Uma espécie de murro na barriga

23-02-2002
marcar artigo

Uma Espécie de Murro na Barriga

Sexta-feira, 15 de Fevereiro de 2002

Inventaria uma série de referências literárias, obras, autores e pensamentos que, sob várias perspectivas, concebem uma tapeçaria multicolor em torno do texto dramático. A evocação de excertos da Bíblia e de obras de escritores como Bataille, Foucault, Strindberg ou Artaud envolvem "Quatro Encontros com Sarah Kane", um texto ensaístico incluído no programa de "Purificados". Pedro Eiras, 26 anos, é o autor destes "encontros", ou melhor, destes reencontros com a obra da dramaturga britânica, pois cada releitura da peça gera sempre a possibilidade de criação de um novo texto. "É um fenómeno estranho", diz, "porque cada réplica é muitas vezes um mistério".

Fascinado pela obra dramatúrgica de Kane, Eiras aceitou o repto de se estrear como dramaturgista em "Purificados" - "um lugar muito estranho, pois sou um espectador privilegiado com funções muito diferentes" -, cabendo-lhe igualmente a elaboração do programa. No contexto teatral, estas incursões não são experiências inaugurais: com vários "projectos na gaveta", escreveu a peça "Antes dos Lagartos", encenada e editada pelos Cadernos Dramat, no âmbito do programa "Dramaturgias Emergentes", e tem já encomendados dois trabalhos, um deles em parceria com o também jovem dramaturgo Jorge Louraço Figueira. Mas o seu alfabeto literário não se fica por aqui: a Campo das Letras lançou recentemente o seu primeiro romance, "Anais de Pena Ventosa", os Cadernos do Teatro do Campo Alegre vão editar "Estiletes", um livro de contos, publica regularmente textos de ensaio e crítica literária e, sob a orientação de Isabel Pires de Lima, está a terminar uma tese de doutoramento sobre literatura portuguesa do século XX, nomeadamente sobre quatro livros de outros tantos autores: Raúl Brandão, Herberto Helder, Fernando Pessoa e Maria Gabriela Llansol.

Retrocedamos, então, aos "Quatro Encontros com Sarah Kane". Se Eiras, entre risos, afirma que foi a escritora que o dissecou, por onde vagueia este texto que recusa uma análise hermenêutica de "Purificados"?

Embora defenda que se pressentem heranças "invertidas" de Edward Bond, Gregory Motton ou Aristóteles, o autor deu prioridade "àquilo que ela vem alterar dentro dos limites do teatro". E aquilo que Kane atomiza na violência premente da obra - resgatando "a violência que estava fora da nossa visão para a trazer para o palco" - é uma experiência de devir "tão forte que não se consegue dominar a cena". Nesta interpretação, entre muitas, Pedro Eiras recolhe um "aviso": "Nunca mais posso recusar a ambiguidade do mundo. Kane ensina-nos que ele está exposto a uma legibilidade ambígua e diz-nos que quando agimos não somos robóticos". Não é uma história de autómatos e seres inócuos, portanto, aquela que se metaboliza nas relações entre as personagens da peça. "Qualquer relação com o outro implica uma violência", explica, apontando que cada momento cénico "tem um coração violento, algures". Que é, acrescenta, "uma espécie de murro na barriga". Mas se existe confrontação, ela é experimentada pelo público consigo próprio. "Purificados" não é uma obra maniqueísta, não denuncia tendências imorais e, segundo Pedro Eiras, a perene ambiguidade do texto emana dúvidas sobre eventuais leituras autobiográficas. "Não sei se a depressão de um autor é igual à depressão que está no texto. O que está no papel é já outra coisa". Por isso, nota, a releitura do texto opera sempre um enigma. Um mistério que a própria escritora admitiu na entrevista a Nils Tabert.

M.J.O

Uma Espécie de Murro na Barriga

Sexta-feira, 15 de Fevereiro de 2002

Inventaria uma série de referências literárias, obras, autores e pensamentos que, sob várias perspectivas, concebem uma tapeçaria multicolor em torno do texto dramático. A evocação de excertos da Bíblia e de obras de escritores como Bataille, Foucault, Strindberg ou Artaud envolvem "Quatro Encontros com Sarah Kane", um texto ensaístico incluído no programa de "Purificados". Pedro Eiras, 26 anos, é o autor destes "encontros", ou melhor, destes reencontros com a obra da dramaturga britânica, pois cada releitura da peça gera sempre a possibilidade de criação de um novo texto. "É um fenómeno estranho", diz, "porque cada réplica é muitas vezes um mistério".

Fascinado pela obra dramatúrgica de Kane, Eiras aceitou o repto de se estrear como dramaturgista em "Purificados" - "um lugar muito estranho, pois sou um espectador privilegiado com funções muito diferentes" -, cabendo-lhe igualmente a elaboração do programa. No contexto teatral, estas incursões não são experiências inaugurais: com vários "projectos na gaveta", escreveu a peça "Antes dos Lagartos", encenada e editada pelos Cadernos Dramat, no âmbito do programa "Dramaturgias Emergentes", e tem já encomendados dois trabalhos, um deles em parceria com o também jovem dramaturgo Jorge Louraço Figueira. Mas o seu alfabeto literário não se fica por aqui: a Campo das Letras lançou recentemente o seu primeiro romance, "Anais de Pena Ventosa", os Cadernos do Teatro do Campo Alegre vão editar "Estiletes", um livro de contos, publica regularmente textos de ensaio e crítica literária e, sob a orientação de Isabel Pires de Lima, está a terminar uma tese de doutoramento sobre literatura portuguesa do século XX, nomeadamente sobre quatro livros de outros tantos autores: Raúl Brandão, Herberto Helder, Fernando Pessoa e Maria Gabriela Llansol.

Retrocedamos, então, aos "Quatro Encontros com Sarah Kane". Se Eiras, entre risos, afirma que foi a escritora que o dissecou, por onde vagueia este texto que recusa uma análise hermenêutica de "Purificados"?

Embora defenda que se pressentem heranças "invertidas" de Edward Bond, Gregory Motton ou Aristóteles, o autor deu prioridade "àquilo que ela vem alterar dentro dos limites do teatro". E aquilo que Kane atomiza na violência premente da obra - resgatando "a violência que estava fora da nossa visão para a trazer para o palco" - é uma experiência de devir "tão forte que não se consegue dominar a cena". Nesta interpretação, entre muitas, Pedro Eiras recolhe um "aviso": "Nunca mais posso recusar a ambiguidade do mundo. Kane ensina-nos que ele está exposto a uma legibilidade ambígua e diz-nos que quando agimos não somos robóticos". Não é uma história de autómatos e seres inócuos, portanto, aquela que se metaboliza nas relações entre as personagens da peça. "Qualquer relação com o outro implica uma violência", explica, apontando que cada momento cénico "tem um coração violento, algures". Que é, acrescenta, "uma espécie de murro na barriga". Mas se existe confrontação, ela é experimentada pelo público consigo próprio. "Purificados" não é uma obra maniqueísta, não denuncia tendências imorais e, segundo Pedro Eiras, a perene ambiguidade do texto emana dúvidas sobre eventuais leituras autobiográficas. "Não sei se a depressão de um autor é igual à depressão que está no texto. O que está no papel é já outra coisa". Por isso, nota, a releitura do texto opera sempre um enigma. Um mistério que a própria escritora admitiu na entrevista a Nils Tabert.

M.J.O

marcar artigo