Movimentações...

28-05-2001
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EM FOCO

Movimentações na zona aberta

Por João Amaral

Durante a interpelação do PCP ao Governo realizada no passado dia 10 de Julho, o Ministro António Vitorino criticou o PCP por "manter uma leitura fechada da sua identidade própria", incitando-o a "enveredar decididamente pela sua modernização".

Menos de duas semanas decorridas, o reacendimento público da crise larvar que o PS vive veio mostrar que a "modernização" do PS levada a cabo pela sua actual direcção, antes de ser a razão principal para a falta de entendimento com o PCP, é a razão principal para a linha de fractura interna que o PS hoje exibe perante o país. Antes de tentar convencer(!) o PCP a "modernizar-se", o Secretário-Geral do PS teria de convencer uma parte substancial do seu próprio partido de que a "modernização" a que procedeu não o afastou decididamente da esquerda. Vai ser uma tarefa muito difícil, porque, na "modernização" do PS, António Guterres deitou fora a água do banho ... e o menino! O PS de Guterres, de socialista e de esquerda, já não tem nada.

Mas, o truque de retórica do Ministro António Vitorino, que visto a esta luz se desmascara com uma impressionante facilidade, obteve um inacreditável e inaceitável êxito junto da comunicação social. Distraídos ou mal informados (ou por outras razões ...), houve jornalistas que deram crédito à charla de António Vitorino, segundo a qual o PCP tinha pela frente o dilema de, ou manter as suas posições "correndo o risco de abrir as portas ao regresso da direita ao poder", ou então fazer a tal "modernização", caso em que estaria "consolidando por direito próprio uma posição contratual no nosso sistema democrático-representativo". Esse núcleo de jornalistas aceitou tudo o que estava implícito neste discurso de Vitorino, designadamente que o PS se situava na esquerda e praticava uma política de esquerda, que ficaria em risco se o PCP não a apoiasse, e que só por o PCP não actuar de forma "modernizada" é que não aceitava a oferta para uma contratualização política com o PS.

Com o truque malabarista de Vitorino, o PS procura precisamente consolidar uma ideia segundo a qual as posições críticas do PCP derivam de uma alegada postura fixista (com a tal falta de "modernização") e não de uma postura consequente de esquerda. Até em alguns, que agora dentro do PS criticam com severidade António Guterres, houve tempo em que essa análise prevaleceu. Quando foi a questão das 40 horas, há quase um ano e meio, Helena Roseta falava da "desesperada tentativa do PCPde encostar o PS à direita". Era o tempo que, analisando as políticas governamentais, Helena Roseta ainda acreditava que Guterres governaria à esquerda ...

Na realidade, a construída ideia de um PCP fixista continua a ser pretexto para muito anticomunismo e muito preconceito. Quando alguns dizem: "se o PCP mudasse, seria possível o entendimento com o PS", o que estão a inculcar é a ideia de um PS sem responsabilidade nas políticas de direita que hoje executa. Estão a desculpar o PS da opção que fez pelas políticas de direita. Estão a evitar esta questão central: para que haja política de esquerda em Portugal, quem tem que mudar é António Guterres e a equipa dirigente do PS, não o PCP.

Mas estão ainda a realizar outro objectivo: estão a tentar fechar a porta ao PCP para impedirem o seu progresso no terreno político e social que está aberto com a gestão de direita da actual direcção do Ps. Esta é uma questão central, cuja análise não pode ser separada da crise no interior do PS.

A crise do PS não é casual e Vizela é tão somente um pretexto para uma questão que é muito mais vasta. Não é uma crise que tenha nascido há duas semanas com a posição do Grupo Parlamentar do PS quanto ao cumprimento de promessas eleitorais. A questão das promessas eleitorais não cumpridas não esgota, nem é o centro, nem de perto nem de longe, da polémica que divide o PS.

Vale a pena registar o tom do debate nas declarações do Ministro Carrilho e de Manuel Alegre. Diz Carrilho: "Alegre é um homem do passado, que não se reconhece no mundo de hoje e que não alinha na estratégia do PS enquanto partido do futuro". Responde Alegre: "Não me reconheço no mundo de hoje porque é um mundo feito de muitas desigualdades, um mundo onde há ainda muitas batalhas para travar, para transformar o Mundo e a sociedade. Sou um homem com um passado e orgulho-me do meu passado".

O que está em causa

O que está em causa nesta polémica é o conteúdo da política do Governo, designadamente face aos princípios programáticos do PS numa leitura feita à esquerda, ou a partir da esquerda do PS. A crise divide por um lado os guterristas e pró-governamentais, que defendem a actual política de continuidade das políticas do PSD, e por outros os que reclamam uma identificação do Governo com os valores clássicos do "socialismo democrático". A crise corporizada entre Assis e Alegre é uma crise entre a parte do PS que privilegia a convergência com a direita e aquela outra que quer recolocar o Governo em objectivos programáticos claramente situados à esquerda do guterrismo.

Os choques são permanentes e elucidativos. Veja-se por exemplo a reflexão programática. Enquanto os anti-guterristas se reúnem na elaboração de um livro com o sugestivo nome "o que é governar à esquerda?", o Presidente do Grupo Parlamentar do PS Francisco Assis funda um Clube de Reflexão Política com Francisco Torres, do PSD (e conhecido não só pela sua fidelidade a Cavaco Silva, como pelas suas posições ultra-ortodoxas em defesa da moeda única) e com Maria José Nogueira Pinto (que, para além de líder parlamentar do PP, tem ligações com uma direita nacionalista, retrógrada e saudosista). Assis partilha ideias com Torres e Nogueira Pinto, enquanto o livro referido (promovido pela JS) junta, por exemplo, António Reis, Manuel Alegre, Manuel Vilaverde Cabral, Gomes Canotilho e Eduardo Lourenço.

As sucessivas crises que a política de direita do guterrismo vêm provocando no PS hão-de desembocar nalguma coisa. A coexistência tem pouco de pacífico e cada vez há menos espaço para caberem todos. Os choques podem vir ainda a subir de tom, apesar da (aparente) acalmia que forçosamente o regresso de Guterres do périplo sul-americano vai trazer.

Para Guterres, é muito importante manter esta corrente contestatária controlada dentro do PS. Enquanto isso suceder, o PS pode manter um diálogo à esquerda através dessa corrente, o que significa a neutralização do espaço vazio. Por outro lado, Guterres espera que passada a questão da revisão constitucional, a contestação abrande e possa ser mais controlável.

Para os contestatários, o objectivo mais adequado seria a recomposição da direcção do PS e das orientações do Governo. Mas as dificuldades de uma tal estratégia são enormes, tornando-a praticamente inexequível. Resta a tentação autonómica, da corrente organizada, da maior ou menor fractura.

Seja como for, uma crise tão profunda e tão vasta como esta volta a pôr na ordem do dia a questão central do espaço vazio à esquerda. É o que os modernos alarmes de segurança chamem como "zona aberta".

Mas a questão do espaço vazio já não aparece só como um desafio, tendo em vista a sua ocupação. Já não se trata somente de saber se o PCP ocupa esse espaço, ou se ele se perde no desencanto e no conformismo (ou então nalguns dos radicalismos que sempre aparecem nestas ocasiões). A questão agora é mais complexa, porque obviamente há sérias movimentações nessa zona aberta.

Desde a JS, que promove o livro sobre "O que é governar à esquerda?", até ao "grupo de fundadores do PS" que exprimiu a sua solidariedade com Alegre; desde os nomes indicados por Soares para aquele livro(onde estão, por exemplo, Maria de Lurdes Pintassilgo, Helena Roseta, Vital Moreira, Fernando Rosas e Boaventura Sousa Santos), até ao grupo de intelectuais que fez uma pública declaração de apoio às posições de Alegre e Almeida Santos na votação de Vizela (onde figuram, por exemplo, as assinatura de Sophia de Mello Breyner, Mário Cláudio, João de Melo e José Saramago), a realidade visível é a de que as movimentações na zona aberta são múltiplas, e exigem a máxima atenção e grande rigor de análise. Todas as hipóteses devem ser consideradas, num quadro em que possíveis choques podem empurrar para fora do actual quadro partidário pessoas e grupos mais ou menos organizados.

Cada vez ser torna mais urgente organizar o diálogo do PCP com o País, tendo em vista o estabelecimento de pontes com esse espaço vazio. As movimentações existentes mostram que não é um terreno para "caçadores solitários". É uma zona aberta, à procura de quem saiba corporizar anseios e aspirações, há muito conhecidos.

O PCP pode e deve fazê-lo.

EM FOCO

Movimentações na zona aberta

Por João Amaral

Durante a interpelação do PCP ao Governo realizada no passado dia 10 de Julho, o Ministro António Vitorino criticou o PCP por "manter uma leitura fechada da sua identidade própria", incitando-o a "enveredar decididamente pela sua modernização".

Menos de duas semanas decorridas, o reacendimento público da crise larvar que o PS vive veio mostrar que a "modernização" do PS levada a cabo pela sua actual direcção, antes de ser a razão principal para a falta de entendimento com o PCP, é a razão principal para a linha de fractura interna que o PS hoje exibe perante o país. Antes de tentar convencer(!) o PCP a "modernizar-se", o Secretário-Geral do PS teria de convencer uma parte substancial do seu próprio partido de que a "modernização" a que procedeu não o afastou decididamente da esquerda. Vai ser uma tarefa muito difícil, porque, na "modernização" do PS, António Guterres deitou fora a água do banho ... e o menino! O PS de Guterres, de socialista e de esquerda, já não tem nada.

Mas, o truque de retórica do Ministro António Vitorino, que visto a esta luz se desmascara com uma impressionante facilidade, obteve um inacreditável e inaceitável êxito junto da comunicação social. Distraídos ou mal informados (ou por outras razões ...), houve jornalistas que deram crédito à charla de António Vitorino, segundo a qual o PCP tinha pela frente o dilema de, ou manter as suas posições "correndo o risco de abrir as portas ao regresso da direita ao poder", ou então fazer a tal "modernização", caso em que estaria "consolidando por direito próprio uma posição contratual no nosso sistema democrático-representativo". Esse núcleo de jornalistas aceitou tudo o que estava implícito neste discurso de Vitorino, designadamente que o PS se situava na esquerda e praticava uma política de esquerda, que ficaria em risco se o PCP não a apoiasse, e que só por o PCP não actuar de forma "modernizada" é que não aceitava a oferta para uma contratualização política com o PS.

Com o truque malabarista de Vitorino, o PS procura precisamente consolidar uma ideia segundo a qual as posições críticas do PCP derivam de uma alegada postura fixista (com a tal falta de "modernização") e não de uma postura consequente de esquerda. Até em alguns, que agora dentro do PS criticam com severidade António Guterres, houve tempo em que essa análise prevaleceu. Quando foi a questão das 40 horas, há quase um ano e meio, Helena Roseta falava da "desesperada tentativa do PCPde encostar o PS à direita". Era o tempo que, analisando as políticas governamentais, Helena Roseta ainda acreditava que Guterres governaria à esquerda ...

Na realidade, a construída ideia de um PCP fixista continua a ser pretexto para muito anticomunismo e muito preconceito. Quando alguns dizem: "se o PCP mudasse, seria possível o entendimento com o PS", o que estão a inculcar é a ideia de um PS sem responsabilidade nas políticas de direita que hoje executa. Estão a desculpar o PS da opção que fez pelas políticas de direita. Estão a evitar esta questão central: para que haja política de esquerda em Portugal, quem tem que mudar é António Guterres e a equipa dirigente do PS, não o PCP.

Mas estão ainda a realizar outro objectivo: estão a tentar fechar a porta ao PCP para impedirem o seu progresso no terreno político e social que está aberto com a gestão de direita da actual direcção do Ps. Esta é uma questão central, cuja análise não pode ser separada da crise no interior do PS.

A crise do PS não é casual e Vizela é tão somente um pretexto para uma questão que é muito mais vasta. Não é uma crise que tenha nascido há duas semanas com a posição do Grupo Parlamentar do PS quanto ao cumprimento de promessas eleitorais. A questão das promessas eleitorais não cumpridas não esgota, nem é o centro, nem de perto nem de longe, da polémica que divide o PS.

Vale a pena registar o tom do debate nas declarações do Ministro Carrilho e de Manuel Alegre. Diz Carrilho: "Alegre é um homem do passado, que não se reconhece no mundo de hoje e que não alinha na estratégia do PS enquanto partido do futuro". Responde Alegre: "Não me reconheço no mundo de hoje porque é um mundo feito de muitas desigualdades, um mundo onde há ainda muitas batalhas para travar, para transformar o Mundo e a sociedade. Sou um homem com um passado e orgulho-me do meu passado".

O que está em causa

O que está em causa nesta polémica é o conteúdo da política do Governo, designadamente face aos princípios programáticos do PS numa leitura feita à esquerda, ou a partir da esquerda do PS. A crise divide por um lado os guterristas e pró-governamentais, que defendem a actual política de continuidade das políticas do PSD, e por outros os que reclamam uma identificação do Governo com os valores clássicos do "socialismo democrático". A crise corporizada entre Assis e Alegre é uma crise entre a parte do PS que privilegia a convergência com a direita e aquela outra que quer recolocar o Governo em objectivos programáticos claramente situados à esquerda do guterrismo.

Os choques são permanentes e elucidativos. Veja-se por exemplo a reflexão programática. Enquanto os anti-guterristas se reúnem na elaboração de um livro com o sugestivo nome "o que é governar à esquerda?", o Presidente do Grupo Parlamentar do PS Francisco Assis funda um Clube de Reflexão Política com Francisco Torres, do PSD (e conhecido não só pela sua fidelidade a Cavaco Silva, como pelas suas posições ultra-ortodoxas em defesa da moeda única) e com Maria José Nogueira Pinto (que, para além de líder parlamentar do PP, tem ligações com uma direita nacionalista, retrógrada e saudosista). Assis partilha ideias com Torres e Nogueira Pinto, enquanto o livro referido (promovido pela JS) junta, por exemplo, António Reis, Manuel Alegre, Manuel Vilaverde Cabral, Gomes Canotilho e Eduardo Lourenço.

As sucessivas crises que a política de direita do guterrismo vêm provocando no PS hão-de desembocar nalguma coisa. A coexistência tem pouco de pacífico e cada vez há menos espaço para caberem todos. Os choques podem vir ainda a subir de tom, apesar da (aparente) acalmia que forçosamente o regresso de Guterres do périplo sul-americano vai trazer.

Para Guterres, é muito importante manter esta corrente contestatária controlada dentro do PS. Enquanto isso suceder, o PS pode manter um diálogo à esquerda através dessa corrente, o que significa a neutralização do espaço vazio. Por outro lado, Guterres espera que passada a questão da revisão constitucional, a contestação abrande e possa ser mais controlável.

Para os contestatários, o objectivo mais adequado seria a recomposição da direcção do PS e das orientações do Governo. Mas as dificuldades de uma tal estratégia são enormes, tornando-a praticamente inexequível. Resta a tentação autonómica, da corrente organizada, da maior ou menor fractura.

Seja como for, uma crise tão profunda e tão vasta como esta volta a pôr na ordem do dia a questão central do espaço vazio à esquerda. É o que os modernos alarmes de segurança chamem como "zona aberta".

Mas a questão do espaço vazio já não aparece só como um desafio, tendo em vista a sua ocupação. Já não se trata somente de saber se o PCP ocupa esse espaço, ou se ele se perde no desencanto e no conformismo (ou então nalguns dos radicalismos que sempre aparecem nestas ocasiões). A questão agora é mais complexa, porque obviamente há sérias movimentações nessa zona aberta.

Desde a JS, que promove o livro sobre "O que é governar à esquerda?", até ao "grupo de fundadores do PS" que exprimiu a sua solidariedade com Alegre; desde os nomes indicados por Soares para aquele livro(onde estão, por exemplo, Maria de Lurdes Pintassilgo, Helena Roseta, Vital Moreira, Fernando Rosas e Boaventura Sousa Santos), até ao grupo de intelectuais que fez uma pública declaração de apoio às posições de Alegre e Almeida Santos na votação de Vizela (onde figuram, por exemplo, as assinatura de Sophia de Mello Breyner, Mário Cláudio, João de Melo e José Saramago), a realidade visível é a de que as movimentações na zona aberta são múltiplas, e exigem a máxima atenção e grande rigor de análise. Todas as hipóteses devem ser consideradas, num quadro em que possíveis choques podem empurrar para fora do actual quadro partidário pessoas e grupos mais ou menos organizados.

Cada vez ser torna mais urgente organizar o diálogo do PCP com o País, tendo em vista o estabelecimento de pontes com esse espaço vazio. As movimentações existentes mostram que não é um terreno para "caçadores solitários". É uma zona aberta, à procura de quem saiba corporizar anseios e aspirações, há muito conhecidos.

O PCP pode e deve fazê-lo.

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