Prefácio

18-10-2000
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Prefácio

Naquele Tempo

por António Barreto

Creio que foi Berenice Abbott que lhe chamou «straight photography»: fotografia directa, pura, simples, autêntica, sem maneirismos, sem distorções, sem efeitos de câmara, sem retoques, sem arranjos. É essa uma das principais qualidades de Alfredo Cunha. Não quer isto dizer que as suas fotografias sejam «a verdade»: essa discussão está ultrapassada. Cada fotografia, por mais autêntica, é sempre o olhar do fotógrafo, a sua visão das coisas, a sua interpretação. Mas, nesta «straight photography», há uma espécie de naturalidade à dimensão do olhar humano, nem a mais, nem a menos do que vemos, como vemos. As fotografias de Alfredo Cunha não são daquelas, como diria Susan Sontag, que constituem um «tratamento de beleza» aplicado ao real, às coisas e às pessoas. São fotografias de um real imediato.

Poder-se-á dizer que o estilo resulta da sua profissão, fotojornalista. Trata-se do contrário. Ele faz jornalismo fotográfico, porque esta profissão é a que melhor se adequa ao seu estilo, à sua maneira de olhar o mundo. Há, no seu modo de ser, como que uma espécie de timidez, que o leva a fazer fotografia não intrusiva, uma das maiores dificuldades do ofício. Não conheço fotografia sua onde os sujeitos estejam pouco à vontade, furiosos por estarem a ser fotografados, envergonhados, com o sentimento de estarem a ser violados na sua privacidade. Os que olham para a sua câmara, com mais ou menos prazer, com ou sem indiferença, não mostram hostilidade ao fotógrafo. E os que não olham para a câmara, não parece, pelo que estão a fazer, que reagiriam contra o que os observa. Não conheço fotografia sua que revele uma intimidade secreta, algo que ninguém gostaria que se soubesse ou visse. É difícil, sendo-se fotógrafo, cultivar sem concessões este respeito pelos outros. Muito mais ainda, sendo-se fotojornalista, profissão em que o «voyeurisme» pode ser elevado ao estatuto de virtude, como acontece tantas vezes com as revistas e os jornais sensacionalistas, como praticam tão obsessivamente muitos jornalistas nas televisões contemporâneas. Nas suas fotografias, Alfredo Cunha revela uma humanidade quase inocente, uma comovente igualdade perante os outros. Não se consegue perceber que o fotógrafo ganha a sua vida à custa dos outros. Vejam-se as suas fotografias de crianças, ou aquelas em que os sujeitos estão de costas: são a demonstração exacta da ternura tímida que o habita.

O jornalista não parte do princípio que tem direitos sobre os outros, nem sobre os seus sentimentos, nem sobre as suas obras. Ele sabe o que é o «direito à informação», mas não o reduz aos seus próprios direitos, que considera limitados pelos seus deveres. Não conheço fotografia sua na qual a dor, o desespero, a cólera, a volúpia ou a intimidade sejam explorados. E, no entanto, as suas fotografias são capazes de nos revelar as pessoas, os sentimentos, as situações. Tanto mais que Alfredo Cunha tem simpatias humanas, culturais e políticas. Fotografa os poderosos por profissão, os sem poder por vocação. Visivelmente, prefere os pobres, os que trabalham, os que sofrem. Nestas condições, é muito difícil não fazer fotografia empenhada, «engagé», com função e utilidade políticas. Ele consegue-o. Fotografa um lado da condição humana, mas fá-lo sem pragmatismo, sem intuito propagandístico, sem outra intenção que não seja mostrar-nos o que ele vê, como ele vê, o que ele prefere.

Alfredo Cunha nasceu em 1953, em Celorico da Beira. Tem 5 irmãos. É filho e neto de fotógrafos da Guarda e de Celorico da Beira. Seu pai teve lojas em várias vilas das Beiras. Como também teve uma no Brasil, entre 1957 e 1960.

Seu avô, Alfredo Cunha, era ourives, até ao dia em que conheceu um fotógrafo ambulante espanhol. Foi um encontro fulminante: deixou a ourivesaria e transformou-se em fotógrafo, ofício que legaria a duas gerações. O pai, António Cunha, teve os rudimentos em casa, mas depois foi aprender com quem sabia. Durante os anos trinta e quarenta, trabalhou no Porto com Domingos Alvão e, em Lisboa, com Marc Lenoir. Regressou depois a Celorico, onde abriu o estúdio «Cunha fotógrafo»: casa e atelier juntos, como era frequente naqueles tempos. Foi aí que Alfredo Cunha nasceu, viveu parte da juventude e aprendeu a trabalhar com fotografia. Não começou, como quase toda a gente, com uma câmara: iniciou-se no laboratório, a revelar e imprimir. Aprendeu o ofício como quem vive, como tinha aprendido a gatinhar. Foi tudo tão natural, «que não se lembra de jamais ter aprendido a imprimir ou a tirar fotografias». Sempre fez, nunca aprendeu. Além do laboratório, ia atrás do Pai, fazer as reportagens dos casamentos, itinerário obrigatório. Quando miúdo, não fotografava: transportava o equipamento, de boda em baptizado, e carregava as máquinas que o Pai utilizava. No atelier, começou cedo: aos sete anos já imprimia as fotos «tipo passe». Era obrigado a trabalhar de pé, em cima de um caixote. Não chegava à mesa. Na escola, os colegas metiam-se com ele por ter sempre as unhas pretas: restos de revelador que não saíam nem com pedra-pomes. Entre Celorico, Mangualde e Guarda, foi vivendo. Depois da escola industrial, veio para Lisboa, com o Pai que, doente, tinha abandonado a fotografia.

Esta infância não foi uma delicada iniciação à arte. Pelo contrário. Alfredo chegou a odiar a fotografia. Entre os 10 e os 16 anos, foi o seu martírio. Escravatura? Revolta contra o pai? Trabalho infantil? Tudo poderá ser dito. As relações entre os dois eram tensas, por vezes violentas. O pai mandava-o trabalhar, ele insistia em recusar, ao que se seguia, regularmente, uma enorme tareia. Até que se chegou a um armistício: durante o dia, Alfredo fazia o que queria. À noite, das seis à meia-noite, trabalhava no atelier, imprimia os negativos que o pai tinha feito durante o dia.

Não acredito que a repressão seja um bom método para aprender o que quer que seja. Às vezes, resulta. Melhor: por vezes, apesar da violência, aprende-se. A verdade é que foi ali, no laboratório, que treinou a rebeldia, aprendeu as técnicas de base e descobriu a vocação. Revelar e imprimir são, aliás, os seus primeiros talentos. Ainda hoje, a sua impressão tem marca. Como é sabido, o produto final depende tanto do olhar, como da câmara e do laboratório. Nem todos os fotógrafos conseguem esse equilíbrio e, frequentemente, recorrem a impressores de qualidade. Com Alfredo Cunha, não é preciso.

As suas primeiras tarefas consistiam em lavar as provas, a fim de retirar o hipossulfito. Se o trabalho não fosse feito impecavelmente, a fotografia corria riscos, como se vê nas gavetas de velhas fotos de família: de vez em quando, lá aparece uma completamente «fanée», com manchas de acidez e zonas a desaparecer. Em geral, foram fotografias mal lavadas e mal fixadas. Alfredo lavava as suas. Quando o Pai chegava, vinha o momento da prova, no sentido literal da palavra: passava o dedo nas fotos e lambia. Se soubesse a hipossulfito, havia bofetão...

Chegado a Lisboa, no fim dos anos sessenta, começa a trabalhar aqui e ali. O primeiro emprego digno desse nome é numa agência de publicidade, Praxis de sua graça. Faz de tudo, mas já na fotografia: paginação, revelação, impressão. Não chegou a um ano: quis ser « hippie». Junta-se a outros, vai para a estrada. Passa um ano a viajar pela Europa, a fotografar despreocupadamente. A França e a Suécia marcam-no. O regresso a Portugal é momento de viragem: percebeu, porque comparou, o atraso português. Sentiu, como nunca tinha reparado, o que era a pobreza. Esta revelação marcará o seu olhar sobre a sociedade.

Recomeça vida, desta vez num laboratório comercial da Amadora. Ao mesmo tempo, faz fotografias para o Noticias da Amadora. O fotojornalismo, a sua nova e definitiva profissão, começa. Com um condimento especial: o Notícias da Amadora é quase uma célula do Partido Comunista. De repente, sem ter percebido como, sente que está integrado no trabalho do partido, de que nunca foi membro formal. O director do jornal chama-se Carlos Carvalhas. Faz o seu primeiro livro, que é ao mesmo tempo uma reportagem e um inquérito: «Raízes de uma força», fotografias dele e texto de Helena Neves. O livro será editado pelo N.A., logo apreendido pela PIDE e proibido pela Censura. O tema do livro era a criança em Portugal e o trabalho infantil!

Em 1972, faz a sua primeira exposição, na galeria da livraria Opinião, mal-afamada pelas iniciativas de oposição. Em todos os seus gestos, se sente que já escolheu o seu lado: o da liberdade. No mesmo ano, entra « devagarinho» para a escola de jornalismo e de fotojornalismo que é o grupo do Século. Para esse mesmo grupo onde, setenta anos antes, tinha entrado o primeiro e maior fotojornalista português, Joshua Benoliel. Alfredo era amigo de Eduardo Gageiro, chefe de fotografia do Século Ilustrado. Vai entrando, pela sua mão. No Século propriamente dito, a chefe de fotografia era Beatriz Ferreira, uma dos primeiras mulheres fotógrafas e jornalistas portuguesas. Um de esquerda, a outra de direita: ambos bons profissionais. Com ambos se entende bem. Gageiro, em particular, gostava das suas fotografias. Preparam juntos o livro «Gente», um álbum de Gageiro que é um marco.

São tempos em que não há ainda um fotojornalismo português, mas já há fotojornalistas que vão penosamente, mas com entusiasmo, criando os contornos e as tradições de uma profissão. Nos jornais, praticamente não existem departamentos de fotografia. Esta serve apenas para ilustrar vagamente os textos. Nunca vem assinada. Os fotógrafos, para todos os efeitos, não existem. São uma espécie de «lumpen» da profissão. As suas imagens podem ser cortadas, re-enquadradas, retocadas, republicadas, vendidas... Em poucas palavras, não são obra de autor. Só muito mais tarde, talvez a partir da década de oitenta, é que os fotógrafos começam a ser reconhecidos como deve ser. O que aliás também aconteceu noutros países, embora um pouco antes. Entre nós, depois do Século, veio o Expresso nos anos setenta, logo a seguir o Independente e, nos anos noventa, o Público, que produz uma reviravolta no sector e quase obriga todos os jornais a tratarem desta arte com mais respeito.

Em finais de 1972, Alfredo Cunha entra para os quadros do Século Ilustrado. Aqui vai conhecer melhor o meio profissional, com jornalistas que já têm nome feito: Gageiro, Maria Antónia Palla, Rogério Petinga, Francisco Mata, Manuel Lima... Todos do «reviralho»! O lugar que vai ocupar neste magazine é de responsabilidade: substitui, não sem angústia, Augusto Cabrita, outro dos nomes fundadores do fotojornalismo português contemporâneo.

É nesta altura que define melhor o seu olhar. «Sente» que a fotografia tem, ou pode ter, «significado social e político». E começa inevitavelmente a ter problemas. A sua primeira reportagem proibida pela Censura foi feita no Hospital do Rego. Ficou furioso. «Não compreendia porquê»! Terá tempo, em Portugal e noutros países, para perceber que o olhar pode ser tão subversivo, tão rebelde, tão livre, quanto a palavra. Mas este seu « engagement», esta sua escolha do lado da rua por onde quer passar, tem de ser qualificado. Ele não é um fotógrafo que louva partidos ou causas; não quer ser um mercenário da fotografia de propaganda; não é um «aparatchik» da câmara. As suas escolhas não o impedem de ser um repórter consciencioso, tão isento quanto possível, tão exaustivo quanto deve ser. Escolher, no seu caso, não significou submeter-se.

Em princípios de 1974, a sua aprendizagem de jornalista está feita. Vivem-se tempos fabulosos, durante os quais a foto e a televisão, por causa da guerra do Vietname, adquirem uma importância e uma força até então desconhecidas. Os fotógrafos do Vietname são os seus heróis. No laboratório, é mestre. Tem vinte anos e só pensa numa coisa: fugir à guerra colonial. No primeiro trimestre desse ano, as decisões estão tomadas. Dentro de pouco tempo, irá para a Europa. Talvez França.

No dia 25 de Abril de 1974, à noite, está em casa, a ouvir os «Doors». Pela rádio e por um telefonema, é informado de que «algo se passa». Da Amadora, onde vive, salta para o Século. Está lá toda a gente. Ponderam. Uns querem sair para a rua. Outros querem ficar, à espera, para ver de que se trata. Discutem. As decisões correm o risco de durar horas. Às seis da manhã, sem esperar por instruções ou consensos, dirige-se directamente para a Praça do Comércio. Ao chegar, encontra um fotógrafo. Não podia deixar de ser: era o Eduardo Gageiro, ainda chefe de fotografia do Século, mas que não tinha ficado a meditar, enquanto a história avançava, lá fora, a passos largos.

O abraço é rápido. Não há tempo. Dividem, entre si, a Baixa em sectores. Cada um fica com os seus. Todos os caminhos vão dar ao Carmo, através do Chiado. É lá que se encontram de novo. Apesar da alegria, tinham medo. Havia tensão no ar, máquinas de guerra nas ruas, as vagas de povo alegre ainda não tinham chegado. Nas fotos, do que será a sua primeira grande reportagem, percebe-se a madrugada, o frio no ar, o receio nas almas. De certos sítios, chegam ruídos de tiros. Gageiro diz a Alfredo: «Se houver tiros, foge!». Apesar disso, chegam aos sítios mais quentes. Na António Maria Cardoso, quando se prepara para tirar umas fotos, um Pide diz-lhe secamente, sem levantar a voz: «Se tiras essa foto, levas um tiro... Foi-se, cabisbaixo.

A revolução de Abril oferece-lhe um recomeço da sua profissão. Vai ocupar-se, em dedicação exclusiva, do «processo revolucionário em curso», do PREC, como ainda hoje diz. Ocupações de terras, manifestações, comícios, assembleias, reuniões do MFA, conferências de imprensa, golpes e contra-golpes, tudo vai fotografar. Aqueles três anos valem um curso superior. Ao lado das revoluções, cá dentro, vai seguir descolonização em África: Guiné, S. Tomé, Angola e Moçambique. Esteve em todas. Estava presente nas cerimónias da independência. Esteve no dia do içar da bandeira de cada uma delas. «Do içar, não!», corrige-me, «do arrear da bandeira...!

É nessas cerimónias, no momento em que aquele Portugal termina, que tem um choque. «Esses momentos tocaram nas minhas convicções de esquerda e de anti-colonialista. Até então, nunca tinha tido dúvidas tinha tido dúvidas sobre a independência desses povos. Ainda hoje não tenho. Mas aquela separação afligiu-me. . . » . É de uma dessas viagens que nos trouxe uma das suas mais fabulosas fotografias: as estátuas dos descobridores portugueses, desfeitas em pedaços, espalhadas pelo chão. «Fiquei arrepiado, quando vi aquelas estátuas todas desmontadas. . . ». Não creio que, das suas fotos, se possa dizer que influenciaram os acontecimentos, ou mudaram o curso das coisas. Mas, para muita gente, com ou sem conhecimento da respectiva autoria, as imagens da descolonização são as fotografias dele. É o meu caso, muito antes de o conhecer.

A revolução de Abril foi fantástica para a fotografia. Não só pela liberdade e pela explosão social, mas também porque se vivia, no mundo, um momento excepcional de desenvolvimento das artes visuais na imprensa. Ainda se ouvia a «Grândola» e já tinham chegado a Portugal fotojornalistas do mundo inteiro, alguns dos quais estavam a dar os primeiros passos na profissão e viriam a ser dos mais famosos, como Sebastião Salgado e Guy Le Querrec. Da revolução portuguesa, sabe-se quase tudo pela fotografia. E, como sempre, até se sabe o que não é verdade. Como, por exemplo, uma das mais famosas fotografias de 1974, que ganhou os prémios Pullitzer e da World Press Photo: o agente da Pide, aterrado, ar miserável, de gabardina branca, cercado por soldados de camuflado, com espingardas apontadas... Magnífica fotografia! Só que... o homem não era agente da Pide, nunca tinha sido, estava perdido de medo por julgarem que era... O que só se soube anos depois!

Em 1977, com a revolução acabada e o Século e o Século Ilustrado encerrados, começam os anos de chumbo de Alfredo Cunha. Transita para a ANOP, da ANOP para a NP, desta para a LUSA. Faz fotografia oficiosa e de agência. Foram «dez anos perdidos». Fotografou Presidentes da República, Primeiros Ministros, Ministros, Secretários de Estado... Fotografou conferências de imprensa atrás de conferências de imprensa... Fotografou inaugurações e visitas de Estado. Fez fotografia a metro, fotografia de encomenda, de que não guarda sequer arquivo: as agências ficam com tudo, não devolvem, não deixam os autores assinar. É assim que sabe, porque já viu, que tem fotografias suas publicadas no mundo inteiro, nos mais imprevisíveis países, em magazines ou jornais, mas sem assinatura, sem sequer o seu conhecimento. Apesar de não gostar e de, hoje, lamentar, sente que, com a rotina, «fez a mão». Um fotojornalista não pode ter sempre uma revolução a seu gosto, um país inteiro agitado diante da sua câmara.

Ao lado da agência, abre novas perspectivas de trabalho. Ainda mais mercenárias: capas de discos, publicidade, moda, diaporamas, partidos políticos... Quem lhe encomenda e paga obterá os seus serviços. Tinha a ANOP ou a LUSA como base e escritório, cumpria mais ou menos as suas obrigações, fazia, por fora, o mais que podia. Sobretudo para ganhar dinheiro. O equipamento de fotografia pode ser mais caro do que amantes ou automóveis. Alfredo precisava de quase tudo. Hoje, quando o vejo trabalhar, nunca deixo de reparar na sua parafernália, que vale muitos milhares de contos. Cada vez que o vejo, reparo em surpresas. Leicas, tem-nas quase todas, da M.3 à M.6, passando por umas da série R, cada modelo em vários exemplares. Nikons são várias, da F e da F. 1, às duas F.4. Acrescentem-se a essas as Pentax, Hasselblad, Rolleiflex e duas Contax G.1, acabadinhas de sair, e temos diante de nós uma verdadeira montra das mais caras câmaras. Muitas delas vêm daquele período em que a fotografia perdia um pouco, mas ganhava para isso tudo.

Mesmo este período teve as suas alegrias. A primeira, essencial, foi a sua associação com Luís Vasconcelos. Este é, hoje, um dos melhores fotojornalistas portugueses. Começaram a trabalhar juntos. Fizeram-se amigos. São tempestuosamente íntimos, como devem ser os amigos. São os melhores juízes um do outro. Criticam-se com secura. Já os ouvi dizerem-se, um ao outro, as coisas mais desagradáveis. Mas é assim que conseguem trabalhar em equipa. É assim que esperam melhorar e se esforçam por não ser «fáceis» e «complacentes», dois dos piores vícios de um qualquer fotógrafo. A associação entre estes homens foi muito longe. Tão longe que conseguiram fazer, em comum, o que sempre pensei ser o mais solitário de todos os ofícios. Como têm arquivos em conjunto, quando não assinam logo os seus negativos, há momentos em que não se consegue distinguir quem fez o quê. Quando tive entre mãos um projecto de livro, da autoria de ambos, sobre os «Arcos» de Lisboa, tentei distinguir. Na maior parte dos casos, falhei. Curiosamente, eles também: já não conseguiam assinar as respectivas imagens. O livro sairia com autoria conjunta, a fazer lembrar os raríssimos casos de grandes fotógrafos que fizeram autênticas parcerias: Hill e Adamson, Mayer e Pierson, os irmãos Seeberger...

Alfredo Cunha e Luís Vasconcelos trabalham ambos nas agências. Alfredo tinha vindo do Século, fechado, Vasconcelos vinha do Jornal Novo, falido. Ambos tentam enriquecer com a publicidade e com o que lhes vai aparecendo. Fotografam tudo, de um lado e de outro, à esquerda e à direita, no sentido literal e figurado. «Éramos autênticas putas, facturávamos a todos os partidos». Eram ambos de esquerda, hoje são ambos de esquerda, mas serviço era serviço. Tinham de ganhar dinheiro, precisavam de mostrar o que valiam.

Data desta altura a aproximação, também conjunta, a Mário Soares. Quando este viu a fotografia que tinham feito para a campanha de Diogo Freitas do Amaral, ficou com ciúmes. Quis logo saber quem eram. E pediu-lhes para serem eles os fotógrafos da sua campanha. Aceitaram. Nesse ano, os principais cartazes dos dois candidatos eram da sua lavra. Como, anos antes, tinham sido os de Eanes e Soares Carneiro! Uma vez mais, ainda hoje é difícil saber exactamente qual dos dois fez quem. Nessa qualidade de dupla, já publicaram livros em conjunto: «Jardins de Lisboa», «Presidência Aberta», «Na Estrada, com Soares» e «Sá Carneiro». Em todos, a mesma cumplicidade.

No fim dos anos oitenta, Alfredo Cunha está indeciso. Cansado, não quer prosseguir na mesma via. Mas Portugal é pequeno. Como é o seu mercado. Como são os seus jornais. O futuro é inseguro. Por encomenda da LUSA, vai ao Tarrafal, Cabo Verde, fazer uma reportagem. De regresso, o seu trabalho é vendido ao Expresso. Um dia, à tarde, vai à Duque de Palmela, trabalhar com os redactores, a fim de ajudar na paginação. Chegou, sem prevenir, a meio de uma reunião que se pretendia clandestina. Vicente Jorge Silva e os seus amigos preparavam o Público. A pergunta veio de chofre: «Queres vir, tu e o Luís, para o Público?». Quiseram. Deram um novo sentido à utilização da fotografia nos jornais. Têm hoje talvez a melhor equipa de fotojornalismo. E o Público fez da fotografia uma expressão autónoma e assinada.

Hoje, o fotojornalismo existe em Portugal. A dimensão é pequena, a diversidade é reduzida, a obra não é imensa. Mas há profissionais de mérito e rigor. Entre os seus preferidos, lista que aliás subscrevo, contam-se: Luís Vasconcelos, Rui Ochoa, António Pedro Ferreira, Daniel Rocha, Acácio Franco, José Antunes, Inês Gonçalves, Clara Azevedo, Bruno Portela, Luísa Ferreira e Luís Ramos são alguns dos nomes conhecidos e que dão, com Alfredo Cunha, um sentido forte ao jornalismo fotográfico contemporâneo.

Apesar do seu impressionante equipamento, Alfredo Cunha mantém-se, em grande parte, um artesão. A aprendizagem da fotografia aos sete anos e os bofetões do pai devem ter marcado um género. Trabalha no laboratório do Público, certamente o mais apetrechado do país. Nada falta, nem máquinas nem espaço. A cor separada do preto e branco; os secos dos molhados; o controlo de luz; as células de medição; os melhores ampliadores; um arquivo pequeno, mas impecável; meios de transmissão de fotografias os mais sofisticados do mundo... No meio disto tudo, apesar de familiar com a tecnologia moderna, vagueia como desenterrado de outro século. Por onde passa, deixa desordem: nas mesas, no laboratório e nos armários. Trabalha de pé, nas bancadas de impressão e nos tanques de revelação, a assobiar. Nos piores momentos, fala com as fotografias. Embora tenha, diante do seu nariz, o que há de mais adequado, aspiradores e secadores a ar comprimido, vai pelo mais prático, pecado maior de qualquer detentor de aparelhagem cara: limpa as ópticas e os filtros à fralda da camisa, a mesma na qual limpa também as objectivas das câmaras. Ainda hoje lambe as provas, a fim de ver se estão bem lavadas. De cada fotografia, para obter uma prova, imprime 4, 6, 10 cópias, as que forem precisas, até encontrar o equilíbrio. Na bancada, células fotoeléctricas permitir-lhe-iam calcular os tempos com precisão; no ampliador, moderníssimo e sofisticado, novos dispositivos se lhe oferecem para regular tudo do mais fino modo. Apesar disso, parece ignorar o arsenal. O faro e a experiência ditam a lei. Utiliza as mãos, como janelas improvisadas, para aumentar e diminuir a luz e a definição dos seus objectos. Os tempos de exposição, revelação, fixação e secagem são todos calculados «a olho». Em geral, bate certo. E um bom selvagem, um grande artesão, numa sala do século XXI. É um dos melhores impressores de fotografia portugueses. E também neste ofício, ou neste capítulo do ofício de fotógrafo, utiliza o seu maior trunfo: a intuição.

Com a câmara na mão, como é visível nas suas fotografias, também é a intuição que comanda. Já o vi fotografar em situações muito diferentes. Por exemplo, em ocasiões oficiais, durante as quais eu estava do lado de lá da barricada, isto é, fazia parte dos fotografáveis. Vi-o, por acaso, no meio de manifestações, comícios, desfiles e festas. Vi-o a fazer retratos de outros, anónimos ou personalidades. Vi-o a sós, a fotografar-me. Vejo-o, frequentemente, nos noticiários de televisão, no meio de acontecimentos de toda a ordem. Calmo, fotografa muito devagar, mas não é poupado: «bate dezenas de chapas». Com uma enorme discrição, vai fotografando. Nunca se sente a intrusão. Nunca se sente a agressão. Trabalha com o recato e o vagar dos que repetem, profissionalmente, os mesmos gestos durante anos a fio. Muda de câmara e de objectivas sem que se dê conta: os aparelhos parecem fazer parte dele. É o contrário daqueles fotógrafos que precisam de horas para se instalar, preparar a luz, rever o «fundo», testar as posições, repetir as medidas, montar o cenário.

A intuição não substitui cultura e técnica. Acrescenta-se. Fazer boa fotografia de jornalismo exige mais do que olhar. É nesse sentido que digo que ver é difícil. E fotografar é dificílimo. Há milhares de milhões de fotos, e tão poucas boas! Apesar de conhecer um fotógrafo profissional analfabeto, há trinta anos a trabalhar para a imprensa lisboeta, saber ver não é a mesma coisa do que saber ler. Para lá da informação, sobretudo em jornalismo, a intuição é indispensável.

Não creio que, antes de ir para o terreno, tenha ideias sobre as fotografias que quer tirar. Não me parece, pelas centenas de imagens suas que conheço, que as suas fotografias sejam previstas, compostas mentalmente. Vai e logo se vê. Não sei se detesta a fotografia «conceptual», a fotografia abstracta, a imagem erudita composta, o simbolismo rebuscado. Imagino que as detesta, pela simples razão que essas e outras escolas lhe são absolutamente estranhas. Uma pedra, meia nuvem, um quinto de cadeira, dois botões de casaco, um clip de escritório, um cinzeiro sujo, uma mão repetida doze vezes, um terço de aba de chapéu: eis imagens que não sairão das câmaras de Alfredo Cunha. Se os «ídolos» reflectem o carácter de alguém, fico rapidamente esclarecido: os fotógrafos preferidos de Alfredo Cunha são Eugene W. Smith, Cartier-Bresson, Bill Brandt, Margaret Bourke White... Fizeram todos jornalismo.

O facto de não ser intruso pode resultar de uma opção de vida. Mas tenho a certeza de que isso também resulta da sua timidez. Creio que é esta que está na origem de uma sua preferência pelos miúdos: pobres ou ricos, a brincar, a trabalhar ou a sofrer em hospitais, são algumas das suas imagens favoritas. Quando são fotografados, nos seus olhos há inocência e curiosidade, prazer e estranheza. Ainda não chegaram à idade da verdadeira desconfiança, nem à consciência da intimidade. Tímido ou não, é prático e sensato: «Quando sinto problemas de pudor ou atentado à privacidade, não fico a tremer, nem me excito especialmente com a possibilidade da foto interdita. Não fotografo, ponto final»!

Como faz muita reportagem política, já lhe aconteceu sentir reacções estranhas. Há quem não goste de ser fotografado, em qualquer situação, ainda mais em acontecimentos políticos ou sindicais. Alfredo Cunha sabe isso e age com enorme cautela, o que, no seu caso, quer dizer naturalmente. Nunca foi processado, como fotógrafo, por violação de privacidade. Mas já apanhou sustos. Uma vez, dias antes do 25 de Abril, foi preso, ele e metade da redacção do Século. Embora saiba que eram todos «do contra», ainda hoje está para saber porquê, concretamente. Dias depois, em plena revolução, já de madrugada, na António Maria Cardoso, a pistola do PIDE obrigou-o a baixar a câmara. Na Guiné, dias antes da independência, foi preso pela polícia portuguesa, «por estar a fotografar». Noutra ocasião, em 1984, em Moçambique, foi preso, com Luís Vasconcelos, por marinheiros soviéticos, também por estarem a fotografar, o que parece ser quase sempre, para os opressores, um crime. Iam levá-los para dentro dos respectivos barcos, o que não é propriamente a mais encantadora das perspectivas. Foram salvos por soldados da Frelimo «que nos tiraram das mãos dos russos». Em São Tomé, ainda com Luís Vasconcelos, foram nadar para uma praia solitária, em momento de absoluta paz. De repente, iam morrendo debaixo de uma saraivada de balas. Minutos depois souberam a razão, pela voz de um oficial do exército: « Vocês são doidos! Estão a nadar na carreira de tiro das Forças Armadas de São Tomé!».

Verdadeiramente medo, nas suas palavras, só teve uma vez. Na Roménia, onde fez uma das suas melhores reportagens, teve um grave acidente de automóvel. «Percebi que ia morrer». Acabou por se sair bem: um desmaio, um ombro deslocado, vários ossos partidos e, sobretudo, o terror de ter de ser operado num hospital romeno, daqueles que fizeram, pelo horror, as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo, a seguir à queda de Ceausescu. Saíu-se bem é dizer pouco: foi nesse hospital que encontrou Fernanda, uma médica portuguesa que tentava ajudar os que viviam naquele inferno. Salvou-lhe a vida. Tinha uma Leica. Casaram.

Devo dizer que, na sua carreira, o mais estranho foi a sua ligação a Mário Soares. Com efeito, Alfredo Cunha respira rebeldia. Com Luís Vasconcelos, parece só quererem fazer o que lhes apetece, ou o que acham que profissionalmente deve ser feito. Por isso, a associação destes dois fotojornalistas ao Presidente da República levanta os problemas previsíveis. Fotografia de encomenda, fotografia oficiosa, não é fotojornalismo, ou, pelo menos, não é fotojornalismo livre. Ora, após a eleição de Mário Soares, foram os dois chamados a desempenhar as funções de «fotógrafos da Presidência». Foi o que fizeram durante sete ou oito anos, dois dos quais acumulando com o cargo de editores de fotografia no Público. Tudo leva a crer que se tenham desempenhado bem das duas tarefas. Pelo menos, não se terá sentido, «cá fora», que poderia haver conflito de interesses. Acabou por haver, evidentemente. O problema foi resolvido: os dois fotógrafos deixaram Belém, para se dedicar exclusivamente ao jornalismo.

Alfredo Cunha sabe que a situação de dupla fidelidade existiu. Sabe que a fotografia oficiosa não casa bem com o jornalismo. Mesmo assim defende-se: «Gosto dele, que é que quer? Acho que nunca fui dependente. Eu sei que qualquer homem de poder utiliza as pessoas que trabalham com ele... Acontece que Soares, sendo como os outros, sabe fazer e conservar amigos. Gostei de o ver no poder por dentro. Note que é uma oportunidade única, para qualquer profissional, desde que não dure eternamente. É verdade que, como profissional, escondo coisas que sei de Soares; ou não faço imagens de que ele poderia não gostar... Eu sei que isso é uma espécie de condicionamento. Foi o preço que paguei por uma experiência única. Mas além disso, como amigo, sobretudo, tenho honra de ter conhecido Soares em privado».

Para ele, o problema parece resolvido. Para mim, não. Ele acrescenta, convencido de que, assim, põe ponto final na questão: «De qualquer maneira, nunca faria isto com um político de direita». E dá um pouco mais de pormenores: «Quando trabalhámos, eu e o Luís Vasconcelos, ao mesmo tempo, para o Mário Soares e o Diogo Freitas do Amaral, colocámo-nos o problema: Os dois? Ao mesmo tempo? Ou só um? E qual deles? Até que chegámos a uma conclusão: vamos trabalhar para aquele em quem vamos votar. Lá terá de ser o Mário Soares. Mesmo pagando menos».

Insisto. O conflito de interesses nunca será resolvido. Poderá viver-se com ele, isso é outra coisa. O jornalista também tem simpatias políticas. O problema é viver tudo isso e a profissão também. Desde que começou a trabalhar com Mário Soares, melhor dizendo, para Mário Soares, as evidências saltaram aos olhos. Felizmente, para ele e para nós, Alfredo Cunha guarda uma inocente lucidez: «Trabalhar com o Mário Soares não era a mesma coisa do que quando éramos mercenários que trabalhavam para todos, nem quando éramos só profissionais. Agora estávamos empenhados. Os dez anos de Mário Soares tiveram momentos de grande cansaço. Por vezes, estava farto! Tive a sensação de inutilidade! De trabalhar apenas para a glória de um homem... Mas a verdade é que vi e aprendi coisas que jamais teria tocado. . .ou sonhado. . . Aceito que fotografar a partir do poder é tomar o ponto de vista do poder. É muito difícil integrar isso na minha profissão, ainda por cima com as minhas ideias. Mas também é verdade que essa experiência é inesquecível. O livro «A Presidência Aberta» é a glorificação de um homem. . . É o país através dele, o país como ele o vê. . . Pior: o país que está a olhar para ele, a admirá-lo. . . Mas, agora, acabou-se. Isto só foi possível com Mário Soares. Ele é mesmo especial. Com o fim dos seus mandatos, acabou-se»!

Que certeza podemos ter? É verdade que, agora, com o Público, a dedicação é exclusiva. Mas, quem fez um cesto... Ainda por cima, Alfredo Cunha não fez só um. Outros tinha feito. Por exemplo, um mês na campanha de Eanes, curiosamente a pedido de soaristas convictos. E fez, a pedido de Manuel Figueira, do Século, as primeiras fotos de Soares Carneiro, as famosas, com o cão de Sousa Brito. Como também fez as de António Guterres. E de Jorge Sampaio. «Mas isso são contratos. Duram o que duram. Uma ou duas sessões de trabalho. Oficioso, nunca mais».

Não creio, uma vez mais, que o problema esteja resolvido. Jamais o estará. Mas gosto da maneira como Alfredo Cunha o explica, se explica. Sem fantasias. Sem mistificação.

Como entra a esquerda nesta carreira? «Acho que sou. Sinto-o». Parece a mesma intuição com que fotografa. Quer mais justiça. Mais equilíbrio. Para ele, isso é ser de esquerda. «O pior no mundo é a injustiça. O trabalho infantil. Os banquetes ao lado dos pobres. É bom que as pessoas queiram viver bem, mas têm de viver com equilíbrio. É bom que queiram ganhar bem, como eu quero, mas quem o quiser tem de pagar bem».

E como entra a esquerda na fotografia? «Tem de ter uma utilidade qualquer. A do Bilhete de Identidade serve para o Bilhete de Identidade.

A de arquitectura serve para a arquitectura. A de fotojornalismo serve para o jornalismo. Até pode servir para objecto de culto, para decoração. Até a fotografia documental, como a de August Sander, tem uma utilidade. Foi sempre o que o meu pai me disse, e acho que ele tinha razão: não faças fotos que não sirvam para nada!».

Percebo-o, mas não partilho o seu ponto de vista. O juízo de utilidade, aplicado à arte, às letras, à expressão criativa ou ao pensamento, pode ter as mais terríveis consequências. Sobretudo quando o julgamento é feito antes ou durante a concepção e a criação. Até porque a «utilidade», no seu sentido mais vasto, pode vir depois de reconhecida a obra de arte.

É ainda por inutilidade que foge de certos géneros de fotografia. Alfredo Cunha, como todos os fotógrafos, também fez nus. Com modelos ou namoradas. Mas não gosta. «Não serve para nada. Não desenvolve. Nu é nu... Na fotografia, é inútil». Não o acompanho.

Além da esquerda, ou dos fracos, a sua segunda obsessão é Portugal. Quer fotografar Portugal inteiro, de lado a lado. Quer fazer um «inquérito» fotográfico a Portugal, não só de retratos, como Sander, mas também das coisas e das terras, do trabalho e das casas. E é verdade que, nestas suas fotografias, há um olhar sobre Portugal que se repete. Não está lá o Portugal inteiro. Mas está um certo Portugal, que existe para além do olhar do fotógrafo. Apesar das suas excelentes reportagens feitas em Moçambique e na Roménia, é um «olhar português» que se retira das suas fotografias. Na «Cometna» ou em Fátima, no 25 de Abril ou na descolonização. Ele sabe que a linguagem da fotografia é universal, mas também sabe que essa afirmação tem algo de mitológico. Ele sabe que há um contexto. E um objecto. E um tempo. «Muitas das minhas fotografias, mesmo se boas, apenas interessam aos portugueses! Mais ninguém... Porque Portugal interessa a muito pouca gente. Tenho os mesmo problemas que os escritores. . . » . Acertou.

Só nos últimos anos se pode começar a falar num fotojornalismo português. Não que haja um carácter distintivamente nacional, mas existe, isso sim, um fotojornalismo feito em Portugal, sobre a sociedade e a vida portuguesas; assim como um ofício, praticado por portugueses, tanto «cá dentro» como «lá fora». Os jornais e os magazines perceberam o valor próprio da fotografia: muitos são os que obrigam à assinatura de autor. E são alguns os que, perante um texto e uma foto, não sacrificam sistematicamente a foto, encolhendo, cortando, enquadrando ou eliminando. Nos órgãos de imprensa e comunicação, há, cada vez mais, arquivos fotográficos organizados. É já frequente ver reportagens fotográficas «apoiadas» por breves textos e legendas. Cria-se lentamente uma tradição. Surgem os problemas. Há legislação, embora incipiente, sobre o direito à imagem, consagrado até na Constituição. O uso e o mau uso da fotografia deram já lugar a processos judiciais, num dos quais, aliás, Alfredo Cunha foi absolvido, não como fotógrafo, mas como editor do Público. Tinha permitido a publicação de uma fotografia de um doente com Sida, morto entretanto. O caso estava na fronteira. Havia boa-fé, mas a discussão e a dúvida tinham razões de ser. Foi um alerta, teve o valor de precedente. Mas são estas questões, que surgem em volta de uma tradição e de uma profissão, que dão alicerces ao fotojornalismo.

Os contactos internacionais contribuem para o desenvolvimento da actividade. Nos últimos anos, várias exposições de grandes mestres internacionais tiveram sucesso real. Cartier-Bresson, Sebastião Salgado, os fotógrafos da Magnum, os candidatos da World Press Photo e` muitos outros estiveram entre nós. Vendem-se e editam-se álbuns dos mais reputados nomes. Longe vão os tempos em que Eduardo Gageiro era quase o único nome português presente nos concursos e nas exposições internacionais, vencedor aliás de inúmeros prémios e menções. Longe vão os anos cinquenta, em que dois ou três fotógrafos dominavam o sector e ditavam as regras. Perdidas na memória, felizmente, estão as décadas em que a fotografia de imprensa era exclusivamente oficiosa, bem comportada, censurada, para glória do regime e dos poderosos.

Para esta tradição, até os símbolos contribuem. Rara entre as capitais, Lisboa deu nome de rua a um fotógrafo. Ali para os lados das Amoreiras, pode ler-se, numa placa: «Rua Joshua Benoliel‹Repórter Fotográfico». Foi este homem que, nos finais do século XIX, primeiras duas décadas do presente, fundou o ofício. Foi ele que deu corpo, com os jornalistas Silva Graça e Malheiro Dias, ao primeiro grande magazine português ilustrado essencialmente com fotografias, a Ilustração Portuguesa. Como foi ele o primeiro «director» de um departamento fotográfico, o do Século, justamente aquele onde virá, décadas depois, trabalhar Alfredo Cunha, pelas mãos de Eduardo Gageiro e de Beatriz Ferreira. É dele a frase que, a meu ver, inaugurou o fotojornalismo em Portugal. No meio de uma revolta, é assediado, nas ruas de Lisboa, por um bando mal encarado, mas bem armado: «Oh velhinho! És republicano ou monárquico?». A sua resposta tem o valor da génese: «Eu cá sou fotógrafo»! Deixaram-no passar...

Prefácio

Naquele Tempo

por António Barreto

Creio que foi Berenice Abbott que lhe chamou «straight photography»: fotografia directa, pura, simples, autêntica, sem maneirismos, sem distorções, sem efeitos de câmara, sem retoques, sem arranjos. É essa uma das principais qualidades de Alfredo Cunha. Não quer isto dizer que as suas fotografias sejam «a verdade»: essa discussão está ultrapassada. Cada fotografia, por mais autêntica, é sempre o olhar do fotógrafo, a sua visão das coisas, a sua interpretação. Mas, nesta «straight photography», há uma espécie de naturalidade à dimensão do olhar humano, nem a mais, nem a menos do que vemos, como vemos. As fotografias de Alfredo Cunha não são daquelas, como diria Susan Sontag, que constituem um «tratamento de beleza» aplicado ao real, às coisas e às pessoas. São fotografias de um real imediato.

Poder-se-á dizer que o estilo resulta da sua profissão, fotojornalista. Trata-se do contrário. Ele faz jornalismo fotográfico, porque esta profissão é a que melhor se adequa ao seu estilo, à sua maneira de olhar o mundo. Há, no seu modo de ser, como que uma espécie de timidez, que o leva a fazer fotografia não intrusiva, uma das maiores dificuldades do ofício. Não conheço fotografia sua onde os sujeitos estejam pouco à vontade, furiosos por estarem a ser fotografados, envergonhados, com o sentimento de estarem a ser violados na sua privacidade. Os que olham para a sua câmara, com mais ou menos prazer, com ou sem indiferença, não mostram hostilidade ao fotógrafo. E os que não olham para a câmara, não parece, pelo que estão a fazer, que reagiriam contra o que os observa. Não conheço fotografia sua que revele uma intimidade secreta, algo que ninguém gostaria que se soubesse ou visse. É difícil, sendo-se fotógrafo, cultivar sem concessões este respeito pelos outros. Muito mais ainda, sendo-se fotojornalista, profissão em que o «voyeurisme» pode ser elevado ao estatuto de virtude, como acontece tantas vezes com as revistas e os jornais sensacionalistas, como praticam tão obsessivamente muitos jornalistas nas televisões contemporâneas. Nas suas fotografias, Alfredo Cunha revela uma humanidade quase inocente, uma comovente igualdade perante os outros. Não se consegue perceber que o fotógrafo ganha a sua vida à custa dos outros. Vejam-se as suas fotografias de crianças, ou aquelas em que os sujeitos estão de costas: são a demonstração exacta da ternura tímida que o habita.

O jornalista não parte do princípio que tem direitos sobre os outros, nem sobre os seus sentimentos, nem sobre as suas obras. Ele sabe o que é o «direito à informação», mas não o reduz aos seus próprios direitos, que considera limitados pelos seus deveres. Não conheço fotografia sua na qual a dor, o desespero, a cólera, a volúpia ou a intimidade sejam explorados. E, no entanto, as suas fotografias são capazes de nos revelar as pessoas, os sentimentos, as situações. Tanto mais que Alfredo Cunha tem simpatias humanas, culturais e políticas. Fotografa os poderosos por profissão, os sem poder por vocação. Visivelmente, prefere os pobres, os que trabalham, os que sofrem. Nestas condições, é muito difícil não fazer fotografia empenhada, «engagé», com função e utilidade políticas. Ele consegue-o. Fotografa um lado da condição humana, mas fá-lo sem pragmatismo, sem intuito propagandístico, sem outra intenção que não seja mostrar-nos o que ele vê, como ele vê, o que ele prefere.

Alfredo Cunha nasceu em 1953, em Celorico da Beira. Tem 5 irmãos. É filho e neto de fotógrafos da Guarda e de Celorico da Beira. Seu pai teve lojas em várias vilas das Beiras. Como também teve uma no Brasil, entre 1957 e 1960.

Seu avô, Alfredo Cunha, era ourives, até ao dia em que conheceu um fotógrafo ambulante espanhol. Foi um encontro fulminante: deixou a ourivesaria e transformou-se em fotógrafo, ofício que legaria a duas gerações. O pai, António Cunha, teve os rudimentos em casa, mas depois foi aprender com quem sabia. Durante os anos trinta e quarenta, trabalhou no Porto com Domingos Alvão e, em Lisboa, com Marc Lenoir. Regressou depois a Celorico, onde abriu o estúdio «Cunha fotógrafo»: casa e atelier juntos, como era frequente naqueles tempos. Foi aí que Alfredo Cunha nasceu, viveu parte da juventude e aprendeu a trabalhar com fotografia. Não começou, como quase toda a gente, com uma câmara: iniciou-se no laboratório, a revelar e imprimir. Aprendeu o ofício como quem vive, como tinha aprendido a gatinhar. Foi tudo tão natural, «que não se lembra de jamais ter aprendido a imprimir ou a tirar fotografias». Sempre fez, nunca aprendeu. Além do laboratório, ia atrás do Pai, fazer as reportagens dos casamentos, itinerário obrigatório. Quando miúdo, não fotografava: transportava o equipamento, de boda em baptizado, e carregava as máquinas que o Pai utilizava. No atelier, começou cedo: aos sete anos já imprimia as fotos «tipo passe». Era obrigado a trabalhar de pé, em cima de um caixote. Não chegava à mesa. Na escola, os colegas metiam-se com ele por ter sempre as unhas pretas: restos de revelador que não saíam nem com pedra-pomes. Entre Celorico, Mangualde e Guarda, foi vivendo. Depois da escola industrial, veio para Lisboa, com o Pai que, doente, tinha abandonado a fotografia.

Esta infância não foi uma delicada iniciação à arte. Pelo contrário. Alfredo chegou a odiar a fotografia. Entre os 10 e os 16 anos, foi o seu martírio. Escravatura? Revolta contra o pai? Trabalho infantil? Tudo poderá ser dito. As relações entre os dois eram tensas, por vezes violentas. O pai mandava-o trabalhar, ele insistia em recusar, ao que se seguia, regularmente, uma enorme tareia. Até que se chegou a um armistício: durante o dia, Alfredo fazia o que queria. À noite, das seis à meia-noite, trabalhava no atelier, imprimia os negativos que o pai tinha feito durante o dia.

Não acredito que a repressão seja um bom método para aprender o que quer que seja. Às vezes, resulta. Melhor: por vezes, apesar da violência, aprende-se. A verdade é que foi ali, no laboratório, que treinou a rebeldia, aprendeu as técnicas de base e descobriu a vocação. Revelar e imprimir são, aliás, os seus primeiros talentos. Ainda hoje, a sua impressão tem marca. Como é sabido, o produto final depende tanto do olhar, como da câmara e do laboratório. Nem todos os fotógrafos conseguem esse equilíbrio e, frequentemente, recorrem a impressores de qualidade. Com Alfredo Cunha, não é preciso.

As suas primeiras tarefas consistiam em lavar as provas, a fim de retirar o hipossulfito. Se o trabalho não fosse feito impecavelmente, a fotografia corria riscos, como se vê nas gavetas de velhas fotos de família: de vez em quando, lá aparece uma completamente «fanée», com manchas de acidez e zonas a desaparecer. Em geral, foram fotografias mal lavadas e mal fixadas. Alfredo lavava as suas. Quando o Pai chegava, vinha o momento da prova, no sentido literal da palavra: passava o dedo nas fotos e lambia. Se soubesse a hipossulfito, havia bofetão...

Chegado a Lisboa, no fim dos anos sessenta, começa a trabalhar aqui e ali. O primeiro emprego digno desse nome é numa agência de publicidade, Praxis de sua graça. Faz de tudo, mas já na fotografia: paginação, revelação, impressão. Não chegou a um ano: quis ser « hippie». Junta-se a outros, vai para a estrada. Passa um ano a viajar pela Europa, a fotografar despreocupadamente. A França e a Suécia marcam-no. O regresso a Portugal é momento de viragem: percebeu, porque comparou, o atraso português. Sentiu, como nunca tinha reparado, o que era a pobreza. Esta revelação marcará o seu olhar sobre a sociedade.

Recomeça vida, desta vez num laboratório comercial da Amadora. Ao mesmo tempo, faz fotografias para o Noticias da Amadora. O fotojornalismo, a sua nova e definitiva profissão, começa. Com um condimento especial: o Notícias da Amadora é quase uma célula do Partido Comunista. De repente, sem ter percebido como, sente que está integrado no trabalho do partido, de que nunca foi membro formal. O director do jornal chama-se Carlos Carvalhas. Faz o seu primeiro livro, que é ao mesmo tempo uma reportagem e um inquérito: «Raízes de uma força», fotografias dele e texto de Helena Neves. O livro será editado pelo N.A., logo apreendido pela PIDE e proibido pela Censura. O tema do livro era a criança em Portugal e o trabalho infantil!

Em 1972, faz a sua primeira exposição, na galeria da livraria Opinião, mal-afamada pelas iniciativas de oposição. Em todos os seus gestos, se sente que já escolheu o seu lado: o da liberdade. No mesmo ano, entra « devagarinho» para a escola de jornalismo e de fotojornalismo que é o grupo do Século. Para esse mesmo grupo onde, setenta anos antes, tinha entrado o primeiro e maior fotojornalista português, Joshua Benoliel. Alfredo era amigo de Eduardo Gageiro, chefe de fotografia do Século Ilustrado. Vai entrando, pela sua mão. No Século propriamente dito, a chefe de fotografia era Beatriz Ferreira, uma dos primeiras mulheres fotógrafas e jornalistas portuguesas. Um de esquerda, a outra de direita: ambos bons profissionais. Com ambos se entende bem. Gageiro, em particular, gostava das suas fotografias. Preparam juntos o livro «Gente», um álbum de Gageiro que é um marco.

São tempos em que não há ainda um fotojornalismo português, mas já há fotojornalistas que vão penosamente, mas com entusiasmo, criando os contornos e as tradições de uma profissão. Nos jornais, praticamente não existem departamentos de fotografia. Esta serve apenas para ilustrar vagamente os textos. Nunca vem assinada. Os fotógrafos, para todos os efeitos, não existem. São uma espécie de «lumpen» da profissão. As suas imagens podem ser cortadas, re-enquadradas, retocadas, republicadas, vendidas... Em poucas palavras, não são obra de autor. Só muito mais tarde, talvez a partir da década de oitenta, é que os fotógrafos começam a ser reconhecidos como deve ser. O que aliás também aconteceu noutros países, embora um pouco antes. Entre nós, depois do Século, veio o Expresso nos anos setenta, logo a seguir o Independente e, nos anos noventa, o Público, que produz uma reviravolta no sector e quase obriga todos os jornais a tratarem desta arte com mais respeito.

Em finais de 1972, Alfredo Cunha entra para os quadros do Século Ilustrado. Aqui vai conhecer melhor o meio profissional, com jornalistas que já têm nome feito: Gageiro, Maria Antónia Palla, Rogério Petinga, Francisco Mata, Manuel Lima... Todos do «reviralho»! O lugar que vai ocupar neste magazine é de responsabilidade: substitui, não sem angústia, Augusto Cabrita, outro dos nomes fundadores do fotojornalismo português contemporâneo.

É nesta altura que define melhor o seu olhar. «Sente» que a fotografia tem, ou pode ter, «significado social e político». E começa inevitavelmente a ter problemas. A sua primeira reportagem proibida pela Censura foi feita no Hospital do Rego. Ficou furioso. «Não compreendia porquê»! Terá tempo, em Portugal e noutros países, para perceber que o olhar pode ser tão subversivo, tão rebelde, tão livre, quanto a palavra. Mas este seu « engagement», esta sua escolha do lado da rua por onde quer passar, tem de ser qualificado. Ele não é um fotógrafo que louva partidos ou causas; não quer ser um mercenário da fotografia de propaganda; não é um «aparatchik» da câmara. As suas escolhas não o impedem de ser um repórter consciencioso, tão isento quanto possível, tão exaustivo quanto deve ser. Escolher, no seu caso, não significou submeter-se.

Em princípios de 1974, a sua aprendizagem de jornalista está feita. Vivem-se tempos fabulosos, durante os quais a foto e a televisão, por causa da guerra do Vietname, adquirem uma importância e uma força até então desconhecidas. Os fotógrafos do Vietname são os seus heróis. No laboratório, é mestre. Tem vinte anos e só pensa numa coisa: fugir à guerra colonial. No primeiro trimestre desse ano, as decisões estão tomadas. Dentro de pouco tempo, irá para a Europa. Talvez França.

No dia 25 de Abril de 1974, à noite, está em casa, a ouvir os «Doors». Pela rádio e por um telefonema, é informado de que «algo se passa». Da Amadora, onde vive, salta para o Século. Está lá toda a gente. Ponderam. Uns querem sair para a rua. Outros querem ficar, à espera, para ver de que se trata. Discutem. As decisões correm o risco de durar horas. Às seis da manhã, sem esperar por instruções ou consensos, dirige-se directamente para a Praça do Comércio. Ao chegar, encontra um fotógrafo. Não podia deixar de ser: era o Eduardo Gageiro, ainda chefe de fotografia do Século, mas que não tinha ficado a meditar, enquanto a história avançava, lá fora, a passos largos.

O abraço é rápido. Não há tempo. Dividem, entre si, a Baixa em sectores. Cada um fica com os seus. Todos os caminhos vão dar ao Carmo, através do Chiado. É lá que se encontram de novo. Apesar da alegria, tinham medo. Havia tensão no ar, máquinas de guerra nas ruas, as vagas de povo alegre ainda não tinham chegado. Nas fotos, do que será a sua primeira grande reportagem, percebe-se a madrugada, o frio no ar, o receio nas almas. De certos sítios, chegam ruídos de tiros. Gageiro diz a Alfredo: «Se houver tiros, foge!». Apesar disso, chegam aos sítios mais quentes. Na António Maria Cardoso, quando se prepara para tirar umas fotos, um Pide diz-lhe secamente, sem levantar a voz: «Se tiras essa foto, levas um tiro... Foi-se, cabisbaixo.

A revolução de Abril oferece-lhe um recomeço da sua profissão. Vai ocupar-se, em dedicação exclusiva, do «processo revolucionário em curso», do PREC, como ainda hoje diz. Ocupações de terras, manifestações, comícios, assembleias, reuniões do MFA, conferências de imprensa, golpes e contra-golpes, tudo vai fotografar. Aqueles três anos valem um curso superior. Ao lado das revoluções, cá dentro, vai seguir descolonização em África: Guiné, S. Tomé, Angola e Moçambique. Esteve em todas. Estava presente nas cerimónias da independência. Esteve no dia do içar da bandeira de cada uma delas. «Do içar, não!», corrige-me, «do arrear da bandeira...!

É nessas cerimónias, no momento em que aquele Portugal termina, que tem um choque. «Esses momentos tocaram nas minhas convicções de esquerda e de anti-colonialista. Até então, nunca tinha tido dúvidas tinha tido dúvidas sobre a independência desses povos. Ainda hoje não tenho. Mas aquela separação afligiu-me. . . » . É de uma dessas viagens que nos trouxe uma das suas mais fabulosas fotografias: as estátuas dos descobridores portugueses, desfeitas em pedaços, espalhadas pelo chão. «Fiquei arrepiado, quando vi aquelas estátuas todas desmontadas. . . ». Não creio que, das suas fotos, se possa dizer que influenciaram os acontecimentos, ou mudaram o curso das coisas. Mas, para muita gente, com ou sem conhecimento da respectiva autoria, as imagens da descolonização são as fotografias dele. É o meu caso, muito antes de o conhecer.

A revolução de Abril foi fantástica para a fotografia. Não só pela liberdade e pela explosão social, mas também porque se vivia, no mundo, um momento excepcional de desenvolvimento das artes visuais na imprensa. Ainda se ouvia a «Grândola» e já tinham chegado a Portugal fotojornalistas do mundo inteiro, alguns dos quais estavam a dar os primeiros passos na profissão e viriam a ser dos mais famosos, como Sebastião Salgado e Guy Le Querrec. Da revolução portuguesa, sabe-se quase tudo pela fotografia. E, como sempre, até se sabe o que não é verdade. Como, por exemplo, uma das mais famosas fotografias de 1974, que ganhou os prémios Pullitzer e da World Press Photo: o agente da Pide, aterrado, ar miserável, de gabardina branca, cercado por soldados de camuflado, com espingardas apontadas... Magnífica fotografia! Só que... o homem não era agente da Pide, nunca tinha sido, estava perdido de medo por julgarem que era... O que só se soube anos depois!

Em 1977, com a revolução acabada e o Século e o Século Ilustrado encerrados, começam os anos de chumbo de Alfredo Cunha. Transita para a ANOP, da ANOP para a NP, desta para a LUSA. Faz fotografia oficiosa e de agência. Foram «dez anos perdidos». Fotografou Presidentes da República, Primeiros Ministros, Ministros, Secretários de Estado... Fotografou conferências de imprensa atrás de conferências de imprensa... Fotografou inaugurações e visitas de Estado. Fez fotografia a metro, fotografia de encomenda, de que não guarda sequer arquivo: as agências ficam com tudo, não devolvem, não deixam os autores assinar. É assim que sabe, porque já viu, que tem fotografias suas publicadas no mundo inteiro, nos mais imprevisíveis países, em magazines ou jornais, mas sem assinatura, sem sequer o seu conhecimento. Apesar de não gostar e de, hoje, lamentar, sente que, com a rotina, «fez a mão». Um fotojornalista não pode ter sempre uma revolução a seu gosto, um país inteiro agitado diante da sua câmara.

Ao lado da agência, abre novas perspectivas de trabalho. Ainda mais mercenárias: capas de discos, publicidade, moda, diaporamas, partidos políticos... Quem lhe encomenda e paga obterá os seus serviços. Tinha a ANOP ou a LUSA como base e escritório, cumpria mais ou menos as suas obrigações, fazia, por fora, o mais que podia. Sobretudo para ganhar dinheiro. O equipamento de fotografia pode ser mais caro do que amantes ou automóveis. Alfredo precisava de quase tudo. Hoje, quando o vejo trabalhar, nunca deixo de reparar na sua parafernália, que vale muitos milhares de contos. Cada vez que o vejo, reparo em surpresas. Leicas, tem-nas quase todas, da M.3 à M.6, passando por umas da série R, cada modelo em vários exemplares. Nikons são várias, da F e da F. 1, às duas F.4. Acrescentem-se a essas as Pentax, Hasselblad, Rolleiflex e duas Contax G.1, acabadinhas de sair, e temos diante de nós uma verdadeira montra das mais caras câmaras. Muitas delas vêm daquele período em que a fotografia perdia um pouco, mas ganhava para isso tudo.

Mesmo este período teve as suas alegrias. A primeira, essencial, foi a sua associação com Luís Vasconcelos. Este é, hoje, um dos melhores fotojornalistas portugueses. Começaram a trabalhar juntos. Fizeram-se amigos. São tempestuosamente íntimos, como devem ser os amigos. São os melhores juízes um do outro. Criticam-se com secura. Já os ouvi dizerem-se, um ao outro, as coisas mais desagradáveis. Mas é assim que conseguem trabalhar em equipa. É assim que esperam melhorar e se esforçam por não ser «fáceis» e «complacentes», dois dos piores vícios de um qualquer fotógrafo. A associação entre estes homens foi muito longe. Tão longe que conseguiram fazer, em comum, o que sempre pensei ser o mais solitário de todos os ofícios. Como têm arquivos em conjunto, quando não assinam logo os seus negativos, há momentos em que não se consegue distinguir quem fez o quê. Quando tive entre mãos um projecto de livro, da autoria de ambos, sobre os «Arcos» de Lisboa, tentei distinguir. Na maior parte dos casos, falhei. Curiosamente, eles também: já não conseguiam assinar as respectivas imagens. O livro sairia com autoria conjunta, a fazer lembrar os raríssimos casos de grandes fotógrafos que fizeram autênticas parcerias: Hill e Adamson, Mayer e Pierson, os irmãos Seeberger...

Alfredo Cunha e Luís Vasconcelos trabalham ambos nas agências. Alfredo tinha vindo do Século, fechado, Vasconcelos vinha do Jornal Novo, falido. Ambos tentam enriquecer com a publicidade e com o que lhes vai aparecendo. Fotografam tudo, de um lado e de outro, à esquerda e à direita, no sentido literal e figurado. «Éramos autênticas putas, facturávamos a todos os partidos». Eram ambos de esquerda, hoje são ambos de esquerda, mas serviço era serviço. Tinham de ganhar dinheiro, precisavam de mostrar o que valiam.

Data desta altura a aproximação, também conjunta, a Mário Soares. Quando este viu a fotografia que tinham feito para a campanha de Diogo Freitas do Amaral, ficou com ciúmes. Quis logo saber quem eram. E pediu-lhes para serem eles os fotógrafos da sua campanha. Aceitaram. Nesse ano, os principais cartazes dos dois candidatos eram da sua lavra. Como, anos antes, tinham sido os de Eanes e Soares Carneiro! Uma vez mais, ainda hoje é difícil saber exactamente qual dos dois fez quem. Nessa qualidade de dupla, já publicaram livros em conjunto: «Jardins de Lisboa», «Presidência Aberta», «Na Estrada, com Soares» e «Sá Carneiro». Em todos, a mesma cumplicidade.

No fim dos anos oitenta, Alfredo Cunha está indeciso. Cansado, não quer prosseguir na mesma via. Mas Portugal é pequeno. Como é o seu mercado. Como são os seus jornais. O futuro é inseguro. Por encomenda da LUSA, vai ao Tarrafal, Cabo Verde, fazer uma reportagem. De regresso, o seu trabalho é vendido ao Expresso. Um dia, à tarde, vai à Duque de Palmela, trabalhar com os redactores, a fim de ajudar na paginação. Chegou, sem prevenir, a meio de uma reunião que se pretendia clandestina. Vicente Jorge Silva e os seus amigos preparavam o Público. A pergunta veio de chofre: «Queres vir, tu e o Luís, para o Público?». Quiseram. Deram um novo sentido à utilização da fotografia nos jornais. Têm hoje talvez a melhor equipa de fotojornalismo. E o Público fez da fotografia uma expressão autónoma e assinada.

Hoje, o fotojornalismo existe em Portugal. A dimensão é pequena, a diversidade é reduzida, a obra não é imensa. Mas há profissionais de mérito e rigor. Entre os seus preferidos, lista que aliás subscrevo, contam-se: Luís Vasconcelos, Rui Ochoa, António Pedro Ferreira, Daniel Rocha, Acácio Franco, José Antunes, Inês Gonçalves, Clara Azevedo, Bruno Portela, Luísa Ferreira e Luís Ramos são alguns dos nomes conhecidos e que dão, com Alfredo Cunha, um sentido forte ao jornalismo fotográfico contemporâneo.

Apesar do seu impressionante equipamento, Alfredo Cunha mantém-se, em grande parte, um artesão. A aprendizagem da fotografia aos sete anos e os bofetões do pai devem ter marcado um género. Trabalha no laboratório do Público, certamente o mais apetrechado do país. Nada falta, nem máquinas nem espaço. A cor separada do preto e branco; os secos dos molhados; o controlo de luz; as células de medição; os melhores ampliadores; um arquivo pequeno, mas impecável; meios de transmissão de fotografias os mais sofisticados do mundo... No meio disto tudo, apesar de familiar com a tecnologia moderna, vagueia como desenterrado de outro século. Por onde passa, deixa desordem: nas mesas, no laboratório e nos armários. Trabalha de pé, nas bancadas de impressão e nos tanques de revelação, a assobiar. Nos piores momentos, fala com as fotografias. Embora tenha, diante do seu nariz, o que há de mais adequado, aspiradores e secadores a ar comprimido, vai pelo mais prático, pecado maior de qualquer detentor de aparelhagem cara: limpa as ópticas e os filtros à fralda da camisa, a mesma na qual limpa também as objectivas das câmaras. Ainda hoje lambe as provas, a fim de ver se estão bem lavadas. De cada fotografia, para obter uma prova, imprime 4, 6, 10 cópias, as que forem precisas, até encontrar o equilíbrio. Na bancada, células fotoeléctricas permitir-lhe-iam calcular os tempos com precisão; no ampliador, moderníssimo e sofisticado, novos dispositivos se lhe oferecem para regular tudo do mais fino modo. Apesar disso, parece ignorar o arsenal. O faro e a experiência ditam a lei. Utiliza as mãos, como janelas improvisadas, para aumentar e diminuir a luz e a definição dos seus objectos. Os tempos de exposição, revelação, fixação e secagem são todos calculados «a olho». Em geral, bate certo. E um bom selvagem, um grande artesão, numa sala do século XXI. É um dos melhores impressores de fotografia portugueses. E também neste ofício, ou neste capítulo do ofício de fotógrafo, utiliza o seu maior trunfo: a intuição.

Com a câmara na mão, como é visível nas suas fotografias, também é a intuição que comanda. Já o vi fotografar em situações muito diferentes. Por exemplo, em ocasiões oficiais, durante as quais eu estava do lado de lá da barricada, isto é, fazia parte dos fotografáveis. Vi-o, por acaso, no meio de manifestações, comícios, desfiles e festas. Vi-o a fazer retratos de outros, anónimos ou personalidades. Vi-o a sós, a fotografar-me. Vejo-o, frequentemente, nos noticiários de televisão, no meio de acontecimentos de toda a ordem. Calmo, fotografa muito devagar, mas não é poupado: «bate dezenas de chapas». Com uma enorme discrição, vai fotografando. Nunca se sente a intrusão. Nunca se sente a agressão. Trabalha com o recato e o vagar dos que repetem, profissionalmente, os mesmos gestos durante anos a fio. Muda de câmara e de objectivas sem que se dê conta: os aparelhos parecem fazer parte dele. É o contrário daqueles fotógrafos que precisam de horas para se instalar, preparar a luz, rever o «fundo», testar as posições, repetir as medidas, montar o cenário.

A intuição não substitui cultura e técnica. Acrescenta-se. Fazer boa fotografia de jornalismo exige mais do que olhar. É nesse sentido que digo que ver é difícil. E fotografar é dificílimo. Há milhares de milhões de fotos, e tão poucas boas! Apesar de conhecer um fotógrafo profissional analfabeto, há trinta anos a trabalhar para a imprensa lisboeta, saber ver não é a mesma coisa do que saber ler. Para lá da informação, sobretudo em jornalismo, a intuição é indispensável.

Não creio que, antes de ir para o terreno, tenha ideias sobre as fotografias que quer tirar. Não me parece, pelas centenas de imagens suas que conheço, que as suas fotografias sejam previstas, compostas mentalmente. Vai e logo se vê. Não sei se detesta a fotografia «conceptual», a fotografia abstracta, a imagem erudita composta, o simbolismo rebuscado. Imagino que as detesta, pela simples razão que essas e outras escolas lhe são absolutamente estranhas. Uma pedra, meia nuvem, um quinto de cadeira, dois botões de casaco, um clip de escritório, um cinzeiro sujo, uma mão repetida doze vezes, um terço de aba de chapéu: eis imagens que não sairão das câmaras de Alfredo Cunha. Se os «ídolos» reflectem o carácter de alguém, fico rapidamente esclarecido: os fotógrafos preferidos de Alfredo Cunha são Eugene W. Smith, Cartier-Bresson, Bill Brandt, Margaret Bourke White... Fizeram todos jornalismo.

O facto de não ser intruso pode resultar de uma opção de vida. Mas tenho a certeza de que isso também resulta da sua timidez. Creio que é esta que está na origem de uma sua preferência pelos miúdos: pobres ou ricos, a brincar, a trabalhar ou a sofrer em hospitais, são algumas das suas imagens favoritas. Quando são fotografados, nos seus olhos há inocência e curiosidade, prazer e estranheza. Ainda não chegaram à idade da verdadeira desconfiança, nem à consciência da intimidade. Tímido ou não, é prático e sensato: «Quando sinto problemas de pudor ou atentado à privacidade, não fico a tremer, nem me excito especialmente com a possibilidade da foto interdita. Não fotografo, ponto final»!

Como faz muita reportagem política, já lhe aconteceu sentir reacções estranhas. Há quem não goste de ser fotografado, em qualquer situação, ainda mais em acontecimentos políticos ou sindicais. Alfredo Cunha sabe isso e age com enorme cautela, o que, no seu caso, quer dizer naturalmente. Nunca foi processado, como fotógrafo, por violação de privacidade. Mas já apanhou sustos. Uma vez, dias antes do 25 de Abril, foi preso, ele e metade da redacção do Século. Embora saiba que eram todos «do contra», ainda hoje está para saber porquê, concretamente. Dias depois, em plena revolução, já de madrugada, na António Maria Cardoso, a pistola do PIDE obrigou-o a baixar a câmara. Na Guiné, dias antes da independência, foi preso pela polícia portuguesa, «por estar a fotografar». Noutra ocasião, em 1984, em Moçambique, foi preso, com Luís Vasconcelos, por marinheiros soviéticos, também por estarem a fotografar, o que parece ser quase sempre, para os opressores, um crime. Iam levá-los para dentro dos respectivos barcos, o que não é propriamente a mais encantadora das perspectivas. Foram salvos por soldados da Frelimo «que nos tiraram das mãos dos russos». Em São Tomé, ainda com Luís Vasconcelos, foram nadar para uma praia solitária, em momento de absoluta paz. De repente, iam morrendo debaixo de uma saraivada de balas. Minutos depois souberam a razão, pela voz de um oficial do exército: « Vocês são doidos! Estão a nadar na carreira de tiro das Forças Armadas de São Tomé!».

Verdadeiramente medo, nas suas palavras, só teve uma vez. Na Roménia, onde fez uma das suas melhores reportagens, teve um grave acidente de automóvel. «Percebi que ia morrer». Acabou por se sair bem: um desmaio, um ombro deslocado, vários ossos partidos e, sobretudo, o terror de ter de ser operado num hospital romeno, daqueles que fizeram, pelo horror, as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo, a seguir à queda de Ceausescu. Saíu-se bem é dizer pouco: foi nesse hospital que encontrou Fernanda, uma médica portuguesa que tentava ajudar os que viviam naquele inferno. Salvou-lhe a vida. Tinha uma Leica. Casaram.

Devo dizer que, na sua carreira, o mais estranho foi a sua ligação a Mário Soares. Com efeito, Alfredo Cunha respira rebeldia. Com Luís Vasconcelos, parece só quererem fazer o que lhes apetece, ou o que acham que profissionalmente deve ser feito. Por isso, a associação destes dois fotojornalistas ao Presidente da República levanta os problemas previsíveis. Fotografia de encomenda, fotografia oficiosa, não é fotojornalismo, ou, pelo menos, não é fotojornalismo livre. Ora, após a eleição de Mário Soares, foram os dois chamados a desempenhar as funções de «fotógrafos da Presidência». Foi o que fizeram durante sete ou oito anos, dois dos quais acumulando com o cargo de editores de fotografia no Público. Tudo leva a crer que se tenham desempenhado bem das duas tarefas. Pelo menos, não se terá sentido, «cá fora», que poderia haver conflito de interesses. Acabou por haver, evidentemente. O problema foi resolvido: os dois fotógrafos deixaram Belém, para se dedicar exclusivamente ao jornalismo.

Alfredo Cunha sabe que a situação de dupla fidelidade existiu. Sabe que a fotografia oficiosa não casa bem com o jornalismo. Mesmo assim defende-se: «Gosto dele, que é que quer? Acho que nunca fui dependente. Eu sei que qualquer homem de poder utiliza as pessoas que trabalham com ele... Acontece que Soares, sendo como os outros, sabe fazer e conservar amigos. Gostei de o ver no poder por dentro. Note que é uma oportunidade única, para qualquer profissional, desde que não dure eternamente. É verdade que, como profissional, escondo coisas que sei de Soares; ou não faço imagens de que ele poderia não gostar... Eu sei que isso é uma espécie de condicionamento. Foi o preço que paguei por uma experiência única. Mas além disso, como amigo, sobretudo, tenho honra de ter conhecido Soares em privado».

Para ele, o problema parece resolvido. Para mim, não. Ele acrescenta, convencido de que, assim, põe ponto final na questão: «De qualquer maneira, nunca faria isto com um político de direita». E dá um pouco mais de pormenores: «Quando trabalhámos, eu e o Luís Vasconcelos, ao mesmo tempo, para o Mário Soares e o Diogo Freitas do Amaral, colocámo-nos o problema: Os dois? Ao mesmo tempo? Ou só um? E qual deles? Até que chegámos a uma conclusão: vamos trabalhar para aquele em quem vamos votar. Lá terá de ser o Mário Soares. Mesmo pagando menos».

Insisto. O conflito de interesses nunca será resolvido. Poderá viver-se com ele, isso é outra coisa. O jornalista também tem simpatias políticas. O problema é viver tudo isso e a profissão também. Desde que começou a trabalhar com Mário Soares, melhor dizendo, para Mário Soares, as evidências saltaram aos olhos. Felizmente, para ele e para nós, Alfredo Cunha guarda uma inocente lucidez: «Trabalhar com o Mário Soares não era a mesma coisa do que quando éramos mercenários que trabalhavam para todos, nem quando éramos só profissionais. Agora estávamos empenhados. Os dez anos de Mário Soares tiveram momentos de grande cansaço. Por vezes, estava farto! Tive a sensação de inutilidade! De trabalhar apenas para a glória de um homem... Mas a verdade é que vi e aprendi coisas que jamais teria tocado. . .ou sonhado. . . Aceito que fotografar a partir do poder é tomar o ponto de vista do poder. É muito difícil integrar isso na minha profissão, ainda por cima com as minhas ideias. Mas também é verdade que essa experiência é inesquecível. O livro «A Presidência Aberta» é a glorificação de um homem. . . É o país através dele, o país como ele o vê. . . Pior: o país que está a olhar para ele, a admirá-lo. . . Mas, agora, acabou-se. Isto só foi possível com Mário Soares. Ele é mesmo especial. Com o fim dos seus mandatos, acabou-se»!

Que certeza podemos ter? É verdade que, agora, com o Público, a dedicação é exclusiva. Mas, quem fez um cesto... Ainda por cima, Alfredo Cunha não fez só um. Outros tinha feito. Por exemplo, um mês na campanha de Eanes, curiosamente a pedido de soaristas convictos. E fez, a pedido de Manuel Figueira, do Século, as primeiras fotos de Soares Carneiro, as famosas, com o cão de Sousa Brito. Como também fez as de António Guterres. E de Jorge Sampaio. «Mas isso são contratos. Duram o que duram. Uma ou duas sessões de trabalho. Oficioso, nunca mais».

Não creio, uma vez mais, que o problema esteja resolvido. Jamais o estará. Mas gosto da maneira como Alfredo Cunha o explica, se explica. Sem fantasias. Sem mistificação.

Como entra a esquerda nesta carreira? «Acho que sou. Sinto-o». Parece a mesma intuição com que fotografa. Quer mais justiça. Mais equilíbrio. Para ele, isso é ser de esquerda. «O pior no mundo é a injustiça. O trabalho infantil. Os banquetes ao lado dos pobres. É bom que as pessoas queiram viver bem, mas têm de viver com equilíbrio. É bom que queiram ganhar bem, como eu quero, mas quem o quiser tem de pagar bem».

E como entra a esquerda na fotografia? «Tem de ter uma utilidade qualquer. A do Bilhete de Identidade serve para o Bilhete de Identidade.

A de arquitectura serve para a arquitectura. A de fotojornalismo serve para o jornalismo. Até pode servir para objecto de culto, para decoração. Até a fotografia documental, como a de August Sander, tem uma utilidade. Foi sempre o que o meu pai me disse, e acho que ele tinha razão: não faças fotos que não sirvam para nada!».

Percebo-o, mas não partilho o seu ponto de vista. O juízo de utilidade, aplicado à arte, às letras, à expressão criativa ou ao pensamento, pode ter as mais terríveis consequências. Sobretudo quando o julgamento é feito antes ou durante a concepção e a criação. Até porque a «utilidade», no seu sentido mais vasto, pode vir depois de reconhecida a obra de arte.

É ainda por inutilidade que foge de certos géneros de fotografia. Alfredo Cunha, como todos os fotógrafos, também fez nus. Com modelos ou namoradas. Mas não gosta. «Não serve para nada. Não desenvolve. Nu é nu... Na fotografia, é inútil». Não o acompanho.

Além da esquerda, ou dos fracos, a sua segunda obsessão é Portugal. Quer fotografar Portugal inteiro, de lado a lado. Quer fazer um «inquérito» fotográfico a Portugal, não só de retratos, como Sander, mas também das coisas e das terras, do trabalho e das casas. E é verdade que, nestas suas fotografias, há um olhar sobre Portugal que se repete. Não está lá o Portugal inteiro. Mas está um certo Portugal, que existe para além do olhar do fotógrafo. Apesar das suas excelentes reportagens feitas em Moçambique e na Roménia, é um «olhar português» que se retira das suas fotografias. Na «Cometna» ou em Fátima, no 25 de Abril ou na descolonização. Ele sabe que a linguagem da fotografia é universal, mas também sabe que essa afirmação tem algo de mitológico. Ele sabe que há um contexto. E um objecto. E um tempo. «Muitas das minhas fotografias, mesmo se boas, apenas interessam aos portugueses! Mais ninguém... Porque Portugal interessa a muito pouca gente. Tenho os mesmo problemas que os escritores. . . » . Acertou.

Só nos últimos anos se pode começar a falar num fotojornalismo português. Não que haja um carácter distintivamente nacional, mas existe, isso sim, um fotojornalismo feito em Portugal, sobre a sociedade e a vida portuguesas; assim como um ofício, praticado por portugueses, tanto «cá dentro» como «lá fora». Os jornais e os magazines perceberam o valor próprio da fotografia: muitos são os que obrigam à assinatura de autor. E são alguns os que, perante um texto e uma foto, não sacrificam sistematicamente a foto, encolhendo, cortando, enquadrando ou eliminando. Nos órgãos de imprensa e comunicação, há, cada vez mais, arquivos fotográficos organizados. É já frequente ver reportagens fotográficas «apoiadas» por breves textos e legendas. Cria-se lentamente uma tradição. Surgem os problemas. Há legislação, embora incipiente, sobre o direito à imagem, consagrado até na Constituição. O uso e o mau uso da fotografia deram já lugar a processos judiciais, num dos quais, aliás, Alfredo Cunha foi absolvido, não como fotógrafo, mas como editor do Público. Tinha permitido a publicação de uma fotografia de um doente com Sida, morto entretanto. O caso estava na fronteira. Havia boa-fé, mas a discussão e a dúvida tinham razões de ser. Foi um alerta, teve o valor de precedente. Mas são estas questões, que surgem em volta de uma tradição e de uma profissão, que dão alicerces ao fotojornalismo.

Os contactos internacionais contribuem para o desenvolvimento da actividade. Nos últimos anos, várias exposições de grandes mestres internacionais tiveram sucesso real. Cartier-Bresson, Sebastião Salgado, os fotógrafos da Magnum, os candidatos da World Press Photo e` muitos outros estiveram entre nós. Vendem-se e editam-se álbuns dos mais reputados nomes. Longe vão os tempos em que Eduardo Gageiro era quase o único nome português presente nos concursos e nas exposições internacionais, vencedor aliás de inúmeros prémios e menções. Longe vão os anos cinquenta, em que dois ou três fotógrafos dominavam o sector e ditavam as regras. Perdidas na memória, felizmente, estão as décadas em que a fotografia de imprensa era exclusivamente oficiosa, bem comportada, censurada, para glória do regime e dos poderosos.

Para esta tradição, até os símbolos contribuem. Rara entre as capitais, Lisboa deu nome de rua a um fotógrafo. Ali para os lados das Amoreiras, pode ler-se, numa placa: «Rua Joshua Benoliel‹Repórter Fotográfico». Foi este homem que, nos finais do século XIX, primeiras duas décadas do presente, fundou o ofício. Foi ele que deu corpo, com os jornalistas Silva Graça e Malheiro Dias, ao primeiro grande magazine português ilustrado essencialmente com fotografias, a Ilustração Portuguesa. Como foi ele o primeiro «director» de um departamento fotográfico, o do Século, justamente aquele onde virá, décadas depois, trabalhar Alfredo Cunha, pelas mãos de Eduardo Gageiro e de Beatriz Ferreira. É dele a frase que, a meu ver, inaugurou o fotojornalismo em Portugal. No meio de uma revolta, é assediado, nas ruas de Lisboa, por um bando mal encarado, mas bem armado: «Oh velhinho! És republicano ou monárquico?». A sua resposta tem o valor da génese: «Eu cá sou fotógrafo»! Deixaram-no passar...

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