Um Fragmento Sobre Bento Caraça

02-05-2001
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Um Fragmento Sobre Bento Caraça

Por HELENA NEVES

Quarta-feira, 18 de Abril de 2001 A minha relação com o género biográfico é conflituosa. Pelo meu repúdio da ilusão logocêntrica da objectividade pura. Pela incomensuralidade da vida, de qualquer vida. Pelo que Ferraroti designa pela "subjectividade explosiva" do biográfico. Porque a memória é sempre uma construção, feita através do contágio das memórias individuais pelas memórias sociais e da contaminação inevitável dos afectos. Daí que toda a biografia seja, por natureza, algo fragmentário Dai também o fascínio da género biográfico. O excesso que ameaça quem o escreve e singulariza a experiência de quem lê. Esta relação conflituosa tenho-a vivido intensamente ao abordar a vida de Bento de Jesus Caraça. Depois de uma certa desconfiança face ao uníssono da memória seduzida transmitida pelos seus contemporâneos, depois do receio da armadilha de um panegírico dissimulado, eis-me no terreno da rendição, árduo o esforço do distanciamento. Porque Bento de Jesus Caraça é, de facto, um indivíduo invulgar. Invulgaridade que o libertou, logo na infância do "destino" a que a origem de classe (filho de trabalhadores rurais alentejanos) e o meio o condenavam. Invulgaridade que marcou os espaços por si percorridos, a acção política íntima à sua vivência, os amigos e até inimigos. Marcou as memórias. Marca a biografia. E fica patente no notável trabalho de recolha da obra ignorada e esquecida e da correspondência de Bento Caraça que Alberto Pedroso, seu estudioso de há muito, está a elaborar. Esta invulgaridade sobressai ainda mais quando, além do mestre, do político, encontramos neles, o homem teimoso, os seus amuos, a sua relutância em perder fosse no bilhar, jogado nos Cafés Portugal, Nicola, Gelo, amiudadas vezes com o amigo de sempre Luís Dias Amado, fosse nos jogos de praia no imenso areal da Costa da Caparica, o gosto de liderar mesmo nos acampamentos na Serra da Estrela, a sua infantilidade nas brincadeiras com Keil do Amaral, José Gomes Ferreira, Lopes Graça, contadas por Maria Keil, com aquele riso doce que mantém. Entre o muito descoberto no espólio, depositado por seu filho, João Caraça, na Fundação Mário Soares, à consulta desde o ano passado, ressalta, apesar de já dito e redito, a sua espantosa avidez de conhecer e dar a conhecer, a sua relação apaixonada com a leitura, a palavra, a sua surpresa atenta às novas expressões estéticas, das quais o neo-realismo, importantíssimo movimento artístico e social não constitui a única vertente. Apenas um breve apontamento. São conhecidos o impulso que, sob a sua presidência teve a Universidade Popular, cujo papel na divulgação cultural, mesmo relativamente ao pensamento de vanguarda internacional está por estudar, e a criação da Biblioteca Cosmos, "Estados Gerais da Inteligência Portuguesa" nas palavras de Magalhães Godinho, da qual resultaram desde 1941 até 1948, data da morte de Caraça, 145 volumes publicados com cerca de oitocentos mil exemplares. Já é menos conhecida a sua ligação à produção dos intelectuais intervenientes no combate ao fascismo e à guerra, no final dos anos vinte e nos anos trinta, onde pontuam Romain Rolland, paradigma do novo tipo de intelectual para Caraça, Barbusse, mas também André Gide, André Breton, Jean Giono. Grupo que inspirará a sua acção pela unidade de intelectuais na Liga Contra a Guerra e o Fascismo, criada por Bento Caraça e o seu envolvimento na breve Frente Popular Portuguesa. Bento Caraça conhece, recebe até por via da cumplicidade de livreiros como o senhor Correia à frente da Livraria Sá da Costa e de outros, muito do que de mais significativo se publica na frente de intelectuais nos anos trinta e quarenta: La Verité, revista da qual Bento transcreve frases de Trostky, a quem admira, Vendredi, o jornal publicado a partir de Novembro de 1935, plataforma ideológica da Frente Popular, L'Esprit, Europe, e outros órgãos como o Harper Magazyne de que é leitor habitual. Estas influências terão fundamentado a perspectiva mais ampla da sua concepção artística que, embora enraizada ideologicamente no neo-realismo, o ultrapassa. O que é visível quer na sua admiração por António Pedro, pintor, em cujos escritos em 1931 emerge o movimento surrealista português, quer na sua teorização sobre arte que se afirma outra face ao contexto dominante da época e do seu grupo de referência : "À fórmula simplista da arte ao serviço do social, Bento de Jesus Caraça substitui o conceito de comunhão humana" escreve Mário Dionísio na Seara Nova (n.º1596/1597, Outubro-Novembro 1978 ). Os seus contactos com a intelectualidade comprometida passam também por uma base de apoio a presos dos campos de concentração nazis instalados em França, apoio do qual toma pessoalmente a iniciativa, constituindo uma equipa com Maria Helena Pulido Valente, Guida Lamy, Alice Lamy a Carlota Lamy, mulheres fundamentais na actividade da Associação Portuguesa Feminina para a Paz. Neste âmbito, por intermédio de Rodrigues Miguéis, cúmplice de militâncias várias e companheiro da fundação do Globo, em 1933, do qual só serão editados dois números, manterá contactos até o final da guerra contactos com a League of American Writers, presidida por Donald Ogden Stewart e da qual Dashiell Hammet é um dos vice presidentes. A correspondência deste período, como aliás a de outros revela até que ponto Caraça se envolvia apaixonadamente em causas para ele sempre vivenciais. E como contagiava os outros com este envolvimento. Cem anos após o seu nascimento, permanece contagiante o seu pensamento, a sua vida. Fascinando. Os biógrafos e estudiosos que o digam. Helena Neves, ex-jornalista e professora de Pensamento Contemporâneo, está a recolher elementos para uma biografia de Bento de Jesus Caraça, a publicar no segundo semestre deste ano e integrada nas comemorações do centenário OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE O homem das "benditas ilusões"

A ciência não pode ser asséptica

O primeiro divulgador científico português

"Caraça tem razão"

DATAS

Um Fragmento Sobre Bento Caraça

Iniciativas do centenário

Um Fragmento Sobre Bento Caraça

Por HELENA NEVES

Quarta-feira, 18 de Abril de 2001 A minha relação com o género biográfico é conflituosa. Pelo meu repúdio da ilusão logocêntrica da objectividade pura. Pela incomensuralidade da vida, de qualquer vida. Pelo que Ferraroti designa pela "subjectividade explosiva" do biográfico. Porque a memória é sempre uma construção, feita através do contágio das memórias individuais pelas memórias sociais e da contaminação inevitável dos afectos. Daí que toda a biografia seja, por natureza, algo fragmentário Dai também o fascínio da género biográfico. O excesso que ameaça quem o escreve e singulariza a experiência de quem lê. Esta relação conflituosa tenho-a vivido intensamente ao abordar a vida de Bento de Jesus Caraça. Depois de uma certa desconfiança face ao uníssono da memória seduzida transmitida pelos seus contemporâneos, depois do receio da armadilha de um panegírico dissimulado, eis-me no terreno da rendição, árduo o esforço do distanciamento. Porque Bento de Jesus Caraça é, de facto, um indivíduo invulgar. Invulgaridade que o libertou, logo na infância do "destino" a que a origem de classe (filho de trabalhadores rurais alentejanos) e o meio o condenavam. Invulgaridade que marcou os espaços por si percorridos, a acção política íntima à sua vivência, os amigos e até inimigos. Marcou as memórias. Marca a biografia. E fica patente no notável trabalho de recolha da obra ignorada e esquecida e da correspondência de Bento Caraça que Alberto Pedroso, seu estudioso de há muito, está a elaborar. Esta invulgaridade sobressai ainda mais quando, além do mestre, do político, encontramos neles, o homem teimoso, os seus amuos, a sua relutância em perder fosse no bilhar, jogado nos Cafés Portugal, Nicola, Gelo, amiudadas vezes com o amigo de sempre Luís Dias Amado, fosse nos jogos de praia no imenso areal da Costa da Caparica, o gosto de liderar mesmo nos acampamentos na Serra da Estrela, a sua infantilidade nas brincadeiras com Keil do Amaral, José Gomes Ferreira, Lopes Graça, contadas por Maria Keil, com aquele riso doce que mantém. Entre o muito descoberto no espólio, depositado por seu filho, João Caraça, na Fundação Mário Soares, à consulta desde o ano passado, ressalta, apesar de já dito e redito, a sua espantosa avidez de conhecer e dar a conhecer, a sua relação apaixonada com a leitura, a palavra, a sua surpresa atenta às novas expressões estéticas, das quais o neo-realismo, importantíssimo movimento artístico e social não constitui a única vertente. Apenas um breve apontamento. São conhecidos o impulso que, sob a sua presidência teve a Universidade Popular, cujo papel na divulgação cultural, mesmo relativamente ao pensamento de vanguarda internacional está por estudar, e a criação da Biblioteca Cosmos, "Estados Gerais da Inteligência Portuguesa" nas palavras de Magalhães Godinho, da qual resultaram desde 1941 até 1948, data da morte de Caraça, 145 volumes publicados com cerca de oitocentos mil exemplares. Já é menos conhecida a sua ligação à produção dos intelectuais intervenientes no combate ao fascismo e à guerra, no final dos anos vinte e nos anos trinta, onde pontuam Romain Rolland, paradigma do novo tipo de intelectual para Caraça, Barbusse, mas também André Gide, André Breton, Jean Giono. Grupo que inspirará a sua acção pela unidade de intelectuais na Liga Contra a Guerra e o Fascismo, criada por Bento Caraça e o seu envolvimento na breve Frente Popular Portuguesa. Bento Caraça conhece, recebe até por via da cumplicidade de livreiros como o senhor Correia à frente da Livraria Sá da Costa e de outros, muito do que de mais significativo se publica na frente de intelectuais nos anos trinta e quarenta: La Verité, revista da qual Bento transcreve frases de Trostky, a quem admira, Vendredi, o jornal publicado a partir de Novembro de 1935, plataforma ideológica da Frente Popular, L'Esprit, Europe, e outros órgãos como o Harper Magazyne de que é leitor habitual. Estas influências terão fundamentado a perspectiva mais ampla da sua concepção artística que, embora enraizada ideologicamente no neo-realismo, o ultrapassa. O que é visível quer na sua admiração por António Pedro, pintor, em cujos escritos em 1931 emerge o movimento surrealista português, quer na sua teorização sobre arte que se afirma outra face ao contexto dominante da época e do seu grupo de referência : "À fórmula simplista da arte ao serviço do social, Bento de Jesus Caraça substitui o conceito de comunhão humana" escreve Mário Dionísio na Seara Nova (n.º1596/1597, Outubro-Novembro 1978 ). Os seus contactos com a intelectualidade comprometida passam também por uma base de apoio a presos dos campos de concentração nazis instalados em França, apoio do qual toma pessoalmente a iniciativa, constituindo uma equipa com Maria Helena Pulido Valente, Guida Lamy, Alice Lamy a Carlota Lamy, mulheres fundamentais na actividade da Associação Portuguesa Feminina para a Paz. Neste âmbito, por intermédio de Rodrigues Miguéis, cúmplice de militâncias várias e companheiro da fundação do Globo, em 1933, do qual só serão editados dois números, manterá contactos até o final da guerra contactos com a League of American Writers, presidida por Donald Ogden Stewart e da qual Dashiell Hammet é um dos vice presidentes. A correspondência deste período, como aliás a de outros revela até que ponto Caraça se envolvia apaixonadamente em causas para ele sempre vivenciais. E como contagiava os outros com este envolvimento. Cem anos após o seu nascimento, permanece contagiante o seu pensamento, a sua vida. Fascinando. Os biógrafos e estudiosos que o digam. Helena Neves, ex-jornalista e professora de Pensamento Contemporâneo, está a recolher elementos para uma biografia de Bento de Jesus Caraça, a publicar no segundo semestre deste ano e integrada nas comemorações do centenário OUTROS TÍTULOS EM DESTAQUE O homem das "benditas ilusões"

A ciência não pode ser asséptica

O primeiro divulgador científico português

"Caraça tem razão"

DATAS

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