Teologia loja dos 300

20-11-2001
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Crónicas da vaca fria

Teologia Loja dos 300

Por ADÍLIA LOPES

Segunda, 2 de Julho de 2001

Isto que se segue é teologia barata, teologia loja dos 300, mas foi na loja dos 300 que eu comprei, por 300$00, uma Santa Teresinha do Menino Jesus (1873-1897). Desde que vi o filme "Thérèse", de Alain Cavalier, que fiquei apaixonada por essa rapariga que a "Enciclopédia Britânica" acha uma neurótica e que é agora uma doutora da Igreja. Não há contradição nisto. Van Gogh era um psicótico e era um pintor. Proust era um neurótico e era um escritor. Aliás, Jesus Cristo comporta-se como um doente mental. Isto não é blasfemo! Jesus Cristo foi crucificado, ficou com feridas, deitou sangue. O sangue de Cristo é sagrado. Mas todo o corpo de Cristo é sagrado! Possivelmente Cristo constipou-se, vomitou, urinou, ejaculou, evacuou. Neste tempo de Prozac e Lexotan, é tempo de dizer que também os neurónios de Cristo são sagrados! Os neurónios, o sangue, o suor, as lágrimas, o ranho, a saliva, a urina, o esperma, as fezes.

Sei que passo por ser ridícula, pateta, porca, doida. Mas acho que as pessoas eram mais felizes se reparassem, de facto, na dignidade, na santidade, do corpo e do quotidiano. As pessoas deviam imitar as baratas. Eu gosto de baratas. Gosto de estar deitada e de as ouvir a correr pelo chão de madeira. No lar da terceira idade onde o meu pai vive, contaram-me, uma velha diz à que está no quarto com ela, antes de irem dormir, que viu uma barata. Diz isto por maldade, só para meter medo à outra. A outra tem medo de baratas, já não consegue dormir e passa a noite em tormentos. Quando eu for velha, se estiver num lar, podem dizer-me à vontade, antes de eu adormecer, que o quarto está cheio de baratas! Mas eu sei o que é ter medo de baratas. Só que venci esse medo.

Quando era criança, tinha muito medo das baratas e, ao mesmo tempo, as baratas fascinavam-me muito. Pelo Natal, um Natal, a minha mãe pôs-me no sapatinho, ao pé do presépio, uma cama de bonecas linda, de metal dourado e dossel de tule cor-de-rosa e branco. Uma manhã, ao abrir a cama da boneca, vi dois ou três ovos de barata muito pretos, a luzir, como cápsulas de antibiótico. Isto, que foi repugnante, passou a ser delicioso. Quem já comeu baratas fritas diz que sabem a gambas.

Devem estar a pensar: que maluca! Certamente S. Francisco de Assis acha que eu sou uma mulher ajuizada, porque, para mim, crescer correspondeu a vencer a tentação do horror às baratas e a afirmar hoje que as baratas são minhas irmãs.

A minha mãe era bióloga. Tentou doutorar-se, mas desistiu. Preparou o doutoramento na Estação Agronómica de Oeiras. Para mim era sempre uma festa estar com a minha mãe. E a Estação Agronómica de Oeiras era o campo, os laboratórios, coisas que me fascinavam até pelos cheiros. A tia Sara, minha tia-avó, trabalhava lá. Era uma mulher divorciada e que trabalhava, o que era raro para uma mulher burguesa nascida no princípio do século XX. A tia Sara dava de comer a moscas! Lembro-me do cheiro das papas das moscas e dos olhos (lindíssimos) das moscas. As moscas são boas para quem estuda genética. Eu ainda não estudei genética. Nem mesmo no liceu. Mas ainda vou muito a tempo. Não me queixo de ter assistido às trapalhadas da revolução dos cravos a ler, sem perceber, Marx, Engels e Lenine e a "Elle" e a "Marie Claire" francesas (ainda não havia as portuguesas), em vez de estudar biologia.

Sou feliz, mesmo sem saber genética. Há pessoas que embirram com os meus textos e com a minha cara. Mas outras escrevem-me a oferecer-me a casa e a felicitar-me. Até há bem pouco tempo, as coisas más eram como borrões de tinta em mata-borrão: alastravam, tomavam proporções gigantescas. Um padre disse-me que eu devia fazer com que o meu mata-borrão funcionasse ao contrário, isto é, que fosse um mata-borrão em que as coisas boas alastrassem, tomassem proporções gigantescas. Ao fim e ao cabo, as coisas boas e as coisas más são a cara e a coroa de uma mesma moeda, as duas faces da Lua.

Que seria de nós sem o mal? Não havia enredo, intriga (no sentido de "plot" em inglês), não havia tempo, duração, processo. É teologia loja dos 300. Mas ainda há-de vir o tempo em que "O Processo", de Kafka, a Bíblia e todos os romances da Agustina Bessa-Luís se hão-de vender nas lojas dos 300, todos metidos no mesmo saco, por um euro. Se não houvesse o mal, não havia o bem. Se não houvesse o Diabo, não havia Deus. Estou a tagarelar. A charlar. A "bavarder". Adoro falar. Sou incapaz de dizer a uma pessoa: "Cala-te!" "Fala baixo!" "Perdeste uma boa oportunidade de estar calada!" Isso é o fascismo. Se não houvesse o fascismo, não havia a democracia. Se não houvesse o barulho, não havia o silêncio. Se não houvesse a morte, não havia a vida. É perigoso pensar assim - mas como não pensar assim?

Ainda bem que Deus não nos meteu de uma vez por todas na eternidade! Talvez "eternidade" não vos diga nada, a menos que a eternidade seja um permanente orgasmo tântrico.

Chego ao fim apelando para aqueles e aquelas que estão a sofrer e que podem estar a ler isto. Sofrem porque partiram uma perna, porque o namorado as/os deixou, porque a mãe morreu, porque o filho ou a filha morreu, porque têm medo de vir a não ter dinheiro, etc. Sofrem e isso basta-me. Não estou a gozar. Estou convosco. Já sofri. Neste momento, não sofro. Mas o sofrimento tem muito valor. Tem todo o valor. Nunca devemos procurar o sofrimento. Mas temos que o enfrentar quando ele vem. O sofrimento é o mau tempo.

Crónicas da vaca fria

Teologia Loja dos 300

Por ADÍLIA LOPES

Segunda, 2 de Julho de 2001

Isto que se segue é teologia barata, teologia loja dos 300, mas foi na loja dos 300 que eu comprei, por 300$00, uma Santa Teresinha do Menino Jesus (1873-1897). Desde que vi o filme "Thérèse", de Alain Cavalier, que fiquei apaixonada por essa rapariga que a "Enciclopédia Britânica" acha uma neurótica e que é agora uma doutora da Igreja. Não há contradição nisto. Van Gogh era um psicótico e era um pintor. Proust era um neurótico e era um escritor. Aliás, Jesus Cristo comporta-se como um doente mental. Isto não é blasfemo! Jesus Cristo foi crucificado, ficou com feridas, deitou sangue. O sangue de Cristo é sagrado. Mas todo o corpo de Cristo é sagrado! Possivelmente Cristo constipou-se, vomitou, urinou, ejaculou, evacuou. Neste tempo de Prozac e Lexotan, é tempo de dizer que também os neurónios de Cristo são sagrados! Os neurónios, o sangue, o suor, as lágrimas, o ranho, a saliva, a urina, o esperma, as fezes.

Sei que passo por ser ridícula, pateta, porca, doida. Mas acho que as pessoas eram mais felizes se reparassem, de facto, na dignidade, na santidade, do corpo e do quotidiano. As pessoas deviam imitar as baratas. Eu gosto de baratas. Gosto de estar deitada e de as ouvir a correr pelo chão de madeira. No lar da terceira idade onde o meu pai vive, contaram-me, uma velha diz à que está no quarto com ela, antes de irem dormir, que viu uma barata. Diz isto por maldade, só para meter medo à outra. A outra tem medo de baratas, já não consegue dormir e passa a noite em tormentos. Quando eu for velha, se estiver num lar, podem dizer-me à vontade, antes de eu adormecer, que o quarto está cheio de baratas! Mas eu sei o que é ter medo de baratas. Só que venci esse medo.

Quando era criança, tinha muito medo das baratas e, ao mesmo tempo, as baratas fascinavam-me muito. Pelo Natal, um Natal, a minha mãe pôs-me no sapatinho, ao pé do presépio, uma cama de bonecas linda, de metal dourado e dossel de tule cor-de-rosa e branco. Uma manhã, ao abrir a cama da boneca, vi dois ou três ovos de barata muito pretos, a luzir, como cápsulas de antibiótico. Isto, que foi repugnante, passou a ser delicioso. Quem já comeu baratas fritas diz que sabem a gambas.

Devem estar a pensar: que maluca! Certamente S. Francisco de Assis acha que eu sou uma mulher ajuizada, porque, para mim, crescer correspondeu a vencer a tentação do horror às baratas e a afirmar hoje que as baratas são minhas irmãs.

A minha mãe era bióloga. Tentou doutorar-se, mas desistiu. Preparou o doutoramento na Estação Agronómica de Oeiras. Para mim era sempre uma festa estar com a minha mãe. E a Estação Agronómica de Oeiras era o campo, os laboratórios, coisas que me fascinavam até pelos cheiros. A tia Sara, minha tia-avó, trabalhava lá. Era uma mulher divorciada e que trabalhava, o que era raro para uma mulher burguesa nascida no princípio do século XX. A tia Sara dava de comer a moscas! Lembro-me do cheiro das papas das moscas e dos olhos (lindíssimos) das moscas. As moscas são boas para quem estuda genética. Eu ainda não estudei genética. Nem mesmo no liceu. Mas ainda vou muito a tempo. Não me queixo de ter assistido às trapalhadas da revolução dos cravos a ler, sem perceber, Marx, Engels e Lenine e a "Elle" e a "Marie Claire" francesas (ainda não havia as portuguesas), em vez de estudar biologia.

Sou feliz, mesmo sem saber genética. Há pessoas que embirram com os meus textos e com a minha cara. Mas outras escrevem-me a oferecer-me a casa e a felicitar-me. Até há bem pouco tempo, as coisas más eram como borrões de tinta em mata-borrão: alastravam, tomavam proporções gigantescas. Um padre disse-me que eu devia fazer com que o meu mata-borrão funcionasse ao contrário, isto é, que fosse um mata-borrão em que as coisas boas alastrassem, tomassem proporções gigantescas. Ao fim e ao cabo, as coisas boas e as coisas más são a cara e a coroa de uma mesma moeda, as duas faces da Lua.

Que seria de nós sem o mal? Não havia enredo, intriga (no sentido de "plot" em inglês), não havia tempo, duração, processo. É teologia loja dos 300. Mas ainda há-de vir o tempo em que "O Processo", de Kafka, a Bíblia e todos os romances da Agustina Bessa-Luís se hão-de vender nas lojas dos 300, todos metidos no mesmo saco, por um euro. Se não houvesse o mal, não havia o bem. Se não houvesse o Diabo, não havia Deus. Estou a tagarelar. A charlar. A "bavarder". Adoro falar. Sou incapaz de dizer a uma pessoa: "Cala-te!" "Fala baixo!" "Perdeste uma boa oportunidade de estar calada!" Isso é o fascismo. Se não houvesse o fascismo, não havia a democracia. Se não houvesse o barulho, não havia o silêncio. Se não houvesse a morte, não havia a vida. É perigoso pensar assim - mas como não pensar assim?

Ainda bem que Deus não nos meteu de uma vez por todas na eternidade! Talvez "eternidade" não vos diga nada, a menos que a eternidade seja um permanente orgasmo tântrico.

Chego ao fim apelando para aqueles e aquelas que estão a sofrer e que podem estar a ler isto. Sofrem porque partiram uma perna, porque o namorado as/os deixou, porque a mãe morreu, porque o filho ou a filha morreu, porque têm medo de vir a não ter dinheiro, etc. Sofrem e isso basta-me. Não estou a gozar. Estou convosco. Já sofri. Neste momento, não sofro. Mas o sofrimento tem muito valor. Tem todo o valor. Nunca devemos procurar o sofrimento. Mas temos que o enfrentar quando ele vem. O sofrimento é o mau tempo.

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