EXPRESSO: Opinião

21-04-2001
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No centenário de um saudoso amigo

Mário Soares

«As condições políticas eram difíceis, a polícia política vigiava-nos de perto, algumas vezes fomos presos e processados, mas a coragem do grupo e a fraternidade que entre todos se estabeleceu era muito estimulante. Foi um convívio político de mais de três anos, para mim desvanecedor e inesquecível, de que, um dia, talvez tenha a oportunidade de falar, com mais vagar. Constituiu a minha primeira escola cívica. Os valores que então aprendi de Bento de Jesus Caraça ainda hoje me guiam.»

PASSOU na quarta-feira, 18 deste mês de Abril, o centenário do nascimento de Bento de Jesus Caraça. A data foi assinalada, com grande dignidade, numa sessão solene organizada pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) - o antigo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, ao Quelhas, de que Caraça foi aluno, professor ilustre e depois demitido compulsivamente (em 1946) pelo arbítrio de Salazar.

A sessão comemorativa, presidida pelo senhor Presidente da República, teve como oradores principais os professores José Barata Moura e José Tengarrinha. Além desta cerimónia, significativa e marcante, (a que infelizmente não pude assistir) estão previstas para o próximos meses vários actos comemorativos, em diferentes lugares do país: conferências, colóquios, exposições e ainda a publicação de uma importante biografia de Bento de Jesus Caraça de autoria da conhecida jornalista e conceituada professora drª. Helena Neves.

O jornal «Público» também dedicou três páginas à efeméride, intituladas «O homem das benditas ilusões», inserindo excelentes artigos de António Melo, Raquel Marques e Helena Neves e duas interessantes entrevistas: do prof. João Caraça (filho do homenageado) e do professor Emídio Guerreiro. O título «benditas ilusões» foi sugerido, seguramente, pelo texto de António Melo em que se citam umas frases muito significativas de Bento Caraça. Permito-me reproduzi-las: «As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir». E ainda: «derrotas só existem aqueles que se aceitam». O que equivale ao «slogan» que tanto repetimos a seguir às eleições-farsa de 1969, quando a chamada «primavera caetanista» começou a cerrar-se num rigoroso inverno de perseguições: «só é vencido quem desiste de lutar!».

A Fundação Mário Soares quis associar-se, modestamente, a esta tão merecida como didáctica comemoração. É preciso não deixar esquecer, pela usura do tempo, nem a vida nem a obra das nossas grandes referências cívicas. Ora, para aqueles que lutaram contra a ditadura e assumiram responsabilidades após a liberdade trazida pela Revolução dos Cravos, a figura de Bento Caraça surge como uma referência incontornável. Resolveu, assim, a Fundação Mário Soares, no 100º aniversário do nascimento de Bento de Jesus Caraça, abrir ao público, na Fundação, em suporte digital, todo o espólio científico, cultural, político e pessoal do ilustre professor, nela depositado pelo seu único filho, o prof. João Caraça. A par disso, em Novembro próximo, tenciona a Fundação Mário Soares realizar uma série de conferências sobre a vida, a obra e a personalidade de Bento Caraça, editar um CD-ROM e colocar na Internet diversos materiais relativos à sua acção, bem como realizar uma exposição fotográfica e iconográfica, incluindo a reprodução de interessantes fotografias da sua autoria. Far-se-á deste modo algo de comparável às iniciativas que acabaram de ter lugar em homenagem a Manuel Mendes, grande amigo e compadre de Bento Caraça.

A passagem deste aniversário fez-me recordar os anos (já tão distantes, infelizmente) em que conheci e depois convivi, quase diariamente, com Bento de Jesus Caraça, até ao seu falecimento, em 25 de Junho de 1948. Não tinha ainda 21 anos - a maioridade, nessa época - e estávamos a ponto de formar o que viria a ser um dos maiores movimentos de massas estudantis contra o Estado Novo. Estávamos no final da guerra, em Outubro de 1945, imediatamente a seguir à célebre reunião do Centro Republicano Almirante Reis, onde surgiu o depois chamado Movimento de Unidade Democrática (MUD). O ambiente era de festa e de esperança: todos estávamos convencidos de que Salazar cairia, arrastado pelos «ventos da democracia» que sopravam em todo o mundo, com o fim da guerra e a derrota do nazi-fascismo. Como poderia o ditador português subsistir?

Eu tinha sido encarregado por um grupo reduzido de colegas de várias faculdades da Universidade de Lisboa de redigir o manifesto-proclamação que daria lugar ao MUD Juvenil, com as grandes reivindicações estudantis da época. Por sugestão de um colega de Economia, Nóvoa, aceitei ir à Rua Almeida e Sousa, onde ele morava, visitar o professor Caraça, para lhe dar a conhecer o referido manifesto. Nunca o tinha visto, senão de passagem, uma vez, na livraria Sá da Costa. Bento Jesus Caraça era então professor catedrático - e nesse tempo os professores tinham o hábito de marcar as suas distâncias em relação aos alunos. Imagine-se o efeito que essa visita me produziu!

Caraça era um homem extraordinário, parecendo muito mais velho do que na realidade era, com uma cabeça linda, aureolada de branco, uns olhos doces e perscrutadores - que pareciam trespassar-nos, ver e compreender tudo - e uma inteligência e uma bondade transparentes. Acolheu-me com uma simplicidade e uma gentileza que me cativaram, inesquecíveis. Encorajou-me, limitando-se a sugerir-me brevíssimas correcções do texto que lhe submeti. Saí de lá como seu admirador incondicional e discípulo, para toda a vida...

Depois, convivi quase diariamente com Bento Caraça. O MUD reorganizou a sua Comissão Central e eu fui convidado a pertencer, como representante da juventude, à nova Comissão, presidida pelo prof. Mário de Azevedo Gomes, outro cidadão exemplar, e na qual tinham assento Bento de Jesus Caraça, Hélder Ribeiro, Manuel Mendes, Maria Isabel Aboim Inglês, Mayer Garção, Tito de Morais, Lobo Vilela e Luciano Serão de Moura. As condições políticas eram difíceis, a polícia política vigiava-nos de perto, algumas vezes fomos presos e processados, mas a coragem do grupo e a fraternidade que entre todos se estabeleceu era muito estimulante. Foi um convívio político de mais de três anos, para mim desvanecedor e inesquecível, de que, um dia, talvez tenha a oportunidade de falar, com mais vagar. Constituiu a minha primeira escola cívica. Os valores que então aprendi ainda hoje me guiam.

msoares@fmsoares.pt

No centenário de um saudoso amigo

Mário Soares

«As condições políticas eram difíceis, a polícia política vigiava-nos de perto, algumas vezes fomos presos e processados, mas a coragem do grupo e a fraternidade que entre todos se estabeleceu era muito estimulante. Foi um convívio político de mais de três anos, para mim desvanecedor e inesquecível, de que, um dia, talvez tenha a oportunidade de falar, com mais vagar. Constituiu a minha primeira escola cívica. Os valores que então aprendi de Bento de Jesus Caraça ainda hoje me guiam.»

PASSOU na quarta-feira, 18 deste mês de Abril, o centenário do nascimento de Bento de Jesus Caraça. A data foi assinalada, com grande dignidade, numa sessão solene organizada pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) - o antigo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, ao Quelhas, de que Caraça foi aluno, professor ilustre e depois demitido compulsivamente (em 1946) pelo arbítrio de Salazar.

A sessão comemorativa, presidida pelo senhor Presidente da República, teve como oradores principais os professores José Barata Moura e José Tengarrinha. Além desta cerimónia, significativa e marcante, (a que infelizmente não pude assistir) estão previstas para o próximos meses vários actos comemorativos, em diferentes lugares do país: conferências, colóquios, exposições e ainda a publicação de uma importante biografia de Bento de Jesus Caraça de autoria da conhecida jornalista e conceituada professora drª. Helena Neves.

O jornal «Público» também dedicou três páginas à efeméride, intituladas «O homem das benditas ilusões», inserindo excelentes artigos de António Melo, Raquel Marques e Helena Neves e duas interessantes entrevistas: do prof. João Caraça (filho do homenageado) e do professor Emídio Guerreiro. O título «benditas ilusões» foi sugerido, seguramente, pelo texto de António Melo em que se citam umas frases muito significativas de Bento Caraça. Permito-me reproduzi-las: «As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir». E ainda: «derrotas só existem aqueles que se aceitam». O que equivale ao «slogan» que tanto repetimos a seguir às eleições-farsa de 1969, quando a chamada «primavera caetanista» começou a cerrar-se num rigoroso inverno de perseguições: «só é vencido quem desiste de lutar!».

A Fundação Mário Soares quis associar-se, modestamente, a esta tão merecida como didáctica comemoração. É preciso não deixar esquecer, pela usura do tempo, nem a vida nem a obra das nossas grandes referências cívicas. Ora, para aqueles que lutaram contra a ditadura e assumiram responsabilidades após a liberdade trazida pela Revolução dos Cravos, a figura de Bento Caraça surge como uma referência incontornável. Resolveu, assim, a Fundação Mário Soares, no 100º aniversário do nascimento de Bento de Jesus Caraça, abrir ao público, na Fundação, em suporte digital, todo o espólio científico, cultural, político e pessoal do ilustre professor, nela depositado pelo seu único filho, o prof. João Caraça. A par disso, em Novembro próximo, tenciona a Fundação Mário Soares realizar uma série de conferências sobre a vida, a obra e a personalidade de Bento Caraça, editar um CD-ROM e colocar na Internet diversos materiais relativos à sua acção, bem como realizar uma exposição fotográfica e iconográfica, incluindo a reprodução de interessantes fotografias da sua autoria. Far-se-á deste modo algo de comparável às iniciativas que acabaram de ter lugar em homenagem a Manuel Mendes, grande amigo e compadre de Bento Caraça.

A passagem deste aniversário fez-me recordar os anos (já tão distantes, infelizmente) em que conheci e depois convivi, quase diariamente, com Bento de Jesus Caraça, até ao seu falecimento, em 25 de Junho de 1948. Não tinha ainda 21 anos - a maioridade, nessa época - e estávamos a ponto de formar o que viria a ser um dos maiores movimentos de massas estudantis contra o Estado Novo. Estávamos no final da guerra, em Outubro de 1945, imediatamente a seguir à célebre reunião do Centro Republicano Almirante Reis, onde surgiu o depois chamado Movimento de Unidade Democrática (MUD). O ambiente era de festa e de esperança: todos estávamos convencidos de que Salazar cairia, arrastado pelos «ventos da democracia» que sopravam em todo o mundo, com o fim da guerra e a derrota do nazi-fascismo. Como poderia o ditador português subsistir?

Eu tinha sido encarregado por um grupo reduzido de colegas de várias faculdades da Universidade de Lisboa de redigir o manifesto-proclamação que daria lugar ao MUD Juvenil, com as grandes reivindicações estudantis da época. Por sugestão de um colega de Economia, Nóvoa, aceitei ir à Rua Almeida e Sousa, onde ele morava, visitar o professor Caraça, para lhe dar a conhecer o referido manifesto. Nunca o tinha visto, senão de passagem, uma vez, na livraria Sá da Costa. Bento Jesus Caraça era então professor catedrático - e nesse tempo os professores tinham o hábito de marcar as suas distâncias em relação aos alunos. Imagine-se o efeito que essa visita me produziu!

Caraça era um homem extraordinário, parecendo muito mais velho do que na realidade era, com uma cabeça linda, aureolada de branco, uns olhos doces e perscrutadores - que pareciam trespassar-nos, ver e compreender tudo - e uma inteligência e uma bondade transparentes. Acolheu-me com uma simplicidade e uma gentileza que me cativaram, inesquecíveis. Encorajou-me, limitando-se a sugerir-me brevíssimas correcções do texto que lhe submeti. Saí de lá como seu admirador incondicional e discípulo, para toda a vida...

Depois, convivi quase diariamente com Bento Caraça. O MUD reorganizou a sua Comissão Central e eu fui convidado a pertencer, como representante da juventude, à nova Comissão, presidida pelo prof. Mário de Azevedo Gomes, outro cidadão exemplar, e na qual tinham assento Bento de Jesus Caraça, Hélder Ribeiro, Manuel Mendes, Maria Isabel Aboim Inglês, Mayer Garção, Tito de Morais, Lobo Vilela e Luciano Serão de Moura. As condições políticas eram difíceis, a polícia política vigiava-nos de perto, algumas vezes fomos presos e processados, mas a coragem do grupo e a fraternidade que entre todos se estabeleceu era muito estimulante. Foi um convívio político de mais de três anos, para mim desvanecedor e inesquecível, de que, um dia, talvez tenha a oportunidade de falar, com mais vagar. Constituiu a minha primeira escola cívica. Os valores que então aprendi ainda hoje me guiam.

msoares@fmsoares.pt

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