EXPRESSO: Opinião

02-05-2001
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OPINIÃO

No centenário de um saudoso amigo Mário Soares

«As condições políticas eram difíceis, a polícia política vigiava-nos de perto, algumas vezes fomos presos e processados, mas a coragem do grupo e a fraternidade que entre todos se estabeleceu era muito estimulante. Foi um convívio político de mais de três anos, para mim desvanecedor e inesquecível, de que, um dia, talvez tenha a oportunidade de falar, com mais vagar. Constituiu a minha primeira escola cívica. Os valores que então aprendi de Bento de Jesus Caraça ainda hoje me guiam.» PASSOU na quarta-feira, 18 deste mês de Abril, o centenário do nascimento de Bento de Jesus Caraça. A data foi assinalada, com grande dignidade, numa sessão solene organizada pelo Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG) - o antigo Instituto Superior de Ciências Económicas e Financeiras, ao Quelhas, de que Caraça foi aluno, professor ilustre e depois demitido compulsivamente (em 1946) pelo arbítrio de Salazar. A sessão comemorativa, presidida pelo senhor Presidente da República, teve como oradores principais os professores José Barata Moura e José Tengarrinha. Além desta cerimónia, significativa e marcante, (a que infelizmente não pude assistir) estão previstas para o próximos meses vários actos comemorativos, em diferentes lugares do país: conferências, colóquios, exposições e ainda a publicação de uma importante biografia de Bento de Jesus Caraça de autoria da conhecida jornalista e conceituada professora drª. Helena Neves. O jornal «Público» também dedicou três páginas à efeméride, intituladas «O homem das benditas ilusões», inserindo excelentes artigos de António Melo, Raquel Marques e Helena Neves e duas interessantes entrevistas: do prof. João Caraça (filho do homenageado) e do professor Emídio Guerreiro. O título «benditas ilusões» foi sugerido, seguramente, pelo texto de António Melo em que se citam umas frases muito significativas de Bento Caraça. Permito-me reproduzi-las: «As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir». E ainda: «derrotas só existem aqueles que se aceitam». O que equivale ao «slogan» que tanto repetimos a seguir às eleições-farsa de 1969, quando a chamada «primavera caetanista» começou a cerrar-se num rigoroso inverno de perseguições: «só é vencido quem desiste de lutar!». A Fundação Mário Soares quis associar-se, modestamente, a esta tão merecida como didáctica comemoração. É preciso não deixar esquecer, pela usura do tempo, nem a vida nem a obra das nossas grandes referências cívicas. Ora, para aqueles que lutaram contra a ditadura e assumiram responsabilidades após a liberdade trazida pela Revolução dos Cravos, a figura de Bento Caraça surge como uma referência incontornável. Resolveu, assim, a Fundação Mário Soares, no 100º aniversário do nascimento de Bento de Jesus Caraça, abrir ao público, na Fundação, em suporte digital, todo o espólio científico, cultural, político e pessoal do ilustre professor, nela depositado pelo seu único filho, o prof. João Caraça. A par disso, em Novembro próximo, tenciona a Fundação Mário Soares realizar uma série de conferências sobre a vida, a obra e a personalidade de Bento Caraça, editar um CD-ROM e colocar na Internet diversos materiais relativos à sua acção, bem como realizar uma exposição fotográfica e iconográfica, incluindo a reprodução de interessantes fotografias da sua autoria. Far-se-á deste modo algo de comparável às iniciativas que acabaram de ter lugar em homenagem a Manuel Mendes, grande amigo e compadre de Bento Caraça. A passagem deste aniversário fez-me recordar os anos (já tão distantes, infelizmente) em que conheci e depois convivi, quase diariamente, com Bento de Jesus Caraça, até ao seu falecimento, em 25 de Junho de 1948. Não tinha ainda 21 anos - a maioridade, nessa época - e estávamos a ponto de formar o que viria a ser um dos maiores movimentos de massas estudantis contra o Estado Novo. Estávamos no final da guerra, em Outubro de 1945, imediatamente a seguir à célebre reunião do Centro Republicano Almirante Reis, onde surgiu o depois chamado Movimento de Unidade Democrática (MUD). O ambiente era de festa e de esperança: todos estávamos convencidos de que Salazar cairia, arrastado pelos «ventos da democracia» que sopravam em todo o mundo, com o fim da guerra e a derrota do nazi-fascismo. Como poderia o ditador português subsistir? Eu tinha sido encarregado por um grupo reduzido de colegas de várias faculdades da Universidade de Lisboa de redigir o manifesto-proclamação que daria lugar ao MUD Juvenil, com as grandes reivindicações estudantis da época. Por sugestão de um colega de Economia, Nóvoa, aceitei ir à Rua Almeida e Sousa, onde ele morava, visitar o professor Caraça, para lhe dar a conhecer o referido manifesto. Nunca o tinha visto, senão de passagem, uma vez, na livraria Sá da Costa. Bento Jesus Caraça era então professor catedrático - e nesse tempo os professores tinham o hábito de marcar as suas distâncias em relação aos alunos. Imagine-se o efeito que essa visita me produziu! Caraça era um homem extraordinário, parecendo muito mais velho do que na realidade era, com uma cabeça linda, aureolada de branco, uns olhos doces e perscrutadores - que pareciam trespassar-nos, ver e compreender tudo - e uma inteligência e uma bondade transparentes. Acolheu-me com uma simplicidade e uma gentileza que me cativaram, inesquecíveis. Encorajou-me, limitando-se a sugerir-me brevíssimas correcções do texto que lhe submeti. Saí de lá como seu admirador incondicional e discípulo, para toda a vida... Depois, convivi quase diariamente com Bento Caraça. O MUD reorganizou a sua Comissão Central e eu fui convidado a pertencer, como representante da juventude, à nova Comissão, presidida pelo prof. Mário de Azevedo Gomes, outro cidadão exemplar, e na qual tinham assento Bento de Jesus Caraça, Hélder Ribeiro, Manuel Mendes, Maria Isabel Aboim Inglês, Mayer Garção, Tito de Morais, Lobo Vilela e Luciano Serão de Moura. As condições políticas eram difíceis, a polícia política vigiava-nos de perto, algumas vezes fomos presos e processados, mas a coragem do grupo e a fraternidade que entre todos se estabeleceu era muito estimulante. Foi um convívio político de mais de três anos, para mim desvanecedor e inesquecível, de que, um dia, talvez tenha a oportunidade de falar, com mais vagar. Constituiu a minha primeira escola cívica. Os valores que então aprendi ainda hoje me guiam. msoares@fmsoares.pt

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11 comentários 11 a 11

21 Abril 2001 às 14:18

Miguel António Ferreira

Caro Mário Soares

És um gajo porreiro. O mais Português de todos os Portugueses. Interpretas o que de mais Lusíada existe na actualidade. Sabemos que gostas acima de tudo de ti próprio, que tens um ego do tamanho do Cristo-Rei ou da Torre dos Clérigos. Adoras que te considerem o patrono da democracia Portuguesa, o salvador da Pátria contra fascistas e comunistas, o defensor inveterado da modernidade e da integração Europeia. És o galo de Barcelos do equilíbrio e do bom-senso que os Portugueses, como massa colectiva, acabam por assumir nos momentos mais decisivos da sua História. Mesmo que isso signifique a resignação à mediania. És uma bofetada eloquente na tristeza proverbial e na nostalgia quase fatídica do nosso povo. Abençoado sejas Mário Soares! Sabemos também que sabes essencialmente pouco àcerca de quase tudo. Que és sobretudo um verbo de encher que gosta tanto de se exibir rodeado por livros de que não tiras qualquer erudição. É que a tua sabedoria não tem nada a ver com livros, com estudo, com tecnicidade. A tua sabedoria é feita de manha, de intuição, de uma especial sensibilidade ao que de mais profundo te faz identificar com a alma Portuguesa. A tua superioridade consiste em tratar ao mesmo nível aldeões, putativos intelectuais, ricaços de estirpe, novos-ricos, padres, maçons e todas as igrejas e clubes imagináveis. És um fenómeno, Mário. Com o teu meteórico percurso pessoal, que vai muito para além do teu percurso político, pulverizaste todos os emblemas de Portugal, desde Camões até à Amália passando pelo Figo de fresco sucesso. És grande, imenso, Mário Soares. Tens até o despudor de elogiar pessoas, como o Bento de Jesus Caraça, de uma envergadura intelectual e humana que te transforma no mais rasteiro feirante de vaidades. Bem sei que esses elogios servem fundamentalmente para valorizar ainda mais a tua postura politica e socialmente correcta, elevando assim a estima que procuras junto de todos os sectores da nossa sociedade. Porque a tua consagração não pode ser senão unânime, não é verdade? Por isso pescas em todas as àguas, por isso és um homem profundamente institucional, nacional e patriótico. Não te preocupes. Podes mesmo descansar um pouco, poupar a teatralidade das tuas exibições, os teus gestos largos perante as câmaras da televisão, a entoação encimesmada da tua voz a dizer banalidades. O teu lugar cimeiro na galeria dos mais lídimos Portugueses está assegurado. Mário: és inesquecível! Sobreviverás a todas as mortes, serás eterno nos livros de história, a nossa memória conservar-te-á intacto na tua grandeza e nas tuas misérias. Podes agora repousar tranquilo. Porque deves saber que escolher o momento exacto de sair de cena é também um acto de inteligência. Não te arrastes em jogos de divisões menores. A tua glória foi adquirida na 1a. divisão do campeonato Português. De facto, a genuinidade do teu portuguesismo também se avalia pela tua clara e objectiva incapacidade de penetrar palcos de dimensão internacional. Porque - sabes bem - que lá fora ninguém te leva a sério. Foste importante para estabilizar este canto da Europa removendo preocupações de importantes centros de poder nos Estados Unidos e na Europa. Mas, sempre foste um serventuário da democracia ocidental no teu país, um peão útil no país de que a maioria dos Americanos nem sequer conhece a existência. Nunca ninguém te considerou um cidadão do mundo. Tu - graças a Deus! - és uma entidade local. Não és um protagonista da globalização, sei que não o queres ser, mas também não o poderias ser. O teu universalismo acaba na tua biblioteca adorada, nos milhares de livros que nunca leste e que legarás com tanto altruísmo à tua Fundação.

Caro Mário

Desculpa por te ocupar tanto tempo. Provavelmente não lerás esta crónica que considerarás, de qualquer modo, apenas mais uma de tantas manifestações de rancor contra o teu sucesso. Um desabafo de um desequilibrado ou deprimido que não tinha mais nada que fazer num Sábado à tarde para além de destilar fel sobre um seu concidadão notório. Cada um tem direito aos amigos e inimigos que merece e sei que o teu dinamismo se alimenta também - talvez sobretudo - dos teus inimigos, das tuas oposições. Tu és um lutador, reages à contradição com fibra, renasces de cada vez mais convicto da tua superioridade. Paradoxalmente, portanto, ter-te-ei ajudado. No fundo, não te quero nenhum mal. És apenas um objecto do meu cínismo, um cinismo que Schopennauer dizia ser o perfume da lucidez. Seja como for, estou seguro de que és muito mais feliz do que eu, não obstante a minha presunção de lucidez. Para que diabo serve a lucidez?

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A sessão comemorativa, presidida pelo senhor Presidente da República, teve como oradores principais os professores José Barata Moura e José Tengarrinha. Além desta cerimónia, significativa e marcante, (a que infelizmente não pude assistir) estão previstas para o próximos meses vários actos comemorativos, em diferentes lugares do país: conferências, colóquios, exposições e ainda a publicação de uma importante biografia de Bento de Jesus Caraça de autoria da conhecida jornalista e conceituada professora drª. Helena Neves. O jornal «Público» também dedicou três páginas à efeméride, intituladas «O homem das benditas ilusões», inserindo excelentes artigos de António Melo, Raquel Marques e Helena Neves e duas interessantes entrevistas: do prof. João Caraça (filho do homenageado) e do professor Emídio Guerreiro. O título «benditas ilusões» foi sugerido, seguramente, pelo texto de António Melo em que se citam umas frases muito significativas de Bento Caraça. Permito-me reproduzi-las: «As ilusões nunca são perdidas. Elas significam o que há de melhor na vida dos homens e dos povos. Perdidos são os cépticos que escondem sob uma ironia fácil a sua impotência para compreender e agir». E ainda: «derrotas só existem aqueles que se aceitam». O que equivale ao «slogan» que tanto repetimos a seguir às eleições-farsa de 1969, quando a chamada «primavera caetanista» começou a cerrar-se num rigoroso inverno de perseguições: «só é vencido quem desiste de lutar!». A Fundação Mário Soares quis associar-se, modestamente, a esta tão merecida como didáctica comemoração. É preciso não deixar esquecer, pela usura do tempo, nem a vida nem a obra das nossas grandes referências cívicas. Ora, para aqueles que lutaram contra a ditadura e assumiram responsabilidades após a liberdade trazida pela Revolução dos Cravos, a figura de Bento Caraça surge como uma referência incontornável. Resolveu, assim, a Fundação Mário Soares, no 100º aniversário do nascimento de Bento de Jesus Caraça, abrir ao público, na Fundação, em suporte digital, todo o espólio científico, cultural, político e pessoal do ilustre professor, nela depositado pelo seu único filho, o prof. João Caraça. A par disso, em Novembro próximo, tenciona a Fundação Mário Soares realizar uma série de conferências sobre a vida, a obra e a personalidade de Bento Caraça, editar um CD-ROM e colocar na Internet diversos materiais relativos à sua acção, bem como realizar uma exposição fotográfica e iconográfica, incluindo a reprodução de interessantes fotografias da sua autoria. Far-se-á deste modo algo de comparável às iniciativas que acabaram de ter lugar em homenagem a Manuel Mendes, grande amigo e compadre de Bento Caraça. A passagem deste aniversário fez-me recordar os anos (já tão distantes, infelizmente) em que conheci e depois convivi, quase diariamente, com Bento de Jesus Caraça, até ao seu falecimento, em 25 de Junho de 1948. Não tinha ainda 21 anos - a maioridade, nessa época - e estávamos a ponto de formar o que viria a ser um dos maiores movimentos de massas estudantis contra o Estado Novo. Estávamos no final da guerra, em Outubro de 1945, imediatamente a seguir à célebre reunião do Centro Republicano Almirante Reis, onde surgiu o depois chamado Movimento de Unidade Democrática (MUD). O ambiente era de festa e de esperança: todos estávamos convencidos de que Salazar cairia, arrastado pelos «ventos da democracia» que sopravam em todo o mundo, com o fim da guerra e a derrota do nazi-fascismo. Como poderia o ditador português subsistir? Eu tinha sido encarregado por um grupo reduzido de colegas de várias faculdades da Universidade de Lisboa de redigir o manifesto-proclamação que daria lugar ao MUD Juvenil, com as grandes reivindicações estudantis da época. Por sugestão de um colega de Economia, Nóvoa, aceitei ir à Rua Almeida e Sousa, onde ele morava, visitar o professor Caraça, para lhe dar a conhecer o referido manifesto. Nunca o tinha visto, senão de passagem, uma vez, na livraria Sá da Costa. Bento Jesus Caraça era então professor catedrático - e nesse tempo os professores tinham o hábito de marcar as suas distâncias em relação aos alunos. Imagine-se o efeito que essa visita me produziu! Caraça era um homem extraordinário, parecendo muito mais velho do que na realidade era, com uma cabeça linda, aureolada de branco, uns olhos doces e perscrutadores - que pareciam trespassar-nos, ver e compreender tudo - e uma inteligência e uma bondade transparentes. Acolheu-me com uma simplicidade e uma gentileza que me cativaram, inesquecíveis. Encorajou-me, limitando-se a sugerir-me brevíssimas correcções do texto que lhe submeti. Saí de lá como seu admirador incondicional e discípulo, para toda a vida... Depois, convivi quase diariamente com Bento Caraça. O MUD reorganizou a sua Comissão Central e eu fui convidado a pertencer, como representante da juventude, à nova Comissão, presidida pelo prof. Mário de Azevedo Gomes, outro cidadão exemplar, e na qual tinham assento Bento de Jesus Caraça, Hélder Ribeiro, Manuel Mendes, Maria Isabel Aboim Inglês, Mayer Garção, Tito de Morais, Lobo Vilela e Luciano Serão de Moura. As condições políticas eram difíceis, a polícia política vigiava-nos de perto, algumas vezes fomos presos e processados, mas a coragem do grupo e a fraternidade que entre todos se estabeleceu era muito estimulante. Foi um convívio político de mais de três anos, para mim desvanecedor e inesquecível, de que, um dia, talvez tenha a oportunidade de falar, com mais vagar. Constituiu a minha primeira escola cívica. Os valores que então aprendi ainda hoje me guiam. msoares@fmsoares.pt

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Miguel António Ferreira

Caro Mário Soares

És um gajo porreiro. O mais Português de todos os Portugueses. Interpretas o que de mais Lusíada existe na actualidade. Sabemos que gostas acima de tudo de ti próprio, que tens um ego do tamanho do Cristo-Rei ou da Torre dos Clérigos. Adoras que te considerem o patrono da democracia Portuguesa, o salvador da Pátria contra fascistas e comunistas, o defensor inveterado da modernidade e da integração Europeia. És o galo de Barcelos do equilíbrio e do bom-senso que os Portugueses, como massa colectiva, acabam por assumir nos momentos mais decisivos da sua História. Mesmo que isso signifique a resignação à mediania. És uma bofetada eloquente na tristeza proverbial e na nostalgia quase fatídica do nosso povo. Abençoado sejas Mário Soares! Sabemos também que sabes essencialmente pouco àcerca de quase tudo. Que és sobretudo um verbo de encher que gosta tanto de se exibir rodeado por livros de que não tiras qualquer erudição. É que a tua sabedoria não tem nada a ver com livros, com estudo, com tecnicidade. A tua sabedoria é feita de manha, de intuição, de uma especial sensibilidade ao que de mais profundo te faz identificar com a alma Portuguesa. A tua superioridade consiste em tratar ao mesmo nível aldeões, putativos intelectuais, ricaços de estirpe, novos-ricos, padres, maçons e todas as igrejas e clubes imagináveis. És um fenómeno, Mário. Com o teu meteórico percurso pessoal, que vai muito para além do teu percurso político, pulverizaste todos os emblemas de Portugal, desde Camões até à Amália passando pelo Figo de fresco sucesso. És grande, imenso, Mário Soares. Tens até o despudor de elogiar pessoas, como o Bento de Jesus Caraça, de uma envergadura intelectual e humana que te transforma no mais rasteiro feirante de vaidades. Bem sei que esses elogios servem fundamentalmente para valorizar ainda mais a tua postura politica e socialmente correcta, elevando assim a estima que procuras junto de todos os sectores da nossa sociedade. Porque a tua consagração não pode ser senão unânime, não é verdade? Por isso pescas em todas as àguas, por isso és um homem profundamente institucional, nacional e patriótico. Não te preocupes. Podes mesmo descansar um pouco, poupar a teatralidade das tuas exibições, os teus gestos largos perante as câmaras da televisão, a entoação encimesmada da tua voz a dizer banalidades. O teu lugar cimeiro na galeria dos mais lídimos Portugueses está assegurado. Mário: és inesquecível! Sobreviverás a todas as mortes, serás eterno nos livros de história, a nossa memória conservar-te-á intacto na tua grandeza e nas tuas misérias. Podes agora repousar tranquilo. Porque deves saber que escolher o momento exacto de sair de cena é também um acto de inteligência. Não te arrastes em jogos de divisões menores. A tua glória foi adquirida na 1a. divisão do campeonato Português. De facto, a genuinidade do teu portuguesismo também se avalia pela tua clara e objectiva incapacidade de penetrar palcos de dimensão internacional. Porque - sabes bem - que lá fora ninguém te leva a sério. Foste importante para estabilizar este canto da Europa removendo preocupações de importantes centros de poder nos Estados Unidos e na Europa. Mas, sempre foste um serventuário da democracia ocidental no teu país, um peão útil no país de que a maioria dos Americanos nem sequer conhece a existência. Nunca ninguém te considerou um cidadão do mundo. Tu - graças a Deus! - és uma entidade local. Não és um protagonista da globalização, sei que não o queres ser, mas também não o poderias ser. O teu universalismo acaba na tua biblioteca adorada, nos milhares de livros que nunca leste e que legarás com tanto altruísmo à tua Fundação.

Caro Mário

Desculpa por te ocupar tanto tempo. Provavelmente não lerás esta crónica que considerarás, de qualquer modo, apenas mais uma de tantas manifestações de rancor contra o teu sucesso. Um desabafo de um desequilibrado ou deprimido que não tinha mais nada que fazer num Sábado à tarde para além de destilar fel sobre um seu concidadão notório. Cada um tem direito aos amigos e inimigos que merece e sei que o teu dinamismo se alimenta também - talvez sobretudo - dos teus inimigos, das tuas oposições. Tu és um lutador, reages à contradição com fibra, renasces de cada vez mais convicto da tua superioridade. Paradoxalmente, portanto, ter-te-ei ajudado. No fundo, não te quero nenhum mal. És apenas um objecto do meu cínismo, um cinismo que Schopennauer dizia ser o perfume da lucidez. Seja como for, estou seguro de que és muito mais feliz do que eu, não obstante a minha presunção de lucidez. Para que diabo serve a lucidez?

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