Suplemento Pública

04-06-2001
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José Eduardo Agualusa

Gente de Plástico

Segunda-feira, 4 de Junho de 2001

As senhoras brasileiras da alta burguesia raramente sorriem com largueza. Julguei durante certo tempo que fosse por antipatia de classe, ou devido a alguma misteriosa convenção social, mas depois descobri o verdadeiro motivo: não conseguem! Sujeitas a inúmeras intervenções cirúrgicas de rejuvenescimento adquirem uma idêntica impassibilidade de bonecas, um mesmo rosto abstracto, que só o olhar humaniza (porque é autêntico e velho). Não parecem mais jovens, ao contrário, parecem exactamente aquilo que são: mulheres velhas de pele esticada. A cirurgia plástica está tão divulgada nas grandes cidades brasileiras que existem inclusive diversas revistas da especialidade à venda em qualquer banca do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Actrizes famosas reúnem a imprensa para apresentar o novo rosto, ou os novos seios, após cada operação. Diz-se "fulana fez plástica" como antigamente se dizia, "beltrana mudou de penteado". Na minha opinião, aliás, seria mais adequado dizer-se: "Fulana fez-se de plástico."

Ao ser eleita Miss Brasil, faz pouco tempo, Juliana Borges não hesitou em apresentar-se como a obra de um esperto cirurgião, que terá realizado nela 19 operações plásticas. Juliana afinou a cintura graças a duas lipoaspirações, introduziu 165 mililitros de silicone nos seios, arredondou o queixo, corrigiu as orelhas de abano, extraiu diversos sinais, e por aí fora, até remover do corpo os últimos vestígios de humanidade. Transformada numa boneca de carne e osso (e silicone e metilmetacrilato), a "miss" comoveu-se com os aplausos, ignorando que o público não a aplaudia a ela mas ao seu autor. Caso a ideia vingue, este género de concursos ganhará na verdade uma certa justiça. A beleza, por si só, não é mérito algum. Faz muito mais sentido, convenhamos, premiar os cirurgiões.

Michael Jackson continua a ser o campeão incontestado deste afã transformista. Quando o cantor visitou África, há alguns anos, correu o boato de que passava o tempo inteiro agarrado ao nariz para evitar que este caísse. Talvez fosse apenas por não suportar o vigoroso cheiro de África, mas vendo-o pela televisão segurando em pânico o estreito apêndice, o boato pareceu-me muito plausível. Eu, sinceramente, estou sempre à espera que o pobre Michael se desmonte - e por inteiro: um dia descuida-se e cai-lhe um olho; no outro espirra e salta-lhe o nariz. A lisa cabeleira de "nylon", essa, corre o risco de se incendiar sob o duro foco dos projectores, e a pele, já tão desbotada, pode ser que se esboroe um dia destes como areia ao sol.

A revolução genética promete-nos agora a juventude eterna. Ou melhor: promete-nos o prodígio de um corpo jovem até à morte e uma dilatada esperança de vida. A ideia agrada-me. Mais do que o envelhecimento do corpo, porém, o que temo é a corrupção do espírito. Aqui há dias encontrei uma fotografia a preto e branco do tempo da faculdade. Não estou muito diferente. Aquilo que em mim envelheceu foi o olhar. Naquela época eu tinha um olhar muito ingénuo. Toda a minha juventude estava nesse olhar. Conheci alguns meninos com olhar de velho. Crianças abandonadas à sua sorte, vivendo perigosamente nas ruas de Luanda ou do Rio de Janeiro, sem inocência, sem fé alguma na espécie humana. Conheci também, por outro lado, meia dúzia de velhos com olhar de menino. A esses invejo muito. Não quero envelhecer, é verdade, acho que ninguém merece envelhecer, mas sobretudo não quero envilecer. Se tiver mesmo de ser, porém, pois que venha a velhice com todos os seus achaques, contando que me salve do cinismo, do pessimismo e da nostalgia. Que eu nunca diga, suspirando, "ah, no meu tempo, no meu tempo tudo era melhor", essas coisas que ouvimos dizer aos velhos de olhos velhos enquanto espreitam com rancor a juventude. Não é pedir demais.

José Eduardo Agualusa

Gente de Plástico

Segunda-feira, 4 de Junho de 2001

As senhoras brasileiras da alta burguesia raramente sorriem com largueza. Julguei durante certo tempo que fosse por antipatia de classe, ou devido a alguma misteriosa convenção social, mas depois descobri o verdadeiro motivo: não conseguem! Sujeitas a inúmeras intervenções cirúrgicas de rejuvenescimento adquirem uma idêntica impassibilidade de bonecas, um mesmo rosto abstracto, que só o olhar humaniza (porque é autêntico e velho). Não parecem mais jovens, ao contrário, parecem exactamente aquilo que são: mulheres velhas de pele esticada. A cirurgia plástica está tão divulgada nas grandes cidades brasileiras que existem inclusive diversas revistas da especialidade à venda em qualquer banca do Rio de Janeiro ou de São Paulo. Actrizes famosas reúnem a imprensa para apresentar o novo rosto, ou os novos seios, após cada operação. Diz-se "fulana fez plástica" como antigamente se dizia, "beltrana mudou de penteado". Na minha opinião, aliás, seria mais adequado dizer-se: "Fulana fez-se de plástico."

Ao ser eleita Miss Brasil, faz pouco tempo, Juliana Borges não hesitou em apresentar-se como a obra de um esperto cirurgião, que terá realizado nela 19 operações plásticas. Juliana afinou a cintura graças a duas lipoaspirações, introduziu 165 mililitros de silicone nos seios, arredondou o queixo, corrigiu as orelhas de abano, extraiu diversos sinais, e por aí fora, até remover do corpo os últimos vestígios de humanidade. Transformada numa boneca de carne e osso (e silicone e metilmetacrilato), a "miss" comoveu-se com os aplausos, ignorando que o público não a aplaudia a ela mas ao seu autor. Caso a ideia vingue, este género de concursos ganhará na verdade uma certa justiça. A beleza, por si só, não é mérito algum. Faz muito mais sentido, convenhamos, premiar os cirurgiões.

Michael Jackson continua a ser o campeão incontestado deste afã transformista. Quando o cantor visitou África, há alguns anos, correu o boato de que passava o tempo inteiro agarrado ao nariz para evitar que este caísse. Talvez fosse apenas por não suportar o vigoroso cheiro de África, mas vendo-o pela televisão segurando em pânico o estreito apêndice, o boato pareceu-me muito plausível. Eu, sinceramente, estou sempre à espera que o pobre Michael se desmonte - e por inteiro: um dia descuida-se e cai-lhe um olho; no outro espirra e salta-lhe o nariz. A lisa cabeleira de "nylon", essa, corre o risco de se incendiar sob o duro foco dos projectores, e a pele, já tão desbotada, pode ser que se esboroe um dia destes como areia ao sol.

A revolução genética promete-nos agora a juventude eterna. Ou melhor: promete-nos o prodígio de um corpo jovem até à morte e uma dilatada esperança de vida. A ideia agrada-me. Mais do que o envelhecimento do corpo, porém, o que temo é a corrupção do espírito. Aqui há dias encontrei uma fotografia a preto e branco do tempo da faculdade. Não estou muito diferente. Aquilo que em mim envelheceu foi o olhar. Naquela época eu tinha um olhar muito ingénuo. Toda a minha juventude estava nesse olhar. Conheci alguns meninos com olhar de velho. Crianças abandonadas à sua sorte, vivendo perigosamente nas ruas de Luanda ou do Rio de Janeiro, sem inocência, sem fé alguma na espécie humana. Conheci também, por outro lado, meia dúzia de velhos com olhar de menino. A esses invejo muito. Não quero envelhecer, é verdade, acho que ninguém merece envelhecer, mas sobretudo não quero envilecer. Se tiver mesmo de ser, porém, pois que venha a velhice com todos os seus achaques, contando que me salve do cinismo, do pessimismo e da nostalgia. Que eu nunca diga, suspirando, "ah, no meu tempo, no meu tempo tudo era melhor", essas coisas que ouvimos dizer aos velhos de olhos velhos enquanto espreitam com rancor a juventude. Não é pedir demais.

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