O Galopim dos dinossaur(i)os

28-06-2001
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O Galopim dos Dinossaur(i)os

Por TERESA FIRMINO

Segunda-feira, 4 de Junho de 2001

Disse agora adeus às aulas e aos alunos, ao fim de 40 anos a ensinar, mas não ao Museu Nacional de História Natural, onde permanece como director. Antes da derradeira lição, Galopim de Carvalho falou-nos dele próprio, de como o seu nome é indissociável dos dinossauros por causa da luta pela preservação do património geológico e de uma exposição de robôs destes animais, e soube de pormenores prosaicos como a sua colecção de 43 gravatas. Ainda houve tempo para tomar nota de uma receita de peixe.

António Galopim de Carvalho, o geólogo, o pai e avô dos dinossauros, o defensor de pegadas e demais património geológico e paleontológico, o apologista da palavra dinossáurio, despediu-se das aulas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Deu a última lição, na quarta-feira, num anfiteatro a rebentar. Nascido em Évora a 11 de Agosto de 1931, licenciou-se em ciências geológicas em 1959, pela Universidade de Lisboa, onde também obteve o doutoramento em 1969. No momento da jubilação, à beira dos 70 anos, não se pode dizer que tão tenha o reconhecimento público, como prova a atribuição, em 1993, do grau de Grande Oficial da Ordem de Santiago da Espada.

PÚBLICA - As pessoas conhecem-no como cientista dos dinossauros. Mas a sua área científica nem é a essa, é a sedimentologia e a geomorfologia. Como foi o encontro com os dinossauros?

GALOPIM DE CARVALHO - Os dinossáurios nasceram de uma estratégia para salvar a jazida de pegadas de Carenque, que em 1990 estava transformada numa lixeira. Convencemos a Câmara de Sintra a classificá-las como património local, quando surgiu a notícia de que a CREL (Circular Regional Exterior de Lisboa) ia passar por ali e destruir as pegadas. Aí começou a grande batalha para convencer a Brisa a fazer os túneis por baixo, o que só aconteceu em 1993 e onerou a obra em mais de um milhão e meio de contos.

O dinossáurio é uma entidade mítica que está no imaginário dos jovens e dos adultos. É um fenómeno social, que envolve milhões de pessoas. Foi assim que consegui mobilizar a opinião pública. A exposição "Dinossáurios regressam a Lisboa" foi o que me deu a fama de pai ou avô dos dinossáurios.

Quando me apresentam nas muitas conferências e palestras que dou, dizem que sou o grande especialista português de dinossáurios, alguns até como o especialista mundial. Não sou nada disso. Mas agarrei esta associação como uma estratégia para continuar a lutar pelo património.

Em 1994, apareceu a pedreira do Galinha e houve esta feliz coincidência: o Guterres foi a Torres Novas, eu subi à tribuna e perguntei-lhe publicamente o que é que faria da jazida se fosse primeiro-ministro. Ele declarou que iria fazer tudo para a preservar.

R. - Dá-me jeito. Tenho interesse em que me associem ao mito do dinossáurio. Conhecem-me como o Galopim dos dinossáurios. Esta simpatia tem-me ajudado.

R. - Quarenta e três, de vários museus do mundo. Em 1990 ou 1991, fui pela primeira vez ao Museu de História Natural de Nova Iorque, em plena batalha de Carenque, e tinham lá um "stock" de gravatas com dinossáurios. Tenho comprado gravatas em Nova Iorque, Londres, Paris, Roma, Hong Kong. Outras trazem-mas. Já aconteceu ir a uma escola e os professores oferecerem-me uma gravata pintada a tinta acrílica com um ou dois dinossáurios.

R. - Não tenho mais nenhumas. Tenho uma gravata que não usava, até ma deu o Fernando Tordo. É com pombinhos a esvoaçar. Ele gostou muito de uma gravata que eu tinha com dinossáurios e perguntou-me: quer trocar comigo? Dei-lhe a minha gravata e ele deu-me a dele. Mas depois não a usava, porque só usava gravatas com dinossáurios. Recentemente, tem-se ligado cada vez mais as aves aos dinossáurios. Por mim, já decretei: as aves são dinossáurios avianos.

R. - São dinossáurios. Os não avianos extinguiram-se. Os avianos não se extinguiram. Com as novas descobertas de dinossauros com penas, a fusão aves-dinossáurios está muito evidente. Por isso, passei a usar a gravata com os passarinhos.

R. - Não, não está perdida. A guerra ainda não acabou. É preciso vencer alguma insensibilidade.

R. - Não, foi tudo reaberto. Recuperei os contactos com a Câmara de Sintra e com o Governo. E já tive respostas de "opinion makers", como um artigo do Miguel Sousa Tavares, que me deu azo a fazer uma peça no PÚBLICO que abriu novas portas.

R. - De maneira elegante, respondi-lhe que ele toma essa posição arrogante porque a vida não lhe proporcionou conhecimentos nesta área. E não vamos agora deitar a perder um investimento de um milhão e meio de contos.

R. - É o valor de qualquer documento na Torre do Tombo, que testemunha uma fase da história da Terra e que, se for destruído, se perde para sempre. Ao olhar para aquelas pegadas e rochas, podemos reconstituir o ambiente que existia há 95 milhões de anos. Era uma laguna, estávamos longe de ter um oceano aberto entre nós e a América, tínhamos um clima subtropical...

R. - Fiquei pouco à-vontade, mas satisfeito e vaidoso. Dá-me um grande prazer ser patrono em vida de uma escola. Patronos vivos não há muitos. O Saramago tem uma escola, e só há mais um ou dois. Vou muitas vezes lá, sou sempre convidado para o começo e o final do ano lectivo. A minha proposta é que Carenque seja musealizado e que a escola seja a entidade gestora daquela estrutura e beneficiária dos eventuais lucros.

R. - A única coisa que há o decreto-lei 19/93, que protege os monumentos naturais, mas tem este defeito: o Instituto de Conservação da Natureza assume a responsabilidade de proteger o monumento só que, como não tem dinheiro, a política é não classificar.

R. - Só existe para o monumento natural, e protege os fósseis que estejam dentro do monumento. Mas não protege os que se apanhem na arriba da praia da Meco, por exemplo. Esta praia tem caranguejos fósseis que se vendem em todo o mundo. Vêm para aí roubar e a Guarda Republicana não pode fazer nada.

R. - E ganhei.

R. - O Alentejo votou favoravelmente. Só que perdeu no resto do país. Defendo a regionalização porque, sendo do Alentejo, sei que foi sempre muito esquecido. O Alentejo tinha todas as vantagens, até do ponto do ensino geológico, se houvesse regionalização. Por que é que o liceu de Setúbal não há-de dar uma atenção particular à geologia da Serra da Arrábida?

R. - A defesa do património paleontológico deve mais aos poderes regionais que ao poder central. Estive há pouco tempo em Barrancos e vi o abandono em que está a região. Só se fala de Barrancos nas touradas. Sou contra as touradas, embora em jovem até tenha pertencido a um grupo de forcados. Tinha ideais marialvistas só que, depois, vim estudar e hoje sou contra as touradas. Mas as tradições não podem ser destruídas por decreto, só podem morrer por si. Deixem Barrancos fazer o que faz e quando um dia se chatearem das touradas de morte, elas que acabem.

R. - Estava envolvido naqueles ideais de coragem. O meu grande ideal aos 16 anos era pegar um touro.

R. - Nunca peguei, mas sentia a frustração de não o fazer. Hoje acho perfeitamente pateta esse ideal de pegar um touro.

R. - No meu livro "O Cheiro da Madeira" conto uma história em que estava a fazer de terceiro ou quarta ajuda. Estava a olhar para trás, a chamar mais uns tantos. O da cara fugiu, a vaca avançou, o primeiro ajuda fugiu, o segundo fugiu, o terceiro também, eu estava de lado e apanhei uma grandessíssima marrada nas costelas do lado direito. Felizmente não parti costela nenhuma.

R. - Não leu "O Cheiro da Madeira"?

R. - Estão esgotados porque são uns malandros. A editora informou-me há uns meses que, porque se não vendem, os ia vender ao desbarato, a 500 escudos. Como tal, não me pagariam direitos de autor. Aceitei, o que quero é que os livros cheguem às mãos do público. Não houve muito empenhamento em divulgá-los. É desprestigiante, choca-me estar a ser vendido a peso.

R. - Não, porque a escola era fria. O sucesso de uma criança depende do professor. Na instrução primária, tive o azar de ter tido um professor que era um monstro, ensinava gramática ditando: o sujeito é a pessoa que pratica a acção. A gente escrevia e no outro dia tínhamos de recitar. Isto era maneira de ensinar português? Quando dava erros nos ditados apanhava uma reguada por cada um.

R. - Muitas! Cheguei a apanhar 19 reguadas. Odiei a escola. Foi com esta mágoa que entrei no liceu. Ia sempre com a lição de latim para estudar, não fazia os problemas. Chumbei a matemática no sétimo ano mas, por conselho do professor de física, repeti físico-química e, quando cheguei ao fim, tive boas notas. Entrei na Faculdade de Ciências para biologia por causa meu pai, só que depois estampei-me. Mas tive um professor de ciências naturais muito bom no liceu, Cassiano Vilhena, que me ensinou a gostar de aprender. A partir daí, fiquei fã da geologia e da paleontologia.

R. - Não gostei do curso. No segundo ano, desisti a meio e fui à minha vida. Tinha 21 anos. Fui fazer a tropa. Quando saí, em 1955, dei aulas num colégio, fiz propaganda médica e vendi máquinas registadoras. Aos 26 anos, quando me casei, vim viver para o Príncipe Real, o bairro onde sempre morei em Lisboa. Um dia parei para pensar o que gostava de ser. E regressei à faculdade em 1957, ao mesmo tempo que trabalhava.

R. - Fui assistente de paleontologia. Sou especialista em briozoários, animais pequeninos, que formam colónias, do tipo dos corais. Estive em Paris, no Museu Nacional de História Natural, a estudar briozoários. Ao mesmo tempo, decorria o curso de sedimentologia na Universidade de Paris, e eu com o olho nele. Quando voltei, o professor Orlando Ribeiro, de geografia, convidou-me porque queria dar uma componente sedimentológica à geomorfologia.

R. - O meu médico disse-me que, em princípio, não foram as explosões dos obuses que me causaram a surdez. Mas eu tinha tanto azedume pela tropa, que, para mim, os militares é que me tinham dado cabo dos ouvidos. Quando fazíamos fogo de artilharia, tapávamos as orelhas por causa do estampido. O meu alferes dizia-me: nosso cadete, não tape as orelhas, não seja maricas, as mulheres é que tapam as orelhas. A gente para querer ser homem, para não ser mulher e não ser maricas ficávamos machamente a resistir.

Fiz em Vendas Novas o curso de cadetes e oficial miliciano e tive a classificação de 10,002. Fiquei em oitavo - a contar do fim - num curso de 120. Quando fui colocado em Évora, havia um sargento que era amigo da minha mãe. Chamou-me: anda cá, Carvalhinho. O meu nome na cidade de Évora era Carvalhinho, que eu era pequenino. Mostrou-me a carta confidencial do comando de Vendas Novas para o comando em Évora, com uma espécie de currículo. Terminava com esta frase: "Não devendo nunca ser-lhe confiadas missões que exijam discernimento mental." Fui nomeado oficial da higiene e limpeza. Tinha de vigiar as cavalariças, as latrinas.

R. - Éramos seis quando o Francisco era vivo, agora somos cinco. Três rapazes e três raparigas. O Francisco foi para o Brasil, em 1950 ou 1951. Andou lá dois ou três anos, até ser aquela figura nacional. Vendeu milhões de discos.

R. - Estou a polarizar esta necessidade operacional de expressão da criatividade que é pegar na caneta e escrever no papel. Já fiz óleos e aguarelas, mas agora não tenho pintado. A única coisa que tenho feito é escrever.

R. - Tinha 63 anos. Achava que escrever era difícil, embora tivesse escrito muitos artigos científicos, livros de divulgação. Mas nunca tinha escrito ficção. Um dia li o livro da Zélia Gattai, "Anarquistas, Graças a Deus", com uma tal ingenuidade em termos de técnica literária que me arrisquei a pôr no papel factos. Julgo que não sou capaz de escrever um romance, porque precisa de uma certa imaginação. Gosto mais de fazer descrição. A Natália Correia dizia que eu fazia etnologia ficcional, porque pego na vivência cultural das pessoas, das profissões, e descrevo os ambientes.

R. - Acabei o segundo volume do "Sopas de Pedra", que é dedicado às rochas vulcânicas e graníticas. Com a [geóloga] Vanda Santos, estou a acabar "Dinossáurios - Uma Nova Visão". Também estou a acabar um livro de cozinha, "Sopas de Pão Molhado". É de memórias e culinária. São histórias que vou associando para falar das comidas que invento.

R. - Escrevo com a minha gatinha. O meu filho Nuno chama-lhe Pipas, eu chamo-lhe Maria. Tem muitos nomes. O outro nome é Marlé. Passa a noite em cima dos pés da minha mulher e, quando me levanto e vou para o escritório, às quatro da manhã, ela vai comigo.

R. - Vou continuar no museu com a função de director. É essa a vontade do reitor, até ter alguém que me substitua.

O Galopim dos Dinossaur(i)os

Por TERESA FIRMINO

Segunda-feira, 4 de Junho de 2001

Disse agora adeus às aulas e aos alunos, ao fim de 40 anos a ensinar, mas não ao Museu Nacional de História Natural, onde permanece como director. Antes da derradeira lição, Galopim de Carvalho falou-nos dele próprio, de como o seu nome é indissociável dos dinossauros por causa da luta pela preservação do património geológico e de uma exposição de robôs destes animais, e soube de pormenores prosaicos como a sua colecção de 43 gravatas. Ainda houve tempo para tomar nota de uma receita de peixe.

António Galopim de Carvalho, o geólogo, o pai e avô dos dinossauros, o defensor de pegadas e demais património geológico e paleontológico, o apologista da palavra dinossáurio, despediu-se das aulas na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa. Deu a última lição, na quarta-feira, num anfiteatro a rebentar. Nascido em Évora a 11 de Agosto de 1931, licenciou-se em ciências geológicas em 1959, pela Universidade de Lisboa, onde também obteve o doutoramento em 1969. No momento da jubilação, à beira dos 70 anos, não se pode dizer que tão tenha o reconhecimento público, como prova a atribuição, em 1993, do grau de Grande Oficial da Ordem de Santiago da Espada.

PÚBLICA - As pessoas conhecem-no como cientista dos dinossauros. Mas a sua área científica nem é a essa, é a sedimentologia e a geomorfologia. Como foi o encontro com os dinossauros?

GALOPIM DE CARVALHO - Os dinossáurios nasceram de uma estratégia para salvar a jazida de pegadas de Carenque, que em 1990 estava transformada numa lixeira. Convencemos a Câmara de Sintra a classificá-las como património local, quando surgiu a notícia de que a CREL (Circular Regional Exterior de Lisboa) ia passar por ali e destruir as pegadas. Aí começou a grande batalha para convencer a Brisa a fazer os túneis por baixo, o que só aconteceu em 1993 e onerou a obra em mais de um milhão e meio de contos.

O dinossáurio é uma entidade mítica que está no imaginário dos jovens e dos adultos. É um fenómeno social, que envolve milhões de pessoas. Foi assim que consegui mobilizar a opinião pública. A exposição "Dinossáurios regressam a Lisboa" foi o que me deu a fama de pai ou avô dos dinossáurios.

Quando me apresentam nas muitas conferências e palestras que dou, dizem que sou o grande especialista português de dinossáurios, alguns até como o especialista mundial. Não sou nada disso. Mas agarrei esta associação como uma estratégia para continuar a lutar pelo património.

Em 1994, apareceu a pedreira do Galinha e houve esta feliz coincidência: o Guterres foi a Torres Novas, eu subi à tribuna e perguntei-lhe publicamente o que é que faria da jazida se fosse primeiro-ministro. Ele declarou que iria fazer tudo para a preservar.

R. - Dá-me jeito. Tenho interesse em que me associem ao mito do dinossáurio. Conhecem-me como o Galopim dos dinossáurios. Esta simpatia tem-me ajudado.

R. - Quarenta e três, de vários museus do mundo. Em 1990 ou 1991, fui pela primeira vez ao Museu de História Natural de Nova Iorque, em plena batalha de Carenque, e tinham lá um "stock" de gravatas com dinossáurios. Tenho comprado gravatas em Nova Iorque, Londres, Paris, Roma, Hong Kong. Outras trazem-mas. Já aconteceu ir a uma escola e os professores oferecerem-me uma gravata pintada a tinta acrílica com um ou dois dinossáurios.

R. - Não tenho mais nenhumas. Tenho uma gravata que não usava, até ma deu o Fernando Tordo. É com pombinhos a esvoaçar. Ele gostou muito de uma gravata que eu tinha com dinossáurios e perguntou-me: quer trocar comigo? Dei-lhe a minha gravata e ele deu-me a dele. Mas depois não a usava, porque só usava gravatas com dinossáurios. Recentemente, tem-se ligado cada vez mais as aves aos dinossáurios. Por mim, já decretei: as aves são dinossáurios avianos.

R. - São dinossáurios. Os não avianos extinguiram-se. Os avianos não se extinguiram. Com as novas descobertas de dinossauros com penas, a fusão aves-dinossáurios está muito evidente. Por isso, passei a usar a gravata com os passarinhos.

R. - Não, não está perdida. A guerra ainda não acabou. É preciso vencer alguma insensibilidade.

R. - Não, foi tudo reaberto. Recuperei os contactos com a Câmara de Sintra e com o Governo. E já tive respostas de "opinion makers", como um artigo do Miguel Sousa Tavares, que me deu azo a fazer uma peça no PÚBLICO que abriu novas portas.

R. - De maneira elegante, respondi-lhe que ele toma essa posição arrogante porque a vida não lhe proporcionou conhecimentos nesta área. E não vamos agora deitar a perder um investimento de um milhão e meio de contos.

R. - É o valor de qualquer documento na Torre do Tombo, que testemunha uma fase da história da Terra e que, se for destruído, se perde para sempre. Ao olhar para aquelas pegadas e rochas, podemos reconstituir o ambiente que existia há 95 milhões de anos. Era uma laguna, estávamos longe de ter um oceano aberto entre nós e a América, tínhamos um clima subtropical...

R. - Fiquei pouco à-vontade, mas satisfeito e vaidoso. Dá-me um grande prazer ser patrono em vida de uma escola. Patronos vivos não há muitos. O Saramago tem uma escola, e só há mais um ou dois. Vou muitas vezes lá, sou sempre convidado para o começo e o final do ano lectivo. A minha proposta é que Carenque seja musealizado e que a escola seja a entidade gestora daquela estrutura e beneficiária dos eventuais lucros.

R. - A única coisa que há o decreto-lei 19/93, que protege os monumentos naturais, mas tem este defeito: o Instituto de Conservação da Natureza assume a responsabilidade de proteger o monumento só que, como não tem dinheiro, a política é não classificar.

R. - Só existe para o monumento natural, e protege os fósseis que estejam dentro do monumento. Mas não protege os que se apanhem na arriba da praia da Meco, por exemplo. Esta praia tem caranguejos fósseis que se vendem em todo o mundo. Vêm para aí roubar e a Guarda Republicana não pode fazer nada.

R. - E ganhei.

R. - O Alentejo votou favoravelmente. Só que perdeu no resto do país. Defendo a regionalização porque, sendo do Alentejo, sei que foi sempre muito esquecido. O Alentejo tinha todas as vantagens, até do ponto do ensino geológico, se houvesse regionalização. Por que é que o liceu de Setúbal não há-de dar uma atenção particular à geologia da Serra da Arrábida?

R. - A defesa do património paleontológico deve mais aos poderes regionais que ao poder central. Estive há pouco tempo em Barrancos e vi o abandono em que está a região. Só se fala de Barrancos nas touradas. Sou contra as touradas, embora em jovem até tenha pertencido a um grupo de forcados. Tinha ideais marialvistas só que, depois, vim estudar e hoje sou contra as touradas. Mas as tradições não podem ser destruídas por decreto, só podem morrer por si. Deixem Barrancos fazer o que faz e quando um dia se chatearem das touradas de morte, elas que acabem.

R. - Estava envolvido naqueles ideais de coragem. O meu grande ideal aos 16 anos era pegar um touro.

R. - Nunca peguei, mas sentia a frustração de não o fazer. Hoje acho perfeitamente pateta esse ideal de pegar um touro.

R. - No meu livro "O Cheiro da Madeira" conto uma história em que estava a fazer de terceiro ou quarta ajuda. Estava a olhar para trás, a chamar mais uns tantos. O da cara fugiu, a vaca avançou, o primeiro ajuda fugiu, o segundo fugiu, o terceiro também, eu estava de lado e apanhei uma grandessíssima marrada nas costelas do lado direito. Felizmente não parti costela nenhuma.

R. - Não leu "O Cheiro da Madeira"?

R. - Estão esgotados porque são uns malandros. A editora informou-me há uns meses que, porque se não vendem, os ia vender ao desbarato, a 500 escudos. Como tal, não me pagariam direitos de autor. Aceitei, o que quero é que os livros cheguem às mãos do público. Não houve muito empenhamento em divulgá-los. É desprestigiante, choca-me estar a ser vendido a peso.

R. - Não, porque a escola era fria. O sucesso de uma criança depende do professor. Na instrução primária, tive o azar de ter tido um professor que era um monstro, ensinava gramática ditando: o sujeito é a pessoa que pratica a acção. A gente escrevia e no outro dia tínhamos de recitar. Isto era maneira de ensinar português? Quando dava erros nos ditados apanhava uma reguada por cada um.

R. - Muitas! Cheguei a apanhar 19 reguadas. Odiei a escola. Foi com esta mágoa que entrei no liceu. Ia sempre com a lição de latim para estudar, não fazia os problemas. Chumbei a matemática no sétimo ano mas, por conselho do professor de física, repeti físico-química e, quando cheguei ao fim, tive boas notas. Entrei na Faculdade de Ciências para biologia por causa meu pai, só que depois estampei-me. Mas tive um professor de ciências naturais muito bom no liceu, Cassiano Vilhena, que me ensinou a gostar de aprender. A partir daí, fiquei fã da geologia e da paleontologia.

R. - Não gostei do curso. No segundo ano, desisti a meio e fui à minha vida. Tinha 21 anos. Fui fazer a tropa. Quando saí, em 1955, dei aulas num colégio, fiz propaganda médica e vendi máquinas registadoras. Aos 26 anos, quando me casei, vim viver para o Príncipe Real, o bairro onde sempre morei em Lisboa. Um dia parei para pensar o que gostava de ser. E regressei à faculdade em 1957, ao mesmo tempo que trabalhava.

R. - Fui assistente de paleontologia. Sou especialista em briozoários, animais pequeninos, que formam colónias, do tipo dos corais. Estive em Paris, no Museu Nacional de História Natural, a estudar briozoários. Ao mesmo tempo, decorria o curso de sedimentologia na Universidade de Paris, e eu com o olho nele. Quando voltei, o professor Orlando Ribeiro, de geografia, convidou-me porque queria dar uma componente sedimentológica à geomorfologia.

R. - O meu médico disse-me que, em princípio, não foram as explosões dos obuses que me causaram a surdez. Mas eu tinha tanto azedume pela tropa, que, para mim, os militares é que me tinham dado cabo dos ouvidos. Quando fazíamos fogo de artilharia, tapávamos as orelhas por causa do estampido. O meu alferes dizia-me: nosso cadete, não tape as orelhas, não seja maricas, as mulheres é que tapam as orelhas. A gente para querer ser homem, para não ser mulher e não ser maricas ficávamos machamente a resistir.

Fiz em Vendas Novas o curso de cadetes e oficial miliciano e tive a classificação de 10,002. Fiquei em oitavo - a contar do fim - num curso de 120. Quando fui colocado em Évora, havia um sargento que era amigo da minha mãe. Chamou-me: anda cá, Carvalhinho. O meu nome na cidade de Évora era Carvalhinho, que eu era pequenino. Mostrou-me a carta confidencial do comando de Vendas Novas para o comando em Évora, com uma espécie de currículo. Terminava com esta frase: "Não devendo nunca ser-lhe confiadas missões que exijam discernimento mental." Fui nomeado oficial da higiene e limpeza. Tinha de vigiar as cavalariças, as latrinas.

R. - Éramos seis quando o Francisco era vivo, agora somos cinco. Três rapazes e três raparigas. O Francisco foi para o Brasil, em 1950 ou 1951. Andou lá dois ou três anos, até ser aquela figura nacional. Vendeu milhões de discos.

R. - Estou a polarizar esta necessidade operacional de expressão da criatividade que é pegar na caneta e escrever no papel. Já fiz óleos e aguarelas, mas agora não tenho pintado. A única coisa que tenho feito é escrever.

R. - Tinha 63 anos. Achava que escrever era difícil, embora tivesse escrito muitos artigos científicos, livros de divulgação. Mas nunca tinha escrito ficção. Um dia li o livro da Zélia Gattai, "Anarquistas, Graças a Deus", com uma tal ingenuidade em termos de técnica literária que me arrisquei a pôr no papel factos. Julgo que não sou capaz de escrever um romance, porque precisa de uma certa imaginação. Gosto mais de fazer descrição. A Natália Correia dizia que eu fazia etnologia ficcional, porque pego na vivência cultural das pessoas, das profissões, e descrevo os ambientes.

R. - Acabei o segundo volume do "Sopas de Pedra", que é dedicado às rochas vulcânicas e graníticas. Com a [geóloga] Vanda Santos, estou a acabar "Dinossáurios - Uma Nova Visão". Também estou a acabar um livro de cozinha, "Sopas de Pão Molhado". É de memórias e culinária. São histórias que vou associando para falar das comidas que invento.

R. - Escrevo com a minha gatinha. O meu filho Nuno chama-lhe Pipas, eu chamo-lhe Maria. Tem muitos nomes. O outro nome é Marlé. Passa a noite em cima dos pés da minha mulher e, quando me levanto e vou para o escritório, às quatro da manhã, ela vai comigo.

R. - Vou continuar no museu com a função de director. É essa a vontade do reitor, até ter alguém que me substitua.

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