Do entusiasmo ao funcionalismo

13-11-2000
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Deputados nem tinham tempo para cortar o cabelo

Do Entusiasmo ao Funcionalismo

Segunda-feira, 13 de Novembro de 2000 "Em todos os processos há um estado nascente - o 25 de Abril, quando duas pessoas se apaixonam... -, depois há um período conturbado e conflituoso e a seguir entra-se na fase administrativa, menos épica, menos gloriosa." É assim que Helena Roseta vê as diferenças entre o Parlamento de hoje e a Assembleia Constituinte. Dos sete constituintes que actualmente são deputados na AR, nenhum esteve em São Bento na totalidade destes 25 anos. Quem esteve mais tempo foi Manuel Alegre, que só saiu por breves meses para ser secretário de Estado da Comunicação Social. Outros, como Helena Roseta e Mota Amaral, permaneceram largos anos fora de São Bento, tendo desempenhado funções autárquicas e governativas. Mas, apesar de todas as diferenças, as opiniões sobre a vida parlamentar nestes 25 anos coincidem. Fruto de um tempo muito especial, a Constituinte vivia do entusiasmo e do empenho dos seus deputados, que sentiam estar a cumprir um dever patriótico. "Era um estado de emergência. Muitas pessoas entenderam que aquilo era um dever cívico de emergência a que não podiam faltar", diz Pedro Roseta. E lembra o período em que nem sequer tinha tempo para cortar o cabelo. Entre os plenários, as reuniões das comissões, por onde passava grande parte do trabalho de consenso entre as várias propostas de Constituição, as reuniões praticamente diárias de cada grupo parlamentar, as reuniões partidárias e o combate de rua, em manifestações e comícios, os deputados trabalhavam em "super super full time". "Era impensável o deputado que não se consagrasse totalmente à vida de militante e deputado. Deputado em ''part time'' era impensável", acrescenta António Reis. Observa que todos os dias se dividiam entre "o combate político, no âmbito de uma revolução em que tudo pode acontecer, e a vida de deputado consagrada à elaboração de uma Constituição que [sentiam] ameaçada todos os dias". Segundo Reis, havia um grande espírito de partido em cada grupo parlamentar. "A disciplina não era preciso ser lembrada - era autoconsentida, fácil e espontânea. Era um clima completamente diferente deste", prossegue. Para o seu colega de bancada Medeiros Ferreira, os deputados eram, há 25 anos, "muito mais políticos". "Foi o momento político fundador e hoje os trabalhos têm uma grande componente técnico-jurídica", diz Medeiros Ferreira. Basílio Horta vai mais longe, considerando que hoje o trabalho parlamentar é "péssimo e desinteressante". "Qualquer dia teremos apenas o funcionalismo", lamenta. Este parlamentar não esquece as "pessoas com brilho próprio, que levavam os partidos atrás delas". "Os líderes eram notáveis, o idealismo era muito maior e a coragem também", corrobora Manuel Alegre. "Não havia o aparelhismo que há agora." "O tempo era outro", reflecte Mota Amaral. "Procurava-se ter aqui pessoas preparadas para debates decisivos. Os partidos procuravam assegurar representantes de todas as classes." Vindo da Assembleia Nacional, Mota Amaral dispõe também desse termo de comparação: "A Assembleia Nacional era bastante sonolenta na sua estrutura, na sua forma de trabalhar. Desde logo pela inexistência de pluralismo. Isto, apesar de o grupo liberal ter introduzido sementes de mudança." Perdeu-se entretanto a diversidade de que Mota Amaral fala, não só de profissões, que punha operários ao lado de escritores, advogados, economistas, engenheiros, professores, mas também geográfica. "Uns foram-se embora, por terem mais que fazer, outros deixaram de ser convidados. As listas passaram a ser feitas mais por jogos internos", afirma Helena Roseta, para quem "ser deputado era um dever patriótico". "Hoje é ter uma função que está no último lugar das sondagens." Mas nem por isso desiste: "Continuo a achar que é preciso resistir." Se há 25 anos resistia ao "desastre iminente" que todos pressentiam, hoje estar em São Bento é resistir a quê? "É resistir à deriva neoliberal e à transformação de todos os valores num único e exclusivo chamado ''dinheiro''. E o Parlamento pode ser um bom sítio para resistir a essa deriva", responde a deputada. E.L. OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE Ensaio para o golpe

No rescaldo do cerco

"Constituição foi o melhor do PREC"

Do entusiasmo ao funcionalismo

Estórias da História

Entre dramas e risos

Citações

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