotidianas, mas em abrangentes "versões de mundo", a transportar para o texto uma relação única com a literatura, a história e a cultura. Isabel Pires de Lima, autora de um dos sete ensaios de "Modo Mudando" salienta a importância da intertextualidade na obra de V. G. M. "que se estabelece com o arquitexto da cultura ocidental nos seus mais diversos textos da ordem da literatura, da filosofia, da pintura. Há da parte do nosso autor uma tendência omnívora relativamente à cultura ocidental e muito especialmente à cultura clássica."(p.87) . E o que torna particular a poesia de Graça Moura é essa construção de uma auto-biografia poética, por um percurso feito sobretudo pelo que no mundo é texto; pela presença na escrita do que na vida é leitura e relação com as palavras, com um mundo que é sobretudo a sua verbalização .

Tudo isto dominado, ou se quisermos mesmo dissimulado, por uma exímia contenção tanto lógico-racional como estilística, na procura da justa medida e do equilíbrio, não houvesse um vector classicista a perpassar a sua poesia. Também aliado a um virtuosismo, que em V.G.M. é sobretudo virtude, e que corresponde a um exemplar domínio técnico de quem é certamente capaz de "afinar" um soneto por ouvido, de glosar versos e autores, de escrever poemas por encomenda, de jogar com sonoridades e sentidos, com ressonâncias maneiristas, de quem faz poesia como quem treina "escalas" musicais, como refere o autor no texto introdutório a "Letras de um Fado Vulgar". Uma poesia habitada por pessoas, livros, arte, história e cultura, principalmente habitada por um "eu" ciente daquilo em que nos outros somos nós, com uma percepção clara de que a "vida / das palavras tinha / a incerta medida / de eu viver a minha"(p.16).

Uma escrita que se revela na consciência da própria escrita, como é exemplo o longo e belíssimo poema "Uma carta no Inverno", que " nem sequer é uma questão / de papel e sobrescrito. como um devaneio ao lume, / é um ir derivando sob a chuva universal (...)", mas que talvez possa ser uma arte da sua poética: " (...) sai caro discutir // essenciais minudências e tudo isto vem sobre o temporal / a alastrar nos silêncios hipócritas de inverno, / com a nitidez absoluta das presenças que acorrem / sem terem sido convocadas, quando tudo esmorece / e só se pode escrever uma carta no inverno / entrecortando ontem e hoje, misturando à vida urbana / textos e murmúrios remotamente audíveis (...)"

A Virtude de Ser Virtuoso

Por RITA TABORDA DUARTE

Sábado, 2 de Dezembro de 2000

Num só volume, Vasco Graça Moura reúne oito livros de poesia respeitantes aos três últimos anos.

As quase duzentos e cinquenta páginas que compõem "Poesia 1997/2000", de Vasco Graça Moura, são apenas uma pequena parcela de trinta e sete anos dedicados à escrita. Uma escrita que se estende por variados caminhos, com fundas incursões pela poesia, ficção, ensaio e tradução. Mas enquanto noutros autores isto mesmo pode significar somente polivalência e particular capacidade para se distribuírem por "modalidades" diferentes, em V.G.M. o que sobressai é um projecto único, modos diferentes de um fazer semelhante: o de pensar e questionar o mundo, mas com a consciência de que esse mundo é principalmente uma sua figuração, pelo olhar e apropriação de um sujeito.

Numa entrevista dada a Ana Marques Gastão ("DNA", 1997) e republicada num muito recente livro de ensaios dedicados a Graça Moura, intitulado "Modo Mudando", tal como o seu primeiro livro de poemas ( Quetzal, p.20), o poeta refere-se à escrita como "um modo mais verbal de estar no mundo", com uma utilidade particular: a de permitir "determinado tipo de reconhecimento do mundo". Ora, este reconhecer do mundo revela-se em dois planos distintos. De um lado, evidentemente, o do autor; mas de outro o do leitor face a uma poesia pontuada de referências (literárias, culturais, históricas) que reconhece, sim, mas por mediação de um olhar que implica já organização do mundo em termos de sentido, pela sua verbalização: "Quando a palavra procura uma relação com o mundo, está, de algum modo também a alterá-lo. Manipulação terá assim um lado artesanal e de simulação, esta última implícita no acto de escrever", id, p.14.

Será, então, por aqui que se conjugam duas vertentes que aparentemente poderiam parecer desviantes na poesia de Vasco Graça Moura: A sua capacidade referencial, a simular presenças exteriores ao texto, e uma peculiar noção de auto-biografia que não se revela em pequenas situações contextuais e quotidianas, mas em abrangentes "versões de mundo", a transportar para o texto uma relação única com a literatura, a história e a cultura. Isabel Pires de Lima, autora de um dos sete ensaios de "Modo Mudando" salienta a importância da intertextualidade na obra de V. G. M. "que se estabelece com o arquitexto da cultura ocidental nos seus mais diversos textos da ordem da literatura, da filosofia, da pintura. Há da parte do nosso autor uma tendência omnívora relativamente à cultura ocidental e muito especialmente à cultura clássica."(p.87) . E o que torna particular a poesia de Graça Moura é essa construção de uma auto-biografia poética, por um percurso feito sobretudo pelo que no mundo é texto; pela presença na escrita do que na vida é leitura e relação com as palavras, com um mundo que é sobretudo a sua verbalização .

Tudo isto dominado, ou se quisermos mesmo dissimulado, por uma exímia contenção tanto lógico-racional como estilística, na procura da justa medida e do equilíbrio, não houvesse um vector classicista a perpassar a sua poesia. Também aliado a um virtuosismo, que em V.G.M. é sobretudo virtude, e que corresponde a um exemplar domínio técnico de quem é certamente capaz de "afinar" um soneto por ouvido, de glosar versos e autores, de escrever poemas por encomenda, de jogar com sonoridades e sentidos, com ressonâncias maneiristas, de quem faz poesia como quem treina "escalas" musicais, como refere o autor no texto introdutório a "Letras de um Fado Vulgar". Uma poesia habitada por pessoas, livros, arte, história e cultura, principalmente habitada por um "eu" ciente daquilo em que nos outros somos nós, com uma percepção clara de que a "vida / das palavras tinha / a incerta medida / de eu viver a minha"(p.16).

Uma escrita que se revela na consciência da própria escrita, como é exemplo o longo e belíssimo poema "Uma carta no Inverno", que " nem sequer é uma questão / de papel e sobrescrito. como um devaneio ao lume, / é um ir derivando sob a chuva universal (...)", mas que talvez possa ser uma arte da sua poética: " (...) sai caro discutir // essenciais minudências e tudo isto vem sobre o temporal / a alastrar nos silêncios hipócritas de inverno, / com a nitidez absoluta das presenças que acorrem / sem terem sido convocadas, quando tudo esmorece / e só se pode escrever uma carta no inverno / entrecortando ontem e hoje, misturando à vida urbana / textos e murmúrios remotamente audíveis (...)"

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