Inquérito

16-09-2001
marcar artigo

Inquérito

Domingo, 16 de Setembro de 2001

MÁRIO MELO ROCHA

Docente Universidade Católica

Jurisconsulto

O mundo é composto de mudança?

Recordo setembros doces, homenageando porventura a ídilica lembrança de uma romântica e naive canção cuja letra em francês haveria de se transformar rapidamente em "september morning". Coisas do mundo capitalista, já se vê. Não é mais possivel recordar o mês que corre daquela maneira. A passagem dos dias e das horas sobre acontecimentos nunca experimentados à face da terra é sempre boa conselheira. Porque infirma ou confirma o estado de estupefacção idiota vivido ao ver e rever as tenebrosas imagens. Neste caso, a passagem dos dias e das horas confirma e amplia os piores medos e as mais vertiginosas angústias. O mundo mudou, é verdade, mas mudou da pior maneira, mudou de maneira inimaginável. O mundo mudou porque parece ter deixado de haver regras. Até a estes atentados, durante anos e anos, com guerras de permeio, o mundo tinha regras. Até as guerras tinham regras e os homens regras de conduta. Inimigos, mas com regras. A própria guerra fria as conheceu e sempre que se aproximava o perigo de as pôr definitivamente em causa, logo as diplomacias eram activadas e regredia-se na escalada. Os dois blocos envolvidos batiam-se por interesses e valores diametralmente opostos, no contexto de imaginários situados nos antípodas: a liberdade, a democracia, uma economia de mercado, de um lado; o homem socialista, o Estado total, uma economia planificada, do outro. Mas cada bloco respeitava o outro e procurava respeitar as regras estabelecidas. Agora, as regras foram para o lixo. Alguém já havia convencido os fanáticos suicidas que a vida deles não tinha qualquer valor. Interiorizaram-no e trataram de supor o mesmo para aqueles que até aí não suportavam serem seus semelhantes. Suicidaram-se com a suposta e propalada benção do seu Deus. Mataram, contra o mandamento do Deus que não quiseram que fosse o seu. Mas que é o nosso.

Ocorre não poderem nem deverem as democracias invocar Deus para justificarem qualquer tipo de acção bélica. Aqui reside o ponto nevrálgico, que aparta a racionalidade da fé, que nas democracias é matéria do foro privado de cada um. É por isso que é tão dificil fazer pontes com qualquer tipo de fundamentalismo de base religiosa. Esta dificuldade intrasponível não pode, porém, justificar qualquer tipo de atitude timorata. Pelo contrário. E a resposta pode e, porventura, deve tardar o tempo necessário à identificação segura dos responsáveis e dos Estados que os albergam ou apoiam. Mas não pode, em nenhum caso, deixar de ser dada.

Por uma razão muito simples que BELL definiu assim: "a democracia tornou-se uma segunda natureza, um meio de vida, um ambiente". E se assim é, como é, não pode passar impune quem quer destruir este nosso meio de vida. O mesmo que, por toda a Europa e nos EUA, deu guarida tolerante a quem professa outras crenças. Que acolheu e deu possibilidades de sustento a quem vivia na miséria e no obscurantismo cego. Que aceitou na sua terra quem nunca se integrou no país de acolhimento e fechados sobre si mesmos saiem todos os dias para ganhar a vida. É verdade que muitos destes não podem ser confundidos com os extremistas e com os actos terroristas. Mas precisamente por isso e para que se não diga que aqueles decapitam quem lhes dá de comer, é preciso responder.

Não colhem, assim, argumentos que já se vão ouvindo e que, ora por comiseração pateta, ora por juridismos sem sentido num momento em que nos querem subverter as regras de vida, parecem hesitar na necessidade de uma resposta inequívoca. Vejo a intervenção da NATO como necessária e até fundamental, no quadro do princípio da acção militar colectiva e até para evitar que os EUA se fechem sobre si próprios, com consequências de toda a ordem para a Europa. Haverá, seguramente, nos próximos longos tempos medidas securitárias a que já não estavamos habituados. São benvindas e necessárias porque se trata de defender as nossas vidas e o meio de vida que escolhemos. E porque são precisas até ao desmantelamento da rede internacional terrorista responsável pelo caos de terça-feira, 11 de Setembro de 2001.

O problema que temos pela frente é tão grave quanto isto: no século passado, à escala global, a vida política era tratada pelas internacionais, socialista, democrata-cristã, liberal. Elas ainda existem. Mas têm, agora, ao seu lado uma nova internacional : a internacional terrorista. Não há espaço para todos. Ou ela ou nós.

O mundo é composto de mudança como, antes de tudo, a poesia maior acolheu. Mas há mudanças que, nunca por nunca, devem ocorrer. Uma das matérias que não deve mudar é a que se prende com os princípios e critérios estruturantes da democracia e da vida colectiva. Se são postos em causa, é tudo posto em causa. Sem recuo e sem saída. Do que se trata é de cerrar fileiras, à escala global, para defender aqueles princípios e critérios e este meio de vida. É por isso que as medidas securitárias são instrumentais deste objectivo substancial.

Há quarenta anos, bondosamente, houve quem compusesse o Imagine. Quem o fez já morreu mas a música dele foi-se ouvindo ao longo dos tempos e nos mais inacreditáveis lugares. O sonho dele está hoje mais longe, muito mais longe. A opção é clara: ou se decapita o monstro ou nunca mais se ouvirá música.

Helena Roseta, deputada do PS

"Retaliação cega seria inútil"

1 - O que se passou no dia 11 de Setembro foi uma brutal mudança de escala do terrorismo com consequências sobre todos nós. Abriu-se uma era de incerteza e insegurança globais. Ninguém está seguro, nem mesmo a nação mais poderosa do mundo. Bush falou da primeira guerra do século XXI. Mas não é uma guerra como a conhecíamos do passado. Desconhecem-se o inimigo e as suas armas e todos podemos ser alvos.

Duas grandes mudanças são já visíveis: 1ª - o isolacionismo americano deu lugar a um consenso de solidariedade com os Estado Unidos nunca visto. Veremos como é que a comunidade internacional vai lidar com este consenso e até que ponto conseguirá transformá-lo numa estratégia global contra este hiper-terrorismo. 2ª - a nossa consciência colectiva foi abalada por um pesadelo. Aconteceu à nossa vista. Sentimo-nos todos atingidos e envolvidos. Mas se o medo é a principal arma do terrorismo, resistir-lhe é preciso. Seremos capazes de conjugar segurança e liberdade nas nossas cidades? Talvez tenhamos de sacrificar algumas das facilidades da vida moderna. Mas o que não podemos é trair os valores em que se baseia a nossa vida em sociedade. A lição de coragem, solidariedade e inter-ajuda empreendedora dos nova-iorquinos deve ser um motivo de esperança.

2 - A ameaça é global, a resposta também deve sê-lo. A primeira etapa é a cooperação internacional a nível dos serviços de informação e das polícias, para identificar e deter culpados. O desmantelamento de redes terroristas poderá implicar acções militares, mas uma retaliação cega seria inútil. O combate vai ser longo e difícil e devemos estar preparados para isso. Não podemos banir a barbárie, mas temos de ser capazes de a combater. É fundamental que opiniões públicas esclarecidas apoiem o que tiver de ser apoiado e repudiem tentações xenófobas.

Perante a desordem mundial, impõem-se novos mecanismos de regulação económica, financeira e social. É preciso que a comunidade internacional seja capaz de fazer frente à ditadura dos mercados globais, incluindo os tráficos ilícitos. É preciso isolar os regimes corruptos. E é preciso repensar o funcionamento e organização da vida urbana, desde os transportes à hiper-concentração de pessoas. A alma das cidades reside na liberdade de nelas habitar, trabalhar, circular, viver. Nunca ninguém poderá garantir a segurança absoluta. Mas teremos de procurar diminuir as vulnerabilidades e riscos que os progressos tecnológicos também acarretam.

Inquérito

Domingo, 16 de Setembro de 2001

MÁRIO MELO ROCHA

Docente Universidade Católica

Jurisconsulto

O mundo é composto de mudança?

Recordo setembros doces, homenageando porventura a ídilica lembrança de uma romântica e naive canção cuja letra em francês haveria de se transformar rapidamente em "september morning". Coisas do mundo capitalista, já se vê. Não é mais possivel recordar o mês que corre daquela maneira. A passagem dos dias e das horas sobre acontecimentos nunca experimentados à face da terra é sempre boa conselheira. Porque infirma ou confirma o estado de estupefacção idiota vivido ao ver e rever as tenebrosas imagens. Neste caso, a passagem dos dias e das horas confirma e amplia os piores medos e as mais vertiginosas angústias. O mundo mudou, é verdade, mas mudou da pior maneira, mudou de maneira inimaginável. O mundo mudou porque parece ter deixado de haver regras. Até a estes atentados, durante anos e anos, com guerras de permeio, o mundo tinha regras. Até as guerras tinham regras e os homens regras de conduta. Inimigos, mas com regras. A própria guerra fria as conheceu e sempre que se aproximava o perigo de as pôr definitivamente em causa, logo as diplomacias eram activadas e regredia-se na escalada. Os dois blocos envolvidos batiam-se por interesses e valores diametralmente opostos, no contexto de imaginários situados nos antípodas: a liberdade, a democracia, uma economia de mercado, de um lado; o homem socialista, o Estado total, uma economia planificada, do outro. Mas cada bloco respeitava o outro e procurava respeitar as regras estabelecidas. Agora, as regras foram para o lixo. Alguém já havia convencido os fanáticos suicidas que a vida deles não tinha qualquer valor. Interiorizaram-no e trataram de supor o mesmo para aqueles que até aí não suportavam serem seus semelhantes. Suicidaram-se com a suposta e propalada benção do seu Deus. Mataram, contra o mandamento do Deus que não quiseram que fosse o seu. Mas que é o nosso.

Ocorre não poderem nem deverem as democracias invocar Deus para justificarem qualquer tipo de acção bélica. Aqui reside o ponto nevrálgico, que aparta a racionalidade da fé, que nas democracias é matéria do foro privado de cada um. É por isso que é tão dificil fazer pontes com qualquer tipo de fundamentalismo de base religiosa. Esta dificuldade intrasponível não pode, porém, justificar qualquer tipo de atitude timorata. Pelo contrário. E a resposta pode e, porventura, deve tardar o tempo necessário à identificação segura dos responsáveis e dos Estados que os albergam ou apoiam. Mas não pode, em nenhum caso, deixar de ser dada.

Por uma razão muito simples que BELL definiu assim: "a democracia tornou-se uma segunda natureza, um meio de vida, um ambiente". E se assim é, como é, não pode passar impune quem quer destruir este nosso meio de vida. O mesmo que, por toda a Europa e nos EUA, deu guarida tolerante a quem professa outras crenças. Que acolheu e deu possibilidades de sustento a quem vivia na miséria e no obscurantismo cego. Que aceitou na sua terra quem nunca se integrou no país de acolhimento e fechados sobre si mesmos saiem todos os dias para ganhar a vida. É verdade que muitos destes não podem ser confundidos com os extremistas e com os actos terroristas. Mas precisamente por isso e para que se não diga que aqueles decapitam quem lhes dá de comer, é preciso responder.

Não colhem, assim, argumentos que já se vão ouvindo e que, ora por comiseração pateta, ora por juridismos sem sentido num momento em que nos querem subverter as regras de vida, parecem hesitar na necessidade de uma resposta inequívoca. Vejo a intervenção da NATO como necessária e até fundamental, no quadro do princípio da acção militar colectiva e até para evitar que os EUA se fechem sobre si próprios, com consequências de toda a ordem para a Europa. Haverá, seguramente, nos próximos longos tempos medidas securitárias a que já não estavamos habituados. São benvindas e necessárias porque se trata de defender as nossas vidas e o meio de vida que escolhemos. E porque são precisas até ao desmantelamento da rede internacional terrorista responsável pelo caos de terça-feira, 11 de Setembro de 2001.

O problema que temos pela frente é tão grave quanto isto: no século passado, à escala global, a vida política era tratada pelas internacionais, socialista, democrata-cristã, liberal. Elas ainda existem. Mas têm, agora, ao seu lado uma nova internacional : a internacional terrorista. Não há espaço para todos. Ou ela ou nós.

O mundo é composto de mudança como, antes de tudo, a poesia maior acolheu. Mas há mudanças que, nunca por nunca, devem ocorrer. Uma das matérias que não deve mudar é a que se prende com os princípios e critérios estruturantes da democracia e da vida colectiva. Se são postos em causa, é tudo posto em causa. Sem recuo e sem saída. Do que se trata é de cerrar fileiras, à escala global, para defender aqueles princípios e critérios e este meio de vida. É por isso que as medidas securitárias são instrumentais deste objectivo substancial.

Há quarenta anos, bondosamente, houve quem compusesse o Imagine. Quem o fez já morreu mas a música dele foi-se ouvindo ao longo dos tempos e nos mais inacreditáveis lugares. O sonho dele está hoje mais longe, muito mais longe. A opção é clara: ou se decapita o monstro ou nunca mais se ouvirá música.

Helena Roseta, deputada do PS

"Retaliação cega seria inútil"

1 - O que se passou no dia 11 de Setembro foi uma brutal mudança de escala do terrorismo com consequências sobre todos nós. Abriu-se uma era de incerteza e insegurança globais. Ninguém está seguro, nem mesmo a nação mais poderosa do mundo. Bush falou da primeira guerra do século XXI. Mas não é uma guerra como a conhecíamos do passado. Desconhecem-se o inimigo e as suas armas e todos podemos ser alvos.

Duas grandes mudanças são já visíveis: 1ª - o isolacionismo americano deu lugar a um consenso de solidariedade com os Estado Unidos nunca visto. Veremos como é que a comunidade internacional vai lidar com este consenso e até que ponto conseguirá transformá-lo numa estratégia global contra este hiper-terrorismo. 2ª - a nossa consciência colectiva foi abalada por um pesadelo. Aconteceu à nossa vista. Sentimo-nos todos atingidos e envolvidos. Mas se o medo é a principal arma do terrorismo, resistir-lhe é preciso. Seremos capazes de conjugar segurança e liberdade nas nossas cidades? Talvez tenhamos de sacrificar algumas das facilidades da vida moderna. Mas o que não podemos é trair os valores em que se baseia a nossa vida em sociedade. A lição de coragem, solidariedade e inter-ajuda empreendedora dos nova-iorquinos deve ser um motivo de esperança.

2 - A ameaça é global, a resposta também deve sê-lo. A primeira etapa é a cooperação internacional a nível dos serviços de informação e das polícias, para identificar e deter culpados. O desmantelamento de redes terroristas poderá implicar acções militares, mas uma retaliação cega seria inútil. O combate vai ser longo e difícil e devemos estar preparados para isso. Não podemos banir a barbárie, mas temos de ser capazes de a combater. É fundamental que opiniões públicas esclarecidas apoiem o que tiver de ser apoiado e repudiem tentações xenófobas.

Perante a desordem mundial, impõem-se novos mecanismos de regulação económica, financeira e social. É preciso que a comunidade internacional seja capaz de fazer frente à ditadura dos mercados globais, incluindo os tráficos ilícitos. É preciso isolar os regimes corruptos. E é preciso repensar o funcionamento e organização da vida urbana, desde os transportes à hiper-concentração de pessoas. A alma das cidades reside na liberdade de nelas habitar, trabalhar, circular, viver. Nunca ninguém poderá garantir a segurança absoluta. Mas teremos de procurar diminuir as vulnerabilidades e riscos que os progressos tecnológicos também acarretam.

marcar artigo