As borboletas também dormem

13-02-2002
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"A mais Bela História dos Animais" é um livro apaixonante do qual se sai vegetariano ou etólogo

As Borboletas Também Dormem

Por TEXTO E FOTOGRAFIA DE SUSANA NEVES

Sábado, 2 de Fevereiro de 2002

Quando a elefanta entra no período reprodutivo, o que só se verifica de quatro em quatro anos, emite infra-sons perceptíveis pelos machos, a uma distância de 800 quilómetros. Já a ave-de-berço, da Nova Guiné, nas suas tentativas de acasalamento, manifesta um gosto estético depurado: a fêmea escolhe o parceiro em função da beleza dos seus presentes: conchas de caracol, bagas, plumas e pedaços de resina de cor ambreada. O olho da mosca, composto por 3000 facetas, distingue, num só segundo, 100 imagens, e uma abelha, impedida de entrar na colmeia, pode morrer de "stress".

Se o livro "A mais Bela História dos Animais" - uma longa entrevista realizada por Karine Lou Matignon a Pascal Picq (paleontólogo), Jean-Pierre Digard (etnólogo, especialista em domesticação) e Boris Cyrulnik (neuropsiquiatra, pioneiro da etologia) - descrevesse apenas o que as últimas investigações científicas nos revelam sobre o mundo da natureza, a leitura seria encantatória e de permanente espanto.

Confirmava-se, aliás, a visão sábia e profunda de alguns povos (pigmeus, esquimós, ameríndios e arborígenes australianos) sobre a linha de continuidade que liga os homens a todos os seres. Mas à medida que as perguntas, bem fundamentadas, vão evoluindo, depois do capítulo introdutório - dedicado a Pascal Picq, que explica o aparecimento de vida na Terra e surpreende ao defender que a bipedia nasceu nas árvores, resultado da suspensão dos primatas nos ramos -, a história dos animais, escrita e protagonizada pela humanidade, ganha contornos sádicos, como se se tratasse de um terrífico pesadelo, que realmente aconteceu e ainda não acabou.

Ficamos, ainda assim, aliviados, porque hoje em dia já não se intimam lagartos e arganazes a comparecer em tribunal, nem se enforcam gatos por terem morto um rato ao domingo, como aconteceu desde a Idade Média até ao século XVIII. Até o acesso a armamento sofisticado por parte do exército indiano é um alívio depois de termos sabido das impiedosas matanças de elefantes durante os combates do passado. Quando as hostes inimigas não lhes cortavam a tromba com uma foice, os próprios arqueiros, que se faziam transportar no seu dorso, caso precisassem salvar a pele, enterravam-lhes uma lâmina na cabeça. Também é verdade que ninguém ficaria bem visto se decidisse recuperar o medievo instrumento musical chamado órgão de gatos, que consistia em meter dentro de uma caixa com buracos vários bichanos e depois picar os seus rabos ou puxá-los para que gritassem de dor, e o espírito das festas de S. João tornar-se-ia cruel se voltássemos atirar os pequenos felinos para a fogueira.

Jean-Pierre Digard situa a emergência do pensamento ecologista, por alturas da Revolução Francesa, no final do século XVIII. Seguindo as ideias libertadoras, o filósofo e jurista britânico Jeremy Bentham defendeu: "A questão não é se eles [leia-se, os animais] podem raciocinar ou falar, mas, isso sim, se podem sofrer."

Fazer o levantamento da história dos animais é, no fundo, aceder ao variado leque de patologias humanas, partilhadas por quase todos os povos, em todas as épocas. Ressalva seja feita a S. Francisco de Assis, apóstolo do amor, sem excepção, e aos egípcios que rapavam as sobrancelhas quando lhes morria um gato.

Um dos pressupostos que justificou a violência para com os animais foi a crença judaico-cristã de que o homem é superior e tem direito a dominar e a usar a natureza em seu benefício. René Descartes veio ainda estragar mais as coisas quando afirmou a essência mecanicista dos animais. Assim, as escolas veterinárias só aparecem com Diderot e os Enciclopedistas, porque até aí achava-se ignóbil aplicar a arte divina da medicina a "seres inferiores".

Pródigo em investigar o mundo invisível dos animais - escutou-se a fala das baleias, filmaram-se os formigueiros, descobriu-se que cada espécie tem um entendimento próprio do mundo, sente a dor e percebe a morte -, o século XX aprofundou a clivagem entre os mimos que damos aos animais de estimação e a indiferença com que tratamos porcos, vacas, galinhas, coelhos e outros seres, cujos corpos se encontram cada vez mais dissimulados nas embalagens de supermercado.

De facto, o novo milénio abre com aparatosas unidades industrializadas de produção de animais, autênticos campos de concentração e tortura: "O 'stress' em criação intensiva é de tal ordem (as porcas gestantes durante dois anos estão permanentemente cingidas ao solo, os vitelos com oito dias são separados da progenitora) que origina distúrbios fisiológicos e comportamentais graves, a que se dá remédio por meio de medicamentos, de mutilações como a desbicagem dos frangos, a amputação da cauda dos porcos, o descornamento dos bovinos, ou mediante aparelhagens como a colocação de antolhos, etc.", resume Jean-Pierre Digard, enquanto o mais arrepiante prossegue nas páginas em que se fala do animal como fábrica de produção de órgãos humanos.

Depois disto, parece enigmático a curiosidade que o reino animal manifesta ainda pelo ser humano. Segundo Boris Cyrulnik, o mistério prende-se com o encantamento face à palavra. É por "compreenderem que a boca é um canal de comunicação sonora que os humanos a privilegiam", que "os gatos miam e os cães ladram quando se dirigem a nós, ao passo que a olfacção e as posturas são suficientes para comunicar no seio da sua espécie".

"A mais Bela História dos Animais" não os vem santificar, mas esclarecer o seu silêncio e fazer imaginar que outra evolução poderiam ter as suas vidas e as nossas se não nos tivessem encontrado. "O que é aborrecido nos seres humanos é que eles vêem o universo com as suas ideias e não tanto com os seus olhos", explica Jean-Pierre Digard. Contar a história dos animais é, pois, falar de uma enfermidade: a cegueira, que não consegue ver ligações entre tudo o que respira e no momento em que a borboleta ou a traça dobram as antenas e inclinam a cabeça para dormir alguém levanta a mão para as esmagar.

"A mais Bela História dos Animais" é um livro apaixonante do qual se sai vegetariano ou etólogo

As Borboletas Também Dormem

Por TEXTO E FOTOGRAFIA DE SUSANA NEVES

Sábado, 2 de Fevereiro de 2002

Quando a elefanta entra no período reprodutivo, o que só se verifica de quatro em quatro anos, emite infra-sons perceptíveis pelos machos, a uma distância de 800 quilómetros. Já a ave-de-berço, da Nova Guiné, nas suas tentativas de acasalamento, manifesta um gosto estético depurado: a fêmea escolhe o parceiro em função da beleza dos seus presentes: conchas de caracol, bagas, plumas e pedaços de resina de cor ambreada. O olho da mosca, composto por 3000 facetas, distingue, num só segundo, 100 imagens, e uma abelha, impedida de entrar na colmeia, pode morrer de "stress".

Se o livro "A mais Bela História dos Animais" - uma longa entrevista realizada por Karine Lou Matignon a Pascal Picq (paleontólogo), Jean-Pierre Digard (etnólogo, especialista em domesticação) e Boris Cyrulnik (neuropsiquiatra, pioneiro da etologia) - descrevesse apenas o que as últimas investigações científicas nos revelam sobre o mundo da natureza, a leitura seria encantatória e de permanente espanto.

Confirmava-se, aliás, a visão sábia e profunda de alguns povos (pigmeus, esquimós, ameríndios e arborígenes australianos) sobre a linha de continuidade que liga os homens a todos os seres. Mas à medida que as perguntas, bem fundamentadas, vão evoluindo, depois do capítulo introdutório - dedicado a Pascal Picq, que explica o aparecimento de vida na Terra e surpreende ao defender que a bipedia nasceu nas árvores, resultado da suspensão dos primatas nos ramos -, a história dos animais, escrita e protagonizada pela humanidade, ganha contornos sádicos, como se se tratasse de um terrífico pesadelo, que realmente aconteceu e ainda não acabou.

Ficamos, ainda assim, aliviados, porque hoje em dia já não se intimam lagartos e arganazes a comparecer em tribunal, nem se enforcam gatos por terem morto um rato ao domingo, como aconteceu desde a Idade Média até ao século XVIII. Até o acesso a armamento sofisticado por parte do exército indiano é um alívio depois de termos sabido das impiedosas matanças de elefantes durante os combates do passado. Quando as hostes inimigas não lhes cortavam a tromba com uma foice, os próprios arqueiros, que se faziam transportar no seu dorso, caso precisassem salvar a pele, enterravam-lhes uma lâmina na cabeça. Também é verdade que ninguém ficaria bem visto se decidisse recuperar o medievo instrumento musical chamado órgão de gatos, que consistia em meter dentro de uma caixa com buracos vários bichanos e depois picar os seus rabos ou puxá-los para que gritassem de dor, e o espírito das festas de S. João tornar-se-ia cruel se voltássemos atirar os pequenos felinos para a fogueira.

Jean-Pierre Digard situa a emergência do pensamento ecologista, por alturas da Revolução Francesa, no final do século XVIII. Seguindo as ideias libertadoras, o filósofo e jurista britânico Jeremy Bentham defendeu: "A questão não é se eles [leia-se, os animais] podem raciocinar ou falar, mas, isso sim, se podem sofrer."

Fazer o levantamento da história dos animais é, no fundo, aceder ao variado leque de patologias humanas, partilhadas por quase todos os povos, em todas as épocas. Ressalva seja feita a S. Francisco de Assis, apóstolo do amor, sem excepção, e aos egípcios que rapavam as sobrancelhas quando lhes morria um gato.

Um dos pressupostos que justificou a violência para com os animais foi a crença judaico-cristã de que o homem é superior e tem direito a dominar e a usar a natureza em seu benefício. René Descartes veio ainda estragar mais as coisas quando afirmou a essência mecanicista dos animais. Assim, as escolas veterinárias só aparecem com Diderot e os Enciclopedistas, porque até aí achava-se ignóbil aplicar a arte divina da medicina a "seres inferiores".

Pródigo em investigar o mundo invisível dos animais - escutou-se a fala das baleias, filmaram-se os formigueiros, descobriu-se que cada espécie tem um entendimento próprio do mundo, sente a dor e percebe a morte -, o século XX aprofundou a clivagem entre os mimos que damos aos animais de estimação e a indiferença com que tratamos porcos, vacas, galinhas, coelhos e outros seres, cujos corpos se encontram cada vez mais dissimulados nas embalagens de supermercado.

De facto, o novo milénio abre com aparatosas unidades industrializadas de produção de animais, autênticos campos de concentração e tortura: "O 'stress' em criação intensiva é de tal ordem (as porcas gestantes durante dois anos estão permanentemente cingidas ao solo, os vitelos com oito dias são separados da progenitora) que origina distúrbios fisiológicos e comportamentais graves, a que se dá remédio por meio de medicamentos, de mutilações como a desbicagem dos frangos, a amputação da cauda dos porcos, o descornamento dos bovinos, ou mediante aparelhagens como a colocação de antolhos, etc.", resume Jean-Pierre Digard, enquanto o mais arrepiante prossegue nas páginas em que se fala do animal como fábrica de produção de órgãos humanos.

Depois disto, parece enigmático a curiosidade que o reino animal manifesta ainda pelo ser humano. Segundo Boris Cyrulnik, o mistério prende-se com o encantamento face à palavra. É por "compreenderem que a boca é um canal de comunicação sonora que os humanos a privilegiam", que "os gatos miam e os cães ladram quando se dirigem a nós, ao passo que a olfacção e as posturas são suficientes para comunicar no seio da sua espécie".

"A mais Bela História dos Animais" não os vem santificar, mas esclarecer o seu silêncio e fazer imaginar que outra evolução poderiam ter as suas vidas e as nossas se não nos tivessem encontrado. "O que é aborrecido nos seres humanos é que eles vêem o universo com as suas ideias e não tanto com os seus olhos", explica Jean-Pierre Digard. Contar a história dos animais é, pois, falar de uma enfermidade: a cegueira, que não consegue ver ligações entre tudo o que respira e no momento em que a borboleta ou a traça dobram as antenas e inclinam a cabeça para dormir alguém levanta a mão para as esmagar.

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