O olhar da socióloga

14-07-2001
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O Olhar da Socióloga

Segunda-feira, 4 de Junho de 2001

Não foi fácil encontrar um sociólogo com trabalho publicado que se tivesse dedicado a estudar o fenómeno das revistas "del corazón". Encontrámos um que andou lá perto e trabalha na área da sociologia da educação: Maria Manuel Vieira, da Faculdade de Ciências de Lisboa. No início da década de 90 constatou que, em termos sociológicos, as classes superiores estavam por estudar em Portugal. Por outro lado, foi-se confrontando nas salas de espera de consultórios médicos com o fenómeno das revistas cor-de-rosa. Por isso, para a sua tese, quis saber de que forma é que desde o início da década de 70 até à década de 90 o espaço social das classes superiores se tinha alterado, reconvertido e recomposto. E estudou a importância nesse processo do sistema escolar e da posse de diplomas académicos.

Quis perceber, por exemplo, como é que os que eram a classe superior antes do 25 de Abril viveram essa situação. Ou melhor, se sofreram e se recuperaram. Estudou principalmente a região Sul - onde com o 25 de Abril foi mais posta em causa a antiga estrutura de património.

"No final da década de 70, depois do 25 de Abril de 74, a sociedade portuguesa estava em rápida transformação. Esta tinha a ver com o declínio progressivo da actividade agrícola como base de sustentação de um património das famílias; e também com o fenómeno das classes médias, aqueles que acabavam a faculdade e que tinham um estatuto diferente", explica Maria Manuel Vieira, que detectou a existência de dois grandes grupos sociais nessa época. "O grupo de status herdado, composto pelas famílias que há várias gerações faziam parte desse espaço social. E um outro grupo de status, a que alguns autores chamam novos-ricos, a que chamei o grupo do património adquirido".

Porque, tal como a socióloga explica, uma coisa é ser-se herdeiro, com tudo o que isso implica, "desde que se nasce já se está no interior desse espaço, de uma forma natural, como se já fizesse parte da pele" e outra coisa é "ter-se nascido numa outra classe social e através de algo que foi adquirido pelo próprio, através de um esforço de trabalho inaudito, se acede a um conjunto de posições sociais que depois podem eventualmente fazer com que se chegue àquele espaço". Isto pode acontecer ou pela via dos negócios bem sucedidos ou pela via da acumulação de capital escolar (através do estudo e da obtenção de títulos académicos). Ou pela via do recasamento. "Entra-se para esta classe social através de um segundo ou terceiro casamento, pois depois do 25 de Abril era possível o divórcio. E por essa via podem entrar pessoas que não fazem parte desse status."

"Com o 25 de Abril, surgem as nacionalizações e o património que sustentava estas famílias de status herdado é posto em causa. Perdem o seu antigo poder simbólico e muitas delas exilam-se durante alguns anos. Esse espaço começa a ser rapidamente invadido por novos protagonistas que anteriormente pertenciam à classe média e com a revolução puderam aceder ao campo político, que permite mobilidade social ascendente", continua Maria Manuel Vieira.

Por outro lado, no final da década de 80 criam-se as condições de dinamismo económico para que regressem os antigos membros dessa tal classe dominante. "Esses antigos membros de antigas dinastias - quer ligadas ao sector primário, quer ao mundo industrial, quer ao sector financeiro - regressam para condições completamente distintas, pois a sociedade portuguesa já não era a mesma que eles tinham abandonado". Tinha havido profundas alterações: "uma maior elevação dos níveis de escolaridade, um crescimento da classe média (cada vez mais sediada em meios urbanos). As grandes apostas em termos de investimento já não iam tanto para o sector industrial, como era outrora a tradição, mas orientavam-se para o sector dos serviços, ao nível da banca, das promoções imobiliárias, das seguradoras, ao nível do turismo."

"Entretanto uma série de outros já cá estavam instalados, os tais novos ricos ou os que foram particularmente bem sucedidos neste período em que se abriram inúmeras possibilidades. Uma classe média com pretensões de mobilidade social ascendente e que lhes fazia concorrência."

Quando regressam a Portugal, a sociedade está mais urbanizada, mais numerosa, e os reconhecimentos sociais já não são pessoais. Por isso sentem uma necessidade acrescida de manterem vivo o poder simbólico de outrora. "Face a essa nova concorrência há uma necessidade de alguma visibilidade pública - não tanto para os pares, porque este grupo continua a reconhecer quem são os seus membros -, mas sobretudo para dar-se a conhecer ao público anónimo, sobretudo à classe média."

Nas entrevistas que fez para a sua tese, deu-se conta de que dentro deste grupo havia algumas divisões relativamente à exposição mediática. "Uns acham que não se deve aparecer porque o seu poder simbólico é de tal forma natural que não precisa de ser exibido constantemente. Consideram de muito mau gosto estar a exibir-se essa condição, porque nunca precisaram de se exibir anteriormente, isto é antes do 25 de Abril."

Depois existem outros que "reconhecem que essa publicitação do próprio e do nome da família pode ter vantagens múltiplas, até em termos económicos. Pode ser reconvertida em outro tipo de bens que se podem adquirir por essa via. Estou a lembrar-me, por exemplo, que quem tinha antigos patrimónios familiares e posse de terra teve de reconverter o património e investir na reconversão dos antigos palácios e quintas para o turismo de habitação, para organização de eventos, etc.. E o facto de o nome ser publicitado e se dizer que até se tem esse negócio atrai benefícios para o seu próprio empreendimento, a sua própria empresa."

Maria Manuel Vieira apercebeu-se também que criaram uma grelha de apreciação daquilo que é a boa e a má forma de se apresentar nestas revistas. "A má forma é aquela que eles reconhecem como não sendo a sua, mas sim a dos novos ricos. O aparecimento em qualquer tipo de revista, sem qualquer tipo de critério e de uma forma puramente exibicionista: exibir o dinheiro, a casa, a riqueza de uma forma ostentatória."

"Quanto à boa maneira, que é a deles, é apresentar-se de uma forma discreta e não em todo ou qualquer sítio. Algumas revistas desse género merecem mais consideração do que outras, sendo que estas últimas são as que estão excessivamente massificadas, onde aparece o Zé Ninguém, e aí não é de bom tom aparecer ao lado até de pessoas que escapam a este espaço social das classes superiores, pode ser uma vedeta da televisão."

O Olhar da Socióloga

Segunda-feira, 4 de Junho de 2001

Não foi fácil encontrar um sociólogo com trabalho publicado que se tivesse dedicado a estudar o fenómeno das revistas "del corazón". Encontrámos um que andou lá perto e trabalha na área da sociologia da educação: Maria Manuel Vieira, da Faculdade de Ciências de Lisboa. No início da década de 90 constatou que, em termos sociológicos, as classes superiores estavam por estudar em Portugal. Por outro lado, foi-se confrontando nas salas de espera de consultórios médicos com o fenómeno das revistas cor-de-rosa. Por isso, para a sua tese, quis saber de que forma é que desde o início da década de 70 até à década de 90 o espaço social das classes superiores se tinha alterado, reconvertido e recomposto. E estudou a importância nesse processo do sistema escolar e da posse de diplomas académicos.

Quis perceber, por exemplo, como é que os que eram a classe superior antes do 25 de Abril viveram essa situação. Ou melhor, se sofreram e se recuperaram. Estudou principalmente a região Sul - onde com o 25 de Abril foi mais posta em causa a antiga estrutura de património.

"No final da década de 70, depois do 25 de Abril de 74, a sociedade portuguesa estava em rápida transformação. Esta tinha a ver com o declínio progressivo da actividade agrícola como base de sustentação de um património das famílias; e também com o fenómeno das classes médias, aqueles que acabavam a faculdade e que tinham um estatuto diferente", explica Maria Manuel Vieira, que detectou a existência de dois grandes grupos sociais nessa época. "O grupo de status herdado, composto pelas famílias que há várias gerações faziam parte desse espaço social. E um outro grupo de status, a que alguns autores chamam novos-ricos, a que chamei o grupo do património adquirido".

Porque, tal como a socióloga explica, uma coisa é ser-se herdeiro, com tudo o que isso implica, "desde que se nasce já se está no interior desse espaço, de uma forma natural, como se já fizesse parte da pele" e outra coisa é "ter-se nascido numa outra classe social e através de algo que foi adquirido pelo próprio, através de um esforço de trabalho inaudito, se acede a um conjunto de posições sociais que depois podem eventualmente fazer com que se chegue àquele espaço". Isto pode acontecer ou pela via dos negócios bem sucedidos ou pela via da acumulação de capital escolar (através do estudo e da obtenção de títulos académicos). Ou pela via do recasamento. "Entra-se para esta classe social através de um segundo ou terceiro casamento, pois depois do 25 de Abril era possível o divórcio. E por essa via podem entrar pessoas que não fazem parte desse status."

"Com o 25 de Abril, surgem as nacionalizações e o património que sustentava estas famílias de status herdado é posto em causa. Perdem o seu antigo poder simbólico e muitas delas exilam-se durante alguns anos. Esse espaço começa a ser rapidamente invadido por novos protagonistas que anteriormente pertenciam à classe média e com a revolução puderam aceder ao campo político, que permite mobilidade social ascendente", continua Maria Manuel Vieira.

Por outro lado, no final da década de 80 criam-se as condições de dinamismo económico para que regressem os antigos membros dessa tal classe dominante. "Esses antigos membros de antigas dinastias - quer ligadas ao sector primário, quer ao mundo industrial, quer ao sector financeiro - regressam para condições completamente distintas, pois a sociedade portuguesa já não era a mesma que eles tinham abandonado". Tinha havido profundas alterações: "uma maior elevação dos níveis de escolaridade, um crescimento da classe média (cada vez mais sediada em meios urbanos). As grandes apostas em termos de investimento já não iam tanto para o sector industrial, como era outrora a tradição, mas orientavam-se para o sector dos serviços, ao nível da banca, das promoções imobiliárias, das seguradoras, ao nível do turismo."

"Entretanto uma série de outros já cá estavam instalados, os tais novos ricos ou os que foram particularmente bem sucedidos neste período em que se abriram inúmeras possibilidades. Uma classe média com pretensões de mobilidade social ascendente e que lhes fazia concorrência."

Quando regressam a Portugal, a sociedade está mais urbanizada, mais numerosa, e os reconhecimentos sociais já não são pessoais. Por isso sentem uma necessidade acrescida de manterem vivo o poder simbólico de outrora. "Face a essa nova concorrência há uma necessidade de alguma visibilidade pública - não tanto para os pares, porque este grupo continua a reconhecer quem são os seus membros -, mas sobretudo para dar-se a conhecer ao público anónimo, sobretudo à classe média."

Nas entrevistas que fez para a sua tese, deu-se conta de que dentro deste grupo havia algumas divisões relativamente à exposição mediática. "Uns acham que não se deve aparecer porque o seu poder simbólico é de tal forma natural que não precisa de ser exibido constantemente. Consideram de muito mau gosto estar a exibir-se essa condição, porque nunca precisaram de se exibir anteriormente, isto é antes do 25 de Abril."

Depois existem outros que "reconhecem que essa publicitação do próprio e do nome da família pode ter vantagens múltiplas, até em termos económicos. Pode ser reconvertida em outro tipo de bens que se podem adquirir por essa via. Estou a lembrar-me, por exemplo, que quem tinha antigos patrimónios familiares e posse de terra teve de reconverter o património e investir na reconversão dos antigos palácios e quintas para o turismo de habitação, para organização de eventos, etc.. E o facto de o nome ser publicitado e se dizer que até se tem esse negócio atrai benefícios para o seu próprio empreendimento, a sua própria empresa."

Maria Manuel Vieira apercebeu-se também que criaram uma grelha de apreciação daquilo que é a boa e a má forma de se apresentar nestas revistas. "A má forma é aquela que eles reconhecem como não sendo a sua, mas sim a dos novos ricos. O aparecimento em qualquer tipo de revista, sem qualquer tipo de critério e de uma forma puramente exibicionista: exibir o dinheiro, a casa, a riqueza de uma forma ostentatória."

"Quanto à boa maneira, que é a deles, é apresentar-se de uma forma discreta e não em todo ou qualquer sítio. Algumas revistas desse género merecem mais consideração do que outras, sendo que estas últimas são as que estão excessivamente massificadas, onde aparece o Zé Ninguém, e aí não é de bom tom aparecer ao lado até de pessoas que escapam a este espaço social das classes superiores, pode ser uma vedeta da televisão."

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