Válvula de escape do PS

11-03-2000
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A válvula de escape

Por Lino de Carvalho

Na véspera do Congresso do PS, Jaime Gama, numa entrevista que deu a um diário de grande circulação, desferiu uma frase "assassina" e tremendamente esclarecedora. Referindo-se a Manuel Alegre e á sua tão cantada moção disse Jaime Gama: "É sempre bom abrir válvulas de escape ...". Exactamente. Manuel Alegre e a sua moção foram a válvula de escape nos dias que antecederam o Congresso do PS. E não mais do que isso. Claro, com um objectivo premonitoriamente expresso por uma jornalista num dos muitos textos escritos sobre o conclave socialista. Dizia Ana Sá Lopes (O Público - 06/02/99) a propósito ainda da moção de Alegre: "... a direcção socialista estará interessada em dar a ideia de que vai mudar alguma coisa para que tudo continue na mesma.

O papel de porta-vozes da crítica consentida levado a cabo por Alegre e companheiros acaba por funcionar, ao contrário do que proclamaram, para consolidar no seu sítio o irremediável unanimismo". A prova disso mesmo esteve, aliás, no discurso de Alegre ao cobrir "á esquerda" o discurso de António Guterres afirmando que se a moção do Secretário-geral fosse igual ao seu discurso ele tinha-se abstido de apresentar a sua própria moção que, aliás, aceitou ser votada não como texto alternativo mas como texto complementar da moção oficial quando a razão da sua apresentação tinha precisamente tido como referência uma forte discordância em relação ao texto oficial, muito "terceira via" e que Alberto Martins definiu, num debate do Portugal 2000, como um caminho vincadamente neo-liberal embora polvilhado com políticas assistencialistas.

Parafraseando o que vários analistas disseram em relação á AD bem se pode afirmar que também o PS se parece com um hipermercado onde tudo se pode ir buscar, um pouco para todos os gostos.

Dito isto importa também dizer que, obviamente, não é indiferente, não pode ser indiferente, que no Partido Socialista existam e se manifestem inquietações e sensibilidades mais á esquerda, mais próximas das preocupações e das propostas do PCP. Manuel Alegre, por exemplo, lançou no Congresso do PS um, assim foi intitulado pelos órgãos de comunicação social, desafio ao Governo do seu próprio Partido com vista ao lançamento de um imposto sobre a riqueza. É algo que o PCP tem proposto e que sempre foi recusado pelo PS. É positivo que Alegre agora o tenha repetido, desde que tal não signifique simplesmente mais uma cenarização de esquerda, muito conveniente á direcção oficial do Partido Socialista designadamente quando em ano eleitoral quer alargar a sua base eleitoral para obter a maioria absoluta (objectivo que o PS também procura servir com a alavanca da candidatura de Mário Soares ao Parlamento Europeu) e, sobretudo, quando essas cenarizações não têm qualquer concretização prática. Aliás não me consta que o Congresso do PS tenha feito alguma reflexão crítica sobre a política laboral do Governo ou sobre as opções de desvalorização e desmantelamento das políticas públicas. Nem dei notícia de qualquer discussão acerca da política cultural de Carrilho. Em boa verdade não dei conta da discussão de nenhuma política. Inclusivamente a solução encontrada pelo Engº. Guterres (de alargar a Comissão Nacional em 30% passando-a de 201 para 261 membros) para garantir a quota de 25% para as mulheres nos órgãos estatutários do PS é bem o exemplo da mistificação, do que representa a maneira de fazer política "à PS": uma enxurrada de palavras e de discursos redondos, sempre pontuados com referências para todos (alguns) gostos para, mantendo tudo na mesma, dar a ideia de que muda alguma coisa. A verdade é que o Congresso do PS foi, como não podia deixar de ser, a consagração do Secretário-geral e da política oficial do PS rematado com a grande operação de lançamento de Mário Soares como cabeça de lista ao Parlamento Europeu. Tudo o resto foi cenário, foi quanto muito o falar da "consciência crítica". Ora, a questão é exactamente esta. É que quando alguns sectores socialistas defendem uma aproximação ao PCP - e, pela minha parte, não desvalorizo essa posição – e uma aproximação do PCP o que parecem querer é alargar ao PCP essa sua "consciência crítica", fazer do PCP o tal "grilo falante" e pouco mais. Quero crer que nem todos pensarão assim. Mas é isso o que de fundamental transparece nas intervenções públicas de protagonistas dessa sensibilidade no interior do PS. Como é esclarecedora, para quem tivesse dúvidas, a forma como o Engº Guterres se referiu ao PCP numa das suas intervenções: "O PCP não compreendeu que, ao não garantir o apoio ao PS nos momentos decisivos não se assume ele próprio como um instrumento útil para derrotar a direita em Portugal". É a célebre tese do PCP como partido útil, na versão Assis, mas útil para o Partido Socialista e para dar cobertura á sua política de direita. Só que a "utilidade" do PCP é necessária, sim, mas tendo como linha de referência o País e os trabalhadores, não o servir de biombo á esquerda para por detrás o PS continuar a optar pelos modelos e pela roupa da direita. O que nesta matéria se deve colocar no centro dos debates não é, pois, pôr o PCP a fazer simplesmente de "consciência crítica" do PS mas, como se afirma nas conclusões do Comité Central, a "pesar eficazmente nas soluções políticas e governativas do país" para romper "decididamente com o ciclo de políticas de direita desempenhadas ora pelo PS ora pelo PSD". Na linha, aliás, do que o PCP tem procurado fazer na Assembleia da República e fora dela. Esta é que é a questão. Tudo o resto é um mar de ilusões e de equívocos que servirá á estratégia do PS mas não servirá seguramente a uma efectiva viragem á esquerda.

É que não basta travestir o Ministro Ferro Rodrigues no S. Francisco de Assis do Governo quando, simultaneamente, esse mesmo Governo prossegue aceleradamente a política de privatizações e de desmantelamento da intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais; quando opta decididamente por uma política laboral desvalorizadora do valor do trabalho e que corresponde aos interesses mais conservadores do grande patronato; quando escolhe o caminho de uma Europa crescentemente federalizadora e constrangedora de efectivas políticas de coesão, de desenvolvimento e de defesa do aparelho produtivo nacional; quando privilegia as relações com os grandes grupos económicos e com as transnacionais no quadro de opções crescentemente desregulamentadoras e neo-liberais do investimento estrangeiro; quando não quer ou não tem a coragem de abordar de frente a incontornável questão da reforma fiscal ou quando aposta permanentemente em meras operações de cosmética pré-eleitoral e de marketing político como foi o caso do anuncio de mais um (o terceiro nesta legislatura) plano social de combate ao desemprego no Alentejo como cenário que esconde a ausência de políticas sustentadas de desenvolvimento.

Recordando análises que foram feitas no início desta legislatura bem se pode continuar a dizer que as passagens do PS pelo Governo se traduzem sistemáticamente num contributo para a alteração da relação de forças na democracia portuguesa a favor do capital e contra os trabalhadores; a favor das políticas privadas contra as políticas públicas. Acrescentado agora com muito discurso sobre o social mas cuja prática pouco ultrapassa a visão franciscana e a caridade disfarçada.

A solução continua a ser, pois, estarmos sempre disponíveis para o diálogo e a procura de convergências á esquerda mas sobretudo estarmos sempre empenhados no reforço das posições do PCP tanto no terreno social como no terreno eleitoral e institucional. Esse é o único caminho que garante uma efectiva viragem á esquerda.

«Avante!» Nº 1316 - 18.Fevereiro.1999

A válvula de escape

Por Lino de Carvalho

Na véspera do Congresso do PS, Jaime Gama, numa entrevista que deu a um diário de grande circulação, desferiu uma frase "assassina" e tremendamente esclarecedora. Referindo-se a Manuel Alegre e á sua tão cantada moção disse Jaime Gama: "É sempre bom abrir válvulas de escape ...". Exactamente. Manuel Alegre e a sua moção foram a válvula de escape nos dias que antecederam o Congresso do PS. E não mais do que isso. Claro, com um objectivo premonitoriamente expresso por uma jornalista num dos muitos textos escritos sobre o conclave socialista. Dizia Ana Sá Lopes (O Público - 06/02/99) a propósito ainda da moção de Alegre: "... a direcção socialista estará interessada em dar a ideia de que vai mudar alguma coisa para que tudo continue na mesma.

O papel de porta-vozes da crítica consentida levado a cabo por Alegre e companheiros acaba por funcionar, ao contrário do que proclamaram, para consolidar no seu sítio o irremediável unanimismo". A prova disso mesmo esteve, aliás, no discurso de Alegre ao cobrir "á esquerda" o discurso de António Guterres afirmando que se a moção do Secretário-geral fosse igual ao seu discurso ele tinha-se abstido de apresentar a sua própria moção que, aliás, aceitou ser votada não como texto alternativo mas como texto complementar da moção oficial quando a razão da sua apresentação tinha precisamente tido como referência uma forte discordância em relação ao texto oficial, muito "terceira via" e que Alberto Martins definiu, num debate do Portugal 2000, como um caminho vincadamente neo-liberal embora polvilhado com políticas assistencialistas.

Parafraseando o que vários analistas disseram em relação á AD bem se pode afirmar que também o PS se parece com um hipermercado onde tudo se pode ir buscar, um pouco para todos os gostos.

Dito isto importa também dizer que, obviamente, não é indiferente, não pode ser indiferente, que no Partido Socialista existam e se manifestem inquietações e sensibilidades mais á esquerda, mais próximas das preocupações e das propostas do PCP. Manuel Alegre, por exemplo, lançou no Congresso do PS um, assim foi intitulado pelos órgãos de comunicação social, desafio ao Governo do seu próprio Partido com vista ao lançamento de um imposto sobre a riqueza. É algo que o PCP tem proposto e que sempre foi recusado pelo PS. É positivo que Alegre agora o tenha repetido, desde que tal não signifique simplesmente mais uma cenarização de esquerda, muito conveniente á direcção oficial do Partido Socialista designadamente quando em ano eleitoral quer alargar a sua base eleitoral para obter a maioria absoluta (objectivo que o PS também procura servir com a alavanca da candidatura de Mário Soares ao Parlamento Europeu) e, sobretudo, quando essas cenarizações não têm qualquer concretização prática. Aliás não me consta que o Congresso do PS tenha feito alguma reflexão crítica sobre a política laboral do Governo ou sobre as opções de desvalorização e desmantelamento das políticas públicas. Nem dei notícia de qualquer discussão acerca da política cultural de Carrilho. Em boa verdade não dei conta da discussão de nenhuma política. Inclusivamente a solução encontrada pelo Engº. Guterres (de alargar a Comissão Nacional em 30% passando-a de 201 para 261 membros) para garantir a quota de 25% para as mulheres nos órgãos estatutários do PS é bem o exemplo da mistificação, do que representa a maneira de fazer política "à PS": uma enxurrada de palavras e de discursos redondos, sempre pontuados com referências para todos (alguns) gostos para, mantendo tudo na mesma, dar a ideia de que muda alguma coisa. A verdade é que o Congresso do PS foi, como não podia deixar de ser, a consagração do Secretário-geral e da política oficial do PS rematado com a grande operação de lançamento de Mário Soares como cabeça de lista ao Parlamento Europeu. Tudo o resto foi cenário, foi quanto muito o falar da "consciência crítica". Ora, a questão é exactamente esta. É que quando alguns sectores socialistas defendem uma aproximação ao PCP - e, pela minha parte, não desvalorizo essa posição – e uma aproximação do PCP o que parecem querer é alargar ao PCP essa sua "consciência crítica", fazer do PCP o tal "grilo falante" e pouco mais. Quero crer que nem todos pensarão assim. Mas é isso o que de fundamental transparece nas intervenções públicas de protagonistas dessa sensibilidade no interior do PS. Como é esclarecedora, para quem tivesse dúvidas, a forma como o Engº Guterres se referiu ao PCP numa das suas intervenções: "O PCP não compreendeu que, ao não garantir o apoio ao PS nos momentos decisivos não se assume ele próprio como um instrumento útil para derrotar a direita em Portugal". É a célebre tese do PCP como partido útil, na versão Assis, mas útil para o Partido Socialista e para dar cobertura á sua política de direita. Só que a "utilidade" do PCP é necessária, sim, mas tendo como linha de referência o País e os trabalhadores, não o servir de biombo á esquerda para por detrás o PS continuar a optar pelos modelos e pela roupa da direita. O que nesta matéria se deve colocar no centro dos debates não é, pois, pôr o PCP a fazer simplesmente de "consciência crítica" do PS mas, como se afirma nas conclusões do Comité Central, a "pesar eficazmente nas soluções políticas e governativas do país" para romper "decididamente com o ciclo de políticas de direita desempenhadas ora pelo PS ora pelo PSD". Na linha, aliás, do que o PCP tem procurado fazer na Assembleia da República e fora dela. Esta é que é a questão. Tudo o resto é um mar de ilusões e de equívocos que servirá á estratégia do PS mas não servirá seguramente a uma efectiva viragem á esquerda.

É que não basta travestir o Ministro Ferro Rodrigues no S. Francisco de Assis do Governo quando, simultaneamente, esse mesmo Governo prossegue aceleradamente a política de privatizações e de desmantelamento da intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais; quando opta decididamente por uma política laboral desvalorizadora do valor do trabalho e que corresponde aos interesses mais conservadores do grande patronato; quando escolhe o caminho de uma Europa crescentemente federalizadora e constrangedora de efectivas políticas de coesão, de desenvolvimento e de defesa do aparelho produtivo nacional; quando privilegia as relações com os grandes grupos económicos e com as transnacionais no quadro de opções crescentemente desregulamentadoras e neo-liberais do investimento estrangeiro; quando não quer ou não tem a coragem de abordar de frente a incontornável questão da reforma fiscal ou quando aposta permanentemente em meras operações de cosmética pré-eleitoral e de marketing político como foi o caso do anuncio de mais um (o terceiro nesta legislatura) plano social de combate ao desemprego no Alentejo como cenário que esconde a ausência de políticas sustentadas de desenvolvimento.

Recordando análises que foram feitas no início desta legislatura bem se pode continuar a dizer que as passagens do PS pelo Governo se traduzem sistemáticamente num contributo para a alteração da relação de forças na democracia portuguesa a favor do capital e contra os trabalhadores; a favor das políticas privadas contra as políticas públicas. Acrescentado agora com muito discurso sobre o social mas cuja prática pouco ultrapassa a visão franciscana e a caridade disfarçada.

A solução continua a ser, pois, estarmos sempre disponíveis para o diálogo e a procura de convergências á esquerda mas sobretudo estarmos sempre empenhados no reforço das posições do PCP tanto no terreno social como no terreno eleitoral e institucional. Esse é o único caminho que garante uma efectiva viragem á esquerda.

«Avante!» Nº 1316 - 18.Fevereiro.1999

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