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31-12-2001
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"A Minha Tendência não era a vida militar,

era ser professor universitário"

Por Duarte Mexia

Quarta-feira, 1 de Agosto de 2001 Francisco Costa Gomes durante toda a sua vida respondeu com mestria às perguntas que lhe foram sendo feitas. Usava as palavras meticulosamente, pensando em todas as interpretações que estas podiam ter. Muitas das suas respostas foram-se repetindo com os anos, escritas e reescritas nos jornais, nas revistas, em livro. Só num tema o marechal náo pensava primeiro: a sua infância, as suas memórias da juventude que fervilhavam como se de um livro aberto se tratasse. Fui um mau aluno do Colégio Militar. Era mal comportado e nunca tive direito a sair do colégio aos domingos porque realmente fiz coisas impossíveis para aquela época: discutir com os oficiais, com os professores, achar que podia de vez em quando atirar com um sapato. Eu era um fedelho, era o aluno mais novo do meu curso, portanto eles toleravam-me mais por ser pequeno e por ter pouca idade, do que por qualquer outras coisas. Eu tinha um irmão três anos mais velho do que eu e que também estava no colégio, e sucedia muitas vezes que nós fazíamos as mesmas coisas. Uma das grandes faltas era ir jantar com um outro irmão mais velho do que nós, um oficial da marinha que andava embarcado. Quando ele vinha a Lisboa convidava-nos para jantar. Nós dizíamos muitas vezes: 'Olha que vamos entrar tarde e não podemos meter os cartões no cacifo e o oficial de dia vai dar pela nossa falta...' De maneira que eu propunha sempre uma solução drástica: meter os cartões à noite. O meu irmão tinha mais dificuldade, era muito mais honesto do que eu. Sucedia que o coronel queria bater-me quando eu chegava. E isso eu não admitia. Dizia-lhe: 'O senhor não me bate porque eu não deixo.' Ele era coronel e eu era aluno. 'E o que é que tu fazes?', dizia ele. 'Se o senhor me bater, eu bato-lhe'. Resumia-me sempre a essas palavras. Ele corria a trás de mim, mas lá tocar-me não tocava. Mas como é que punha lá os cartões?

Ia pela calada da noite, a porta estava sempre aberta e ia lá aos tais cacifos. No colégio saíamos muitas vezes de noite só para irmos dar uma passeata: saíamos, dávamos uma volta e depois voltávamos, isto quando devia estar a dormir. O que era grave. Tinha que pôr um boneco na cama. Quem tem pernas e é desembaraçado tem sempre por onde sair, e eu era muito desembaraçado, tinha uma aptidão física formidável, era da classe especial de ginástica. Saía geralmente pelo sítio onde as pessoas menos esperavam, que era ao pé da sentinela ou ao pé do oficial de dia. Eles não pensavam que havia um aluno que subia a janela do oficial de dia para sair e entrar no colégio... Nunca acreditaram que isso fosse possível. O seu irmão era uma boa companhia?

O meu irmão no colégio era muito bom. Para além de ser muito bem comportado, era muito bom aluno, melhor aluno do que eu. Por exemplo, havia um professor de português que era o Pinto da Silva, que queria que nós estivéssemos sempre nas aulas com os cotovelos assentes na carteira, sempre na mesma posição. Eu nunca os pus nessa posição. Ele dizia: 'Cada vez que não estejas na posição eu marco-te uma estrelinha'. E a minha folha da caderneta estava sempre cheia de estrelinhas... Deve ter sido bom agouro, a julgar pela quantidade de estrelas que o sr marechal depois conquistou... Já perseguia as estrelas nessa altura?

Eles nunca julgaram que eu tivesse alguma vez alguma estrela que não fosse daquelas. Diziam que eu era um incorrigível, chamavam-me corrécio porque era um termo mais fácil e uma alcunha. Bem comportado era o meu irmão, o 228. Eu era o 254 e diziam que tinha degenerado. Eu era também bom aluno, só que era mal comportado. Foi sempre assim um pouco, seguiu sempre um caminho diferente das outras pessoas?

É, fugi sempre às regras. É que a minha tendência não era a vida militar, era ser professor universitário, e conseguia, mas a minha mãe tinha oito filhos, e o meu pai era capitão e veio completamente arruinado das guerras de África, da pacificação de África... Monetariamente ou psicologicamente?

Psicologicamente e fisicamente, o meu pai sofria horrores, e nessa altura diziam que ele tinha um cancro no fígado, não sei se era senão era, mas o caso é que ele tinha uma vida desgraçada, praticamente só bebia leite. Que idade é que tinha?

Ainda não tinha oito anos, o meu pai morreu na véspera de eu fazer oito anos. A minha mãe tinha quarenta. Sempre foi muito ligado à sua mãe?

Fui, mas não tão ligado como ao meu pai. Eu era o mais velho dos irmãos que estavam em casa, por isso é que tinha de ir buscar o leite para o meu pai duas vezes por dia, uma de manhã e outra à noite. Lá ia eu com o vasilhame por meia Chaves para ir a uma quintarola onde se tirava o leite fresco. É claro que isso me deu uma certa liberdade, deixei de ter medos, não tinha medos. Já nessa altura devia ser incorrigível. Ia à fruta e coisas assim?

Tirar, não tirava, mas muita gente me dava coisas, tinham uma certa consideração por mim, por ir buscar o leite ao meu pai e por a minha mãe ter muito filhos. De que outras coisas se lembra desse tempo?

De ir pescar. O meu pai arranjou-me uma cana de pesca feita por ele pois ele achava que a pesca era uma coisa muito boa para toda a gente acalmar os nervos. E é verdade, é um calmante. Mas o que eu aprendi com o meu pai foi a sua vida em África. Fiquei com um azar com a vida em África, os despotismos que os brancos faziam aos pretos, e que o meu pai me contava. O seu pai tinha essa consciência?

Tinha a consciência completa de que realmente os brancos exploravam os pretos. Era muito humanista. Nós éramos oito e ele tinha mais oito irmãs que tinham vários filhos, e à sexta-feira todos iam comer a minha casa, apesar de ser uma desgraça para a minha mãe. Coitada, ela tinha pouco dinheiro e meter oitos pessoas a comer era uma grande despesa. O seu pai ainda estava ao serviço?

Não, estava na reserva, mas como tinha poucos anos de serviço, fazia serviço já na reserva no regimento que estava ali ao pé da nossa casa. E eu muitas vezes ia com ele... Isso criou-me logo uma imagem terrível da tropa, é que os oficiais não faziam nada, só jogavam gamão e o burra branca... E então chega a marechal sabendo uma coisa dessas...

Eu combati muito essas ideias perniciosas que tinha a tropa. Mas não foi bem por isso. É que na entrada para o colégio militar eu não gastei praticamente um tostão: nas primeiras incursões monárquicas do Paiva Couceiro, o meu pai, que estava de cama levantou-se e apresentou-se no quartel para chefiar uma companhia. E parece que o fez com muito critério, porque foi por causa disso que nós pudemos entrar no colégio militar, eu e mais dois irmãos. Claro que eu sabia muito bem que não podia estudar, não gostava nada do colégio, mas estando no colégio não pagava nada e estando em casa fazia despesa. E isso era muito importante para a minha mãe. A sua mãe voltou a casar?

Não, ela era uma flavience dos sete costados, porque para ela a terra mais bonita e importante do mundo era Chaves. Apesar de tudo se encaminhar para ela ir para o Brasil - porque era filha única, e sobrinha única de três tios que estavam no Brasil e que tinham uma fortuna bastante razoável. Mas ela nunca quis ir nem nos deixou ir. Ainda tinha coisas no Brasil?

O Brasil tem uma coisa terrível: todas as pessoas que abandonam as propriedades e se vão embora, passado algum tempo o Estado fica com elas... Não sei se é uma boa medida, mas má não é concerteza. O que valeu à minha mãe foi as casas que os meus tios lhe deixaram, porque para criar estes filhos todos, sempre que apertava mais vendia uma casa. O seu pai gostou sempre muito de África. Ele nunca pensou ir para lá?

Pensou, pensou. Ele gostava muito de Luanda, foi sempre muito bem tratado lá. O que o manteve em Chaves foi a minha mãe, porque para ela Chaves era a melhor coisa do mundo. A minha mãe era muito popular em Chaves, não havia uma festa ou um peditório de que a minha mãe não fizesse parte, e geralmente como chefa, ela era muito desembaraçada. Muito mais desembaraçada que os filhos. Era uma mulher de armas...

Era, mas não tinha um sentimento de justiça democrática, e isso a mim chocava-me. Vou-lhe dizer duas coisas que demonstram o que era o seu sentimento de justiça. Uma passou-se comigo e a minha irmã mais velha, que tinha de diferença ano e meio. Ela atrasou-se na escola e fizemos a instrução primária juntos. A minha professora, que foi a melhor professora que tive em toda a minha vida tinha um defeito terrível, usava a palmatória com muita facilidade. No ditado, quem tivesse um erro apanhava, quem não tivesse dava aos outros, o que era muito chato. Sucedeu que uma vez tive um erro e ela não teve nenhum; e ela bateu-me. Eu fiquei muito chateado porque a minha mãe tinha mandado dizer à professora que não se podia bater na menina. Portanto, eu mesmo que quisesse retribuir não podia. Essa era uma das facécias da minha mãe. Outra que também era engraçada, é que achava que nós devíamos levar nesta terra a melhor vida possível. Todos seguiram essa norma excepto eu, e quando saí de alferes, comecei a tirar o curso de matemática no Porto, e a minha mãe disse-me: 'Isto é que és um burro, estás a queimar as pestanas quando não é preciso'. E eu disse: 'Isso é já não é consigo, se estudo ou não estudo é comigo...' Sempre gostou muito de estudar, gostava de estar no seu canto?

Estudava sempre em casa, mas saía muito, não era um marrão, as coisas saíam-me com muita facilidade. Tinha uma boa memória para os números. Quando saiu do colégio militar entrou logo na vida militar?

Saí do colégio militar primeiro-sargento, e tive que responder por um esquadrão em cavalaria seis, o que era uma grande chatice, porque além de tudo tinha que fazer vencimentos. Era uma honra mas era chato. O que tem mais piada é que de todos os que saíram nessa altura, nenhum seguiu a vida militar. Logo eu, que era apontado como o corrécio! E como militar, manteve a fama de corrécio? em Angola por exemplo? Não. Eu e o meu amigo Barão de Brito, que era do meu curso, transformámos a ética e a maneira de falar de cavalaria. Nessa altura os oficiais de cavalaria tinham a fama, e de certa forma com razão, de tratarem muito mal os soldados. E disso eu não gostava, fazia-me uma aflição doida e opus-me sempre. Até que quando tive a oportunidade de ser um dos mentores dos outros oficiais que andavam na recruta, disse logo: 'aqui ninguém chama nomes aos soldados!' E isso como é que foi visto pelos seus pares?

Pelos meus pares muito bem, mas pelos oficiais muito mal. Achavam que eu era cismático, maluco, porque afinal há anos que isso se fazia, que se chamava nomes aos soldados. Porque é que havia de haver um tipo que não chamava? Isso deu como resultado uma coisa muito engraçada, quando fui para Chaves como alferes. Nessa altura tinha que instruir um esquadrão de recrutas - é claro que era o único esquadrão em que não se chamava nomes aos soldados. A minha mãe, que achava que eu era uma pessoa ríspida, um dia ficou admirada porque o filho de Nicolau Mesquita, um senador na primeira República, foi de propósito a casa da minha mãe dizer que ela tinha um filho formidável, um santo... Ao que ela respondia ele é maluco, tem assim umas ideias...

Ele dizia: 'Tenha paciência, tem que passar a olhar para o seu filho de outra maneira'. Um dia estávamos a almoçar, e a minha mãe chega e diz assim: 'Levantem-se, vem aí o Ribeiro de Carvalho' (que nessa altura era ministro do exército) e nessa altura todos os meus irmãos se levantavam para o ir ver. Quando a minha mãe viu que eu não tinha ido, disse: 'Deves ser maluco, então pensas que vês assim um ministro? Aqui em Chaves é muito raro.' Respondi: 'Se acha que ser ministro é uma coisa importante, ainda um dia hei-de ser ministro e hei-de dizer à mãe que fui ministro...' Quando foi presidente da República, quase teve vontade de telefonar para o céu para dizer: mãe, sou presidente?

Quando fui subsecretário do exército fui a Chaves, então, como eu estava em Chaves eles decidiram fazer o recolher à frente da minha casa, decidiram tocar o clarinete e os tambores à frente da minha casa. A minha mãe, coitada, tinha as lágrimas pela cabeça abaixo. O que lê nunca julgou é que eu chegasse tão alto. A sua mãe se tivesse seguindo a carreira militar teria sido também marechal...

Teria sido mais do que eu.

Só depois de ser general é que teve uma vida desafogada?

Desafogada tive sempre, até tive mais em alferes e tenente que em general. Como tinha o curso de matemática dava explicações, fazia mais dinheiro como explicador do que como militar, só quando não pude dar mais explicações é que a coisa piorou. Fui até explicador do filho do Cupertino Miranda, foram as explicações que me deram um desafogo muito grande, porque desde muito novo visitei o estrangeiro, e claro, não era com o dinheiro de um capitão que dava para ir. Viajar para si é um bichinho, não é?

É um bicho muito grande, eu dei a volta ao mundo para aí uma vez e meia. Que país o maravilhou mais, sem falar da Rússia e da América?

O Brasil, gostei muito da Argentina, na Europa gostei de vários países como a Checoslováquia e a Áustria. Conheceu a Checoslováquia antes ou depois da "Primavera de Praga", e como é que a viu?

A Primavera de Praga foi uma acção horrorosa feita pelos soviéticos. Mas sabe, conheci ainda a Índia e a China, porque eu estive como chefe de Estado-maior em Macau durante quase três anos. Eles davam-se muito bem comigo, foi na altura em que o Mao fez a revolução. Conheceu-o?

Conheci, era um homem inteligente, ele tinha uma ideia da grandeza do seu país e da sua população. Diziam que culturalmente eram muito mais adiantados do que os outros, porque tinham tido a época áurea da sua cultura dois mil anos antes de nós. Realmente, eram uns tipos especiais. Mas as histórias mais engraçadas que eu tive foram com os russos, com o Brejnev, que tinha a mania que era general... Sabe por esse mundo fora conheci muitos tipos engraçados - e muitas mulheres engraçadas também... Sempre admirou mulheres engraçadas.

Sempre. Quando ia casar escrevi uma carta à minha mãe: 'Mãe, prepare-se para o casamento em Outubro ou Novembro é com uma moça...' E pronto, não disse mais nada, a minha mãe que de vez em quando me dava a sua estocada, disse-me: 'Tu fazes sempre um mistério da tua vida, não sei se ela é alta ou baixa, como é que é, mas há uma coisa que eu sei de certeza: é que é bonita.' Eu telefonei-lhe e confirmei: 'Tem razão, é mesmo bonita.' Quando viu canções como a do 'Companheiro Vasco', ainda pensou que um dia teria uma para si?

Não, sabe, eu combati sempre o companheiro Vasco, sou muito amigo dele, ele serviu duas vezes comigo em África, e muito bem, porque era um bom oficial... Acho que o companheiro Vasco era um belíssimo engenheiro, um bom homem, mas realmente era um bocado exagerado... A maneira como falava era incendiária e não se podia ser incendiário nessa altura, de maneira que em reuniões em que ele falava eu tinha que desdizer depois o que ele tinha dito. Resfriar aquilo que dizia. Isso era constante. E conversava todas essas coisas com a sua mulher, em casa?

Não, coitada, ele estava sempre assustada com a possibilidade de me darem um tiro. Com quem é que desabafava toda essa revolução que ia dentro de si?

A revolução que ia dentro de mim desabafava-a com um padre que morreu ontem [16 de Junho de 2000], o padre João Cabral Lourenço... Tinha sido meu chefe dos capelões militares em Macau, e ficámos sempre muito unidos, era a pessoa que me ouvia e me aconselhava... O que, na altura revolucionária, estar ligado à igreja e a um padre...

A um padre e à igreja! Mas ele, realmente, era um padre muito bom, era um padre excepcional! Mas falava com ele em confissão ou desabafo?

Desabafo, porque eu não queria que ele se comprometesse...

É temente a Deus?

Sou católico praticante, claro.

Como é que vê Deus? Como a Igreja nos dá a ver?

Não, não vejo. Eu acho que Deus existe porque a nossa vida não pára aqui. Isso é a minha ideia. De resto tenho isso registado em várias conferências sobre religião, algumas muito interessantes, uma delas por exemplo na União Soviética... Na União Soviética?

Sim, uma conferência sobre todas as religiões, onde realmente se chegou à conclusão de que a nossa vida realmente não pára aqui neste planeta onde estamos por empréstimo, mas que se prolonga. Como, a gente não sabe, mas realmente todas as igrejas preconizam os mesmos princípios básicos da paz, da tolerância, do arrependimento, da bondade, do amor ao próximo... E acredita no Inferno?

Não, mas acredito no Céu.

E reza?

Todas as noites, eu e a minha mulher, ela é mais religiosa do que eu. Rezamos todas as noites. Qual é o santo com que mais se identifica?

Eu gostos muito dos santos, mas principalmente do São Francisco de Assis. E no céu quem é que mais deseja encontrar?

Todas as pessoas que me acompanham, mas especialmente o meu filho. Parece que se suicidou, mas não sei se se suicidou ou se o mataram... Mas ele faz-me muita falta, muita falta e eu tenho muitas saudades dele. De maneira que a primeira pessoa que eu gostaria de encontrar era o meu filho.

"A Minha Tendência não era a vida militar,

era ser professor universitário"

Por Duarte Mexia

Quarta-feira, 1 de Agosto de 2001 Francisco Costa Gomes durante toda a sua vida respondeu com mestria às perguntas que lhe foram sendo feitas. Usava as palavras meticulosamente, pensando em todas as interpretações que estas podiam ter. Muitas das suas respostas foram-se repetindo com os anos, escritas e reescritas nos jornais, nas revistas, em livro. Só num tema o marechal náo pensava primeiro: a sua infância, as suas memórias da juventude que fervilhavam como se de um livro aberto se tratasse. Fui um mau aluno do Colégio Militar. Era mal comportado e nunca tive direito a sair do colégio aos domingos porque realmente fiz coisas impossíveis para aquela época: discutir com os oficiais, com os professores, achar que podia de vez em quando atirar com um sapato. Eu era um fedelho, era o aluno mais novo do meu curso, portanto eles toleravam-me mais por ser pequeno e por ter pouca idade, do que por qualquer outras coisas. Eu tinha um irmão três anos mais velho do que eu e que também estava no colégio, e sucedia muitas vezes que nós fazíamos as mesmas coisas. Uma das grandes faltas era ir jantar com um outro irmão mais velho do que nós, um oficial da marinha que andava embarcado. Quando ele vinha a Lisboa convidava-nos para jantar. Nós dizíamos muitas vezes: 'Olha que vamos entrar tarde e não podemos meter os cartões no cacifo e o oficial de dia vai dar pela nossa falta...' De maneira que eu propunha sempre uma solução drástica: meter os cartões à noite. O meu irmão tinha mais dificuldade, era muito mais honesto do que eu. Sucedia que o coronel queria bater-me quando eu chegava. E isso eu não admitia. Dizia-lhe: 'O senhor não me bate porque eu não deixo.' Ele era coronel e eu era aluno. 'E o que é que tu fazes?', dizia ele. 'Se o senhor me bater, eu bato-lhe'. Resumia-me sempre a essas palavras. Ele corria a trás de mim, mas lá tocar-me não tocava. Mas como é que punha lá os cartões?

Ia pela calada da noite, a porta estava sempre aberta e ia lá aos tais cacifos. No colégio saíamos muitas vezes de noite só para irmos dar uma passeata: saíamos, dávamos uma volta e depois voltávamos, isto quando devia estar a dormir. O que era grave. Tinha que pôr um boneco na cama. Quem tem pernas e é desembaraçado tem sempre por onde sair, e eu era muito desembaraçado, tinha uma aptidão física formidável, era da classe especial de ginástica. Saía geralmente pelo sítio onde as pessoas menos esperavam, que era ao pé da sentinela ou ao pé do oficial de dia. Eles não pensavam que havia um aluno que subia a janela do oficial de dia para sair e entrar no colégio... Nunca acreditaram que isso fosse possível. O seu irmão era uma boa companhia?

O meu irmão no colégio era muito bom. Para além de ser muito bem comportado, era muito bom aluno, melhor aluno do que eu. Por exemplo, havia um professor de português que era o Pinto da Silva, que queria que nós estivéssemos sempre nas aulas com os cotovelos assentes na carteira, sempre na mesma posição. Eu nunca os pus nessa posição. Ele dizia: 'Cada vez que não estejas na posição eu marco-te uma estrelinha'. E a minha folha da caderneta estava sempre cheia de estrelinhas... Deve ter sido bom agouro, a julgar pela quantidade de estrelas que o sr marechal depois conquistou... Já perseguia as estrelas nessa altura?

Eles nunca julgaram que eu tivesse alguma vez alguma estrela que não fosse daquelas. Diziam que eu era um incorrigível, chamavam-me corrécio porque era um termo mais fácil e uma alcunha. Bem comportado era o meu irmão, o 228. Eu era o 254 e diziam que tinha degenerado. Eu era também bom aluno, só que era mal comportado. Foi sempre assim um pouco, seguiu sempre um caminho diferente das outras pessoas?

É, fugi sempre às regras. É que a minha tendência não era a vida militar, era ser professor universitário, e conseguia, mas a minha mãe tinha oito filhos, e o meu pai era capitão e veio completamente arruinado das guerras de África, da pacificação de África... Monetariamente ou psicologicamente?

Psicologicamente e fisicamente, o meu pai sofria horrores, e nessa altura diziam que ele tinha um cancro no fígado, não sei se era senão era, mas o caso é que ele tinha uma vida desgraçada, praticamente só bebia leite. Que idade é que tinha?

Ainda não tinha oito anos, o meu pai morreu na véspera de eu fazer oito anos. A minha mãe tinha quarenta. Sempre foi muito ligado à sua mãe?

Fui, mas não tão ligado como ao meu pai. Eu era o mais velho dos irmãos que estavam em casa, por isso é que tinha de ir buscar o leite para o meu pai duas vezes por dia, uma de manhã e outra à noite. Lá ia eu com o vasilhame por meia Chaves para ir a uma quintarola onde se tirava o leite fresco. É claro que isso me deu uma certa liberdade, deixei de ter medos, não tinha medos. Já nessa altura devia ser incorrigível. Ia à fruta e coisas assim?

Tirar, não tirava, mas muita gente me dava coisas, tinham uma certa consideração por mim, por ir buscar o leite ao meu pai e por a minha mãe ter muito filhos. De que outras coisas se lembra desse tempo?

De ir pescar. O meu pai arranjou-me uma cana de pesca feita por ele pois ele achava que a pesca era uma coisa muito boa para toda a gente acalmar os nervos. E é verdade, é um calmante. Mas o que eu aprendi com o meu pai foi a sua vida em África. Fiquei com um azar com a vida em África, os despotismos que os brancos faziam aos pretos, e que o meu pai me contava. O seu pai tinha essa consciência?

Tinha a consciência completa de que realmente os brancos exploravam os pretos. Era muito humanista. Nós éramos oito e ele tinha mais oito irmãs que tinham vários filhos, e à sexta-feira todos iam comer a minha casa, apesar de ser uma desgraça para a minha mãe. Coitada, ela tinha pouco dinheiro e meter oitos pessoas a comer era uma grande despesa. O seu pai ainda estava ao serviço?

Não, estava na reserva, mas como tinha poucos anos de serviço, fazia serviço já na reserva no regimento que estava ali ao pé da nossa casa. E eu muitas vezes ia com ele... Isso criou-me logo uma imagem terrível da tropa, é que os oficiais não faziam nada, só jogavam gamão e o burra branca... E então chega a marechal sabendo uma coisa dessas...

Eu combati muito essas ideias perniciosas que tinha a tropa. Mas não foi bem por isso. É que na entrada para o colégio militar eu não gastei praticamente um tostão: nas primeiras incursões monárquicas do Paiva Couceiro, o meu pai, que estava de cama levantou-se e apresentou-se no quartel para chefiar uma companhia. E parece que o fez com muito critério, porque foi por causa disso que nós pudemos entrar no colégio militar, eu e mais dois irmãos. Claro que eu sabia muito bem que não podia estudar, não gostava nada do colégio, mas estando no colégio não pagava nada e estando em casa fazia despesa. E isso era muito importante para a minha mãe. A sua mãe voltou a casar?

Não, ela era uma flavience dos sete costados, porque para ela a terra mais bonita e importante do mundo era Chaves. Apesar de tudo se encaminhar para ela ir para o Brasil - porque era filha única, e sobrinha única de três tios que estavam no Brasil e que tinham uma fortuna bastante razoável. Mas ela nunca quis ir nem nos deixou ir. Ainda tinha coisas no Brasil?

O Brasil tem uma coisa terrível: todas as pessoas que abandonam as propriedades e se vão embora, passado algum tempo o Estado fica com elas... Não sei se é uma boa medida, mas má não é concerteza. O que valeu à minha mãe foi as casas que os meus tios lhe deixaram, porque para criar estes filhos todos, sempre que apertava mais vendia uma casa. O seu pai gostou sempre muito de África. Ele nunca pensou ir para lá?

Pensou, pensou. Ele gostava muito de Luanda, foi sempre muito bem tratado lá. O que o manteve em Chaves foi a minha mãe, porque para ela Chaves era a melhor coisa do mundo. A minha mãe era muito popular em Chaves, não havia uma festa ou um peditório de que a minha mãe não fizesse parte, e geralmente como chefa, ela era muito desembaraçada. Muito mais desembaraçada que os filhos. Era uma mulher de armas...

Era, mas não tinha um sentimento de justiça democrática, e isso a mim chocava-me. Vou-lhe dizer duas coisas que demonstram o que era o seu sentimento de justiça. Uma passou-se comigo e a minha irmã mais velha, que tinha de diferença ano e meio. Ela atrasou-se na escola e fizemos a instrução primária juntos. A minha professora, que foi a melhor professora que tive em toda a minha vida tinha um defeito terrível, usava a palmatória com muita facilidade. No ditado, quem tivesse um erro apanhava, quem não tivesse dava aos outros, o que era muito chato. Sucedeu que uma vez tive um erro e ela não teve nenhum; e ela bateu-me. Eu fiquei muito chateado porque a minha mãe tinha mandado dizer à professora que não se podia bater na menina. Portanto, eu mesmo que quisesse retribuir não podia. Essa era uma das facécias da minha mãe. Outra que também era engraçada, é que achava que nós devíamos levar nesta terra a melhor vida possível. Todos seguiram essa norma excepto eu, e quando saí de alferes, comecei a tirar o curso de matemática no Porto, e a minha mãe disse-me: 'Isto é que és um burro, estás a queimar as pestanas quando não é preciso'. E eu disse: 'Isso é já não é consigo, se estudo ou não estudo é comigo...' Sempre gostou muito de estudar, gostava de estar no seu canto?

Estudava sempre em casa, mas saía muito, não era um marrão, as coisas saíam-me com muita facilidade. Tinha uma boa memória para os números. Quando saiu do colégio militar entrou logo na vida militar?

Saí do colégio militar primeiro-sargento, e tive que responder por um esquadrão em cavalaria seis, o que era uma grande chatice, porque além de tudo tinha que fazer vencimentos. Era uma honra mas era chato. O que tem mais piada é que de todos os que saíram nessa altura, nenhum seguiu a vida militar. Logo eu, que era apontado como o corrécio! E como militar, manteve a fama de corrécio? em Angola por exemplo? Não. Eu e o meu amigo Barão de Brito, que era do meu curso, transformámos a ética e a maneira de falar de cavalaria. Nessa altura os oficiais de cavalaria tinham a fama, e de certa forma com razão, de tratarem muito mal os soldados. E disso eu não gostava, fazia-me uma aflição doida e opus-me sempre. Até que quando tive a oportunidade de ser um dos mentores dos outros oficiais que andavam na recruta, disse logo: 'aqui ninguém chama nomes aos soldados!' E isso como é que foi visto pelos seus pares?

Pelos meus pares muito bem, mas pelos oficiais muito mal. Achavam que eu era cismático, maluco, porque afinal há anos que isso se fazia, que se chamava nomes aos soldados. Porque é que havia de haver um tipo que não chamava? Isso deu como resultado uma coisa muito engraçada, quando fui para Chaves como alferes. Nessa altura tinha que instruir um esquadrão de recrutas - é claro que era o único esquadrão em que não se chamava nomes aos soldados. A minha mãe, que achava que eu era uma pessoa ríspida, um dia ficou admirada porque o filho de Nicolau Mesquita, um senador na primeira República, foi de propósito a casa da minha mãe dizer que ela tinha um filho formidável, um santo... Ao que ela respondia ele é maluco, tem assim umas ideias...

Ele dizia: 'Tenha paciência, tem que passar a olhar para o seu filho de outra maneira'. Um dia estávamos a almoçar, e a minha mãe chega e diz assim: 'Levantem-se, vem aí o Ribeiro de Carvalho' (que nessa altura era ministro do exército) e nessa altura todos os meus irmãos se levantavam para o ir ver. Quando a minha mãe viu que eu não tinha ido, disse: 'Deves ser maluco, então pensas que vês assim um ministro? Aqui em Chaves é muito raro.' Respondi: 'Se acha que ser ministro é uma coisa importante, ainda um dia hei-de ser ministro e hei-de dizer à mãe que fui ministro...' Quando foi presidente da República, quase teve vontade de telefonar para o céu para dizer: mãe, sou presidente?

Quando fui subsecretário do exército fui a Chaves, então, como eu estava em Chaves eles decidiram fazer o recolher à frente da minha casa, decidiram tocar o clarinete e os tambores à frente da minha casa. A minha mãe, coitada, tinha as lágrimas pela cabeça abaixo. O que lê nunca julgou é que eu chegasse tão alto. A sua mãe se tivesse seguindo a carreira militar teria sido também marechal...

Teria sido mais do que eu.

Só depois de ser general é que teve uma vida desafogada?

Desafogada tive sempre, até tive mais em alferes e tenente que em general. Como tinha o curso de matemática dava explicações, fazia mais dinheiro como explicador do que como militar, só quando não pude dar mais explicações é que a coisa piorou. Fui até explicador do filho do Cupertino Miranda, foram as explicações que me deram um desafogo muito grande, porque desde muito novo visitei o estrangeiro, e claro, não era com o dinheiro de um capitão que dava para ir. Viajar para si é um bichinho, não é?

É um bicho muito grande, eu dei a volta ao mundo para aí uma vez e meia. Que país o maravilhou mais, sem falar da Rússia e da América?

O Brasil, gostei muito da Argentina, na Europa gostei de vários países como a Checoslováquia e a Áustria. Conheceu a Checoslováquia antes ou depois da "Primavera de Praga", e como é que a viu?

A Primavera de Praga foi uma acção horrorosa feita pelos soviéticos. Mas sabe, conheci ainda a Índia e a China, porque eu estive como chefe de Estado-maior em Macau durante quase três anos. Eles davam-se muito bem comigo, foi na altura em que o Mao fez a revolução. Conheceu-o?

Conheci, era um homem inteligente, ele tinha uma ideia da grandeza do seu país e da sua população. Diziam que culturalmente eram muito mais adiantados do que os outros, porque tinham tido a época áurea da sua cultura dois mil anos antes de nós. Realmente, eram uns tipos especiais. Mas as histórias mais engraçadas que eu tive foram com os russos, com o Brejnev, que tinha a mania que era general... Sabe por esse mundo fora conheci muitos tipos engraçados - e muitas mulheres engraçadas também... Sempre admirou mulheres engraçadas.

Sempre. Quando ia casar escrevi uma carta à minha mãe: 'Mãe, prepare-se para o casamento em Outubro ou Novembro é com uma moça...' E pronto, não disse mais nada, a minha mãe que de vez em quando me dava a sua estocada, disse-me: 'Tu fazes sempre um mistério da tua vida, não sei se ela é alta ou baixa, como é que é, mas há uma coisa que eu sei de certeza: é que é bonita.' Eu telefonei-lhe e confirmei: 'Tem razão, é mesmo bonita.' Quando viu canções como a do 'Companheiro Vasco', ainda pensou que um dia teria uma para si?

Não, sabe, eu combati sempre o companheiro Vasco, sou muito amigo dele, ele serviu duas vezes comigo em África, e muito bem, porque era um bom oficial... Acho que o companheiro Vasco era um belíssimo engenheiro, um bom homem, mas realmente era um bocado exagerado... A maneira como falava era incendiária e não se podia ser incendiário nessa altura, de maneira que em reuniões em que ele falava eu tinha que desdizer depois o que ele tinha dito. Resfriar aquilo que dizia. Isso era constante. E conversava todas essas coisas com a sua mulher, em casa?

Não, coitada, ele estava sempre assustada com a possibilidade de me darem um tiro. Com quem é que desabafava toda essa revolução que ia dentro de si?

A revolução que ia dentro de mim desabafava-a com um padre que morreu ontem [16 de Junho de 2000], o padre João Cabral Lourenço... Tinha sido meu chefe dos capelões militares em Macau, e ficámos sempre muito unidos, era a pessoa que me ouvia e me aconselhava... O que, na altura revolucionária, estar ligado à igreja e a um padre...

A um padre e à igreja! Mas ele, realmente, era um padre muito bom, era um padre excepcional! Mas falava com ele em confissão ou desabafo?

Desabafo, porque eu não queria que ele se comprometesse...

É temente a Deus?

Sou católico praticante, claro.

Como é que vê Deus? Como a Igreja nos dá a ver?

Não, não vejo. Eu acho que Deus existe porque a nossa vida não pára aqui. Isso é a minha ideia. De resto tenho isso registado em várias conferências sobre religião, algumas muito interessantes, uma delas por exemplo na União Soviética... Na União Soviética?

Sim, uma conferência sobre todas as religiões, onde realmente se chegou à conclusão de que a nossa vida realmente não pára aqui neste planeta onde estamos por empréstimo, mas que se prolonga. Como, a gente não sabe, mas realmente todas as igrejas preconizam os mesmos princípios básicos da paz, da tolerância, do arrependimento, da bondade, do amor ao próximo... E acredita no Inferno?

Não, mas acredito no Céu.

E reza?

Todas as noites, eu e a minha mulher, ela é mais religiosa do que eu. Rezamos todas as noites. Qual é o santo com que mais se identifica?

Eu gostos muito dos santos, mas principalmente do São Francisco de Assis. E no céu quem é que mais deseja encontrar?

Todas as pessoas que me acompanham, mas especialmente o meu filho. Parece que se suicidou, mas não sei se se suicidou ou se o mataram... Mas ele faz-me muita falta, muita falta e eu tenho muitas saudades dele. De maneira que a primeira pessoa que eu gostaria de encontrar era o meu filho.

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